Duas horas e
quarenta e cinco minutos de voo*
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65
Quando o cansaço e o sono me abatem, simplesmente durmo. Acordo quando a voz do
piloto anuncia a proximidade do nosso destino. Às vezes nem isso, desperto
mesmo com os solavancos da aterrissagem. Outras vezes, leio ou escrevo. Ou as
duas coisas ao mesmo tempo, alternadamente. Concentrado e tendo o cuidado de
mostrar mesmo que me dedico à leitura e às anotações, medida preventiva contra
a ameaça do passageiro ao lado que ensaia uma conversa. Evito sempre conversar
com estranhos durante o voo, pois quase nunca me dei bem.
Desta vez, no voo Recife-São Paulo, na radiosa manhã desta sexta-feira, apenas
cochilo alguns minutos. Folheio a revista de bordo TAM Nas Nuvens e não
encontro nada para ler: a cada viagem acho-a pior. Fossem apenas amenidades,
ainda bem; mas com essa profusão de propaganda e merchandise e roteiros
falsamente atraentes, não há quem aguente. Quer dizer: não aguento, mas muita
gente acha o contrário, pelo que vejo nas filas próximas. Como aquele cidadão
perto dos oitenta que não larga a página que ostenta uma viagem dos sonhos a
uma região inóspita da Índia. Totalmente entregue à imaginação. Que o faça,
está no seu direito.
Pois bem, essa está sendo para mim uma viagem atípica: não durmo, não leio,
apenas escrevo o que aqui vai registrado. De tudo alguma coisa: o comissário de
bordo toda vez que passa apaga a luz de leitura que acendi (na próxima, vou
pedir satisfações); o vizinho do assento do meio ronca; a garotinha ali três
filas adiante ora chora, ora rir no colo da mãe; o oitentão fascinado pela
Índia não larga a revista nem muda de página; aquele grupo de meia idade ali
atrás queda-se em algazarra juvenil; o italiano aqui do lado mantém-se grudado
em tabelas e gráficos no laptop. Um caleidoscópio.
Mutatis mutandis, como escrevem os advogados, essa miríade de sons e imagens me
faz recordar a primeira viagem que fiz com Luci, de Maceió a Delmiro Gouveia,
no início dos anos setenta. Em razão do plano estratégico do PCdoB, deveríamos
seguir a militância clandestina no Sertão alagoano. Deixaríamos a casa da Rua
do Meio, no Vergel do Lago e buscaríamos moradia ali na fronteira com a Bahia,
junto de Paulo Afonso. Terminamos encontrando casa bem antes, em Santana do
Ipanema - mas essa é outra história que agora não vem ao caso.
O ônibus era um típico pinga-pinga, parando onde houvesse gente para subir ou
para descer. Todo mundo carregava alguma coisa: sacolas, saco de feijão, cachos
de banana, gaiola com passarinho, cachorro de estimação e até galinhas. Uma
babel, todos falando ao mesmo tempo. Quantas horas durou nossa aventura não me
lembro, mas com certeza o longo trajeto, boa parte em estrada de barro batido,
muita poeira, o calor infernal tornaram-se plenamente suportáveis para o casal
que tudo enxergava com deslumbre. O olhar na paisagem que se transmudava ao
longo dos quilômetros rodados e os ouvidos atentos aos causos que se sucediam,
contados em voz alta. Afinal, ali estávamos para nos ligar ao povo da região,
fazer parte daquela vida e cumprir nossa missão revolucionária.
Agora no voo da TAM o barulho é menos, as coisas parecem seguir todas
rigorosamente em seus lugares, conforme as normas da aviação comercial, mas a
babel é parecida. Divertida. Até o esforço hercúleo do gordo bem postado no
assento da janela uma fila à frente para ir à toalete. O jovem de boné da
Ferrari que dormia a sono solto desperta contrafeito e se levanta lentamente
para dar passagem. O magricela sarará, mais ágil e impaciente, idem. O gordo,
pede desculpas seguidamente.
Agora é a minha vez de estirar as pernas e caminhar um pouco pelo corredor.
Erro fatal: lá do fundo da aeronave logo surge um gigante careca que se
apresenta como morador da Madalena, me chama de prefeito, elogia o prefeito
Geraldo e logo tenta me vender um colchão ortopédico com massagem
eletromagnética. Arre! Mas fui salvo pelo gongo: o comissário de bordo pede que
todos voltem aos seus assentos porque estamos iniciando os procedimentos para
pouso da aeronave. Felizmente.
.* Publicado no Jornal da Besta
Fubana em abril
de 2014
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Leia também: A bela mangueira que reina nesta selva de concreto armado https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/minha-opiniao_10.html
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