Genocídio em Gaza completa dois anos com 67 mil mortos e colapso humanitário
Massacre iniciado em 2023 reduziu Gaza a escombros, levou cortes internacionais a enquadrarem Israel por genocídio e expôs o papel central do apoio militar dos EUA
Lucas Toth/Vermelho
O massacre em Gaza completa nesta terça-feira (7) dois anos com um saldo que sintetiza a tragédia palestina: mais de 67 mil mortos, 170 mil feridos, fome reconhecida oficialmente pela ONU e um território reduzido a escombros.
O conflito já foi formalmente enquadrado como genocídio por duas cortes internacionais. A Corte Internacional de Justiça aceitou a denúncia da África do Sul contra Israel por violar a Convenção de 1948 e emitiu ordens cautelares exigindo o fim imediato das operações militares e a garantia de ajuda humanitária.
Já o Tribunal Penal Internacional abriu processo contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa Yoav Gallant, acusando-os de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Desde o início da ofensiva israelense, em 7 de outubro de 2023, após o ataque do Hamas ao sul de Israel, o cerco imposto por Tel Aviv transformou a Faixa em uma prisão a céu aberto, onde sobreviventes disputam água, comida e espaço em abrigos improvisados.
Relatórios da ONU, da Organização Mundial da Saúde e da Universidade Brown classificam o conflito como um dos maiores desastres humanitários do século, agravado pelo apoio militar e financeiro dos Estados Unidos e pela inércia das potências ocidentais diante de evidências de genocídio.
O bloqueio total, que já dura 24 meses, dizimou a infraestrutura civil e sanitária do enclave.
De acordo com o programa de satélites UNOSAT, das Nações Unidas, 193 mil construções foram destruídas ou severamente danificadas, o que corresponde a quase 80% das edificações de Gaza.
O Banco Mundial estima em US$ 55 bilhões os prejuízos diretos causados pela ofensiva.
Quase toda a rede de água e esgoto foi inutilizada: 89% das instalações de saneamento estão fora de operação, e 96% das famílias não têm acesso regular à água potável.
Segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação Humanitária, metade da população vive hoje com menos de seis litros de água por dia, quantidade insuficiente até para a sobrevivência básica.
Nos hospitais, o colapso é total. Das 38 unidades médicas existentes antes da guerra, 25 foram fechadas e 13 operam de forma precária, sem anestésicos, energia ou insumos básicos.
A Organização Mundial da Saúde contabiliza 790 ataques a hospitais e ambulâncias, o que o Tribunal Penal Internacional classifica como crime de guerra.
Pelo menos 1.722 profissionais de saúde foram mortos, e 28 médicos continuam presos em Israel, entre eles especialistas em cirurgia, pediatria e terapia intensiva. Dois morreram sob tortura.
A destruição deliberada das unidades médicas e a detenção de seus funcionários transformaram o sistema de saúde de Gaza em uma extensão do campo de batalha.
A fome tornou-se a nova forma de extermínio Desde agosto, a ONU reconhece oficialmente uma situação de fome generalizada no enclave, a primeira declarada no Oriente Médio. O sistema IPC (Classificação Integrada de Segurança Alimentar) indica que 641 mil palestinos vivem em condição catastrófica, e 459 morreram por inanição, entre eles 154 crianças.
Com a entrada da Fundação Humanitária de Gaza (GHF) — criada com apoio de Israel e dos Estados Unidos — no controle da distribuição de alimentos, o que se viu foi um agravamento da tragédia.
Relatórios da Al Jazeera e do jornal israelense Haaretz revelam que 2.600 palestinos foram mortos e 19 mil ficaram feridos enquanto tentavam recolher comida em áreas de distribuição cercadas por militares israelenses.
Soldados relataram que receberam ordens para “abrir fogo” contra multidões famintas.
A guerra também destruiu o direito à educação e à infância. Segundo a ONU, 658 mil crianças e 87 mil universitários estão sem acesso às aulas. Mais de 2.300 escolas e universidades foram destruídas, e as poucas que restam funcionam como abrigos. Em dois anos, 40 mil crianças ficaram órfãs, 13 mil mulheres foram assassinadas e outras 700 seguem desaparecidas.
A taxa de nascimentos caiu 41% no primeiro semestre de 2025 em relação ao mesmo período do ano anterior, e o número de abortos espontâneos cresceu 300%. Médicos palestinos relatam que gestantes dão à luz em escombros e que uma em cada cinco mulheres tem filhos prematuros ou abaixo do peso.
As prisões israelenses abrigam hoje 10.800 palestinos, entre eles 450 crianças e 87 mulheres, detidos sob o regime de “detenção administrativa”, que permite o encarceramento indefinido sem acusação formal.
Organizações de direitos humanos denunciam torturas, desaparecimentos e execuções extrajudiciais. Mais de 3.600 prisioneiros estão detidos há mais de um ano sem julgamento, o que configura violação direta do direito internacional humanitário.
Apesar da escala da destruição, o governo israelense segue respaldado por Washington.
Dois relatórios publicados pela Universidade Brown e pelo Quincy Institute for Responsible Statecraft revelam que, desde o início da guerra, os Estados Unidos destinaram mais de US$ 21 bilhões em ajuda militar direta a Israel, cifra que ultrapassa US$ 33 bilhões quando somadas as operações conjuntas na região.
O financiamento garantiu o abastecimento de armas, munições e tecnologia usadas nos ataques a Gaza, Líbano, Síria e Irã.
“Israel precisa das armas norte-americanas para fazer o que está fazendo. Produz certas tecnologias, mas não fabrica as bombas — sem os EUA, não poderia lançá-las”, disse o pesquisador Omar H. Rahman, do Middle East Council on Global Affairs.
O autor do principal estudo, William D. Hartung, conclui que o exército israelense “não poderia ter causado tamanha destruição em Gaza nem expandido sua guerra sem o financiamento, as armas e o respaldo político de Washington”.
A aliança bipartidária que sustenta o fornecimento de armamentos é antiga: tanto Joe Biden quanto Donald Trump firmaram novos pacotes bilionários de vendas e assistência militar.
Para o analista Matt Duss, do Center for International Policy, “mesmo com a rede de proteção social mais frágil do mundo desenvolvido, os EUA sempre encontram bilhões para financiar as guerras de Israel”.
Enquanto isso, cresce a percepção de isolamento político de Tel Aviv. Uma comissão de inquérito da ONU concluiu que Israel cometeu “atos de genocídio” na Faixa de Gaza, e a Corte Internacional de Justiça abriu um processo formal contra o governo Netanyahu.
Países europeus como França, Reino Unido e Canadá reconheceram o Estado palestino, e o discurso do premiê israelense nas Nações Unidas em setembro foi recebido com o abandono de delegações inteiras. Internamente, Netanyahu enfrenta protestos diários, divisões em sua coalizão e o colapso de sua imagem internacional.
Mesmo com a destruição quase total do território, as facções palestinas afirmam que a resistência não foi derrotada.
Em nota conjunta, os grupos afirmaram que “Israel falhou em eliminar o Hamas e libertar reféns pela força” e declararam que “não é permitido a ninguém renunciar às armas do povo palestino”.
A ofensiva, dizem, representa “uma guerra de extermínio travada sob o silêncio cúmplice da comunidade internacional”.
Gaza também se tornou o território mais letal do planeta para jornalistas. Desde 2023, quase 300 profissionais da imprensa foram mortos, entre eles dez da Al Jazeera.
A relatora especial da ONU Irene Khan afirma que Israel conduz “uma política de extermínio da informação”, combinando censura e assassinato de repórteres.
“Israel primeiro deslegitima e desacredita o jornalista, o acusa de apoiar o terrorismo — e então o mata. Não se trata apenas de matar jornalistas, mas de matar a história”, disse.
Segundo o projeto Costs of War, da Universidade Brown, mais jornalistas foram mortos em Gaza do que nas guerras da Coreia, Vietnã, Iugoslávia, Afeganistão e nas duas Guerras Mundiais somadas.
Dois anos depois, o território permanece sob bombardeio, fome e deslocamento em massa.
As negociações mediadas por Egito, Catar e Estados Unidos seguem sem acordo. O governo catari afirmou que há “compromisso americano de que o cessar-fogo não será temporário”, mas reconheceu divergências profundas sobre a retirada total das tropas israelenses e a troca de prisioneiros.
Netanyahu declarou que “a guerra se aproxima do fim”, mas o exército israelense ameaça retomar os ataques caso as conversas fracassem.
A guerra que começou como resposta a um ataque se tornou uma máquina de destruição permanente. Gaza é hoje um território mutilado, sem hospitais, sem escolas e sem luz.
O que resta, segundo diplomatas palestinos, é um povo exausto, cercado por ruínas e pela indiferença global.
“O que fizeram em 1948 com a limpeza étnica”, afirmou um representante em Genebra, “agora fazem com o genocídio. Gaza é o espelho do mundo — um espelho rachado que todos preferem não encarar”, disse a Al Jazeera.
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