11 outubro 2025

Trump fascistóide

Mein Trumpf: o teste de lealdade de Trump às Forças Armadas dos EUA
Reunião em Quantico expõe tentativa de subordinar militares à figura do presidente dos Estados Unidos e a construção de um inimigo interno no país
Eduardo Siqueira/Portal Grabois www.grabois.org.br   

Trocando em Miúdos

Quanto mais rezamos, mais assombrações aparecem!!! Intitulei a minha última coluna como Neofascismo a olho nu para caracterizar o governo Trump como neofascista. Não passou sequer um mês após a publicação da coluna para termos outro exemplo claro de como os EUA caminham a passos largos para um regime neofascista com características estadunidenses.

Um “teste de lealdade” em Quantico

Trump e seu ministro da guerra, Pete Hegseth — que nunca foi comandante militar de nada nem tem autoridade moral ou corporativa nos Altos Comandos das Forças Armadas —, fizeram uma reunião no dia 30 de setembro com cerca de 800 oficiais de alta patente, incluindo almirantes e generais vindos de diferentes frentes de atuação militar estadunidense no mundo. A reunião foi mandatória para os oficiais e ocorreu em uma base do Corpo de Fuzileiros Navais em Quantico, Virgínia. Consistiu em horas de sermão ideológico, estilo chovinismo de grande potência, e ataques abertos às políticas para promover a diversidade, equidade e inclusão (Diversity, Equity and Inclusion ou DEI, em inglês) adotadas pelos militares nos governos democratas desde Clinton.

A reunião em Quantico tem sido comparada com a que ocorreu em 5 de novembro de 1937, em Berlim, quando Hitler se reuniu com um grupo seleto de líderes políticos e militares para discutir seus planos futuros para a política externa da Alemanha. O encontro em Berlim foi resumido no Memorando Hossbach, elaborado pelo coronel Friedrich Hossbach. Segundo o documento, Hitler afirmou que estava chegando a hora para uma guerra pelo Espaço Vital (Lebensraum, em alemão). Os alvos primários eram Áustria e Checoslováquia. O período ideal para a invasão seria entre 1943 e 1945, quando os nazistas acreditavam que a indústria alemã estaria completamente mobilizada para a guerra. Hitler declarou, entretanto, que a guerra poderia começar antes se outros países tivessem problemas internos, o que torna riam a guerra pelo Espaço Vital mais fácil. Para ele, a questão se resumia a quando e como a invasão aconteceria, e não se haveria ou não guerra.

Historiadores consideram que o Memorando Hossbach deu evidências sobre a linha política adotada pelos nazistas para detonar a Segunda Guerra Mundial. Para ler o documento em inglês, clique aqui.

Hegseth e a cruzada contra a “cultura woke”

Voltemos ao encontro em Quantico (EUA). O ministro da Guerra falou primeiro. Declarou que é hora de acabar com a cultura “woke” nas Forças Armadas, que, segundo ele, privilegiou grupos minoritários, políticas de gênero e orientação sexual no recrutamento e promoção de quadros. Anunciou a adoção de uma suposta “neutralidade de gênero”, na prática a restauração dos padrões masculinos de aptidão física, já que, segundo afirmou, não é aceitável ter soldados e comandantes gordos ou com mau preparo físico. Hegseth afirmou que os militares dos Estados Unidos têm promovido muitos líderes por razões equivocadas, baseadas em raça, cotas de gênero e no que ele chamou de “primeiros na história”. Disse ele:

“A  era do politicamente correto, a demasiada sensibilidade da liderança em não ferir os sentimentos de ninguém, acaba imediatamente em todos os níveis.”

Também avisou que vai relaxar as regras disciplinares, enfraquecer as proteções contra trote, e focar na remoção de barreiras que os militares colocaram em prática depois de numerosos escândalos e inquéritos nas três forças. Hegseth ordenou uma revisão das definições do Ministério sobre “a chamada liderança tóxica, bullying e trotes, a fim de empoderar os líderes para fazer cumprir normas sem medo de retaliações ou questionamentos”.

Autopromoção e retórica bélica: Trump assume o púlpito

Após o fim da sua intervenção sem pé nem cabeça, o ministro da Guerra anunciou Trump com elogios exagerados. Este, por sua vez, logo no início do seu sermão, tentou criar um clima descontraído com a plateia ao dizer o seguinte:

“Eu nunca entrei em uma sala tão silenciosa antes. Isto é muito interessante. Não riam, não riam. Vocês não têm permissão para isso. Quer saber? Só se divirtam. E se quiserem aplaudir, aplaudam. E se quiserem fazer qualquer coisa que quiserem, podem fazer qualquer coisa que quiserem. E se não gostarem do que eu digo, podem se retirar da sala. É claro, perderão a sua patente, perderão o seu futuro.”

A verborragia típica do presidente dos EUA usou e abusou de autocongratulações sobre resultados positivos de políticas supostamente implementadas pelo governo Trump 1.0, como fortalecimento das Forças Armadas, aumento da segurança nas fronteiras e o que ele acredita ser a melhor economia da história dos Estados Unidos. Ainda se vangloriou de mudar o nome do Ministério da Defesa para Ministério da Guerra, segundo ele, um nome popular que acabou tendo muito menos oposição da esquerda do que esperava. Também capitalizou a mudança do nome do Golfo do México para Golfo da América e criticou a Associated Press (AP) por não concordar com a mudança. Cantou vitória dizendo que ganhou da AP nos tribunais e o nome oficial passou a ser Golfo da America.

Uma das mentiras mais evidentes de todo o sermão foi quando Trump declarou ter terminado com sete guerras desde que tomou posse em janeiro, incluindo a guerra da Ucrânia, a do Oriente Médio e aquela entre o Paquistão e a Índia.

O chovinismo de grande potência foi exaltado quando afirmou:

“Juntos, estamos reavivando o espírito guerreiro, e este é o espírito que venceu e construiu esta nação. É o da cavalaria que domesticou à Grande Planície, ao poder feroz, inalterável de Patton, Bradley [sic], e o grande general Douglas MacArthur.”

Continuou na mesma toada ao vaticinar:

“Juntos, nos próximos anos, vamos tornar nossos militares mais fortes, mais duros, mais rápidos, mais ferozes e mais poderosos do que nunca foram antes.”

A referência à Grande Planície evoca o genocídio das tribos Sioux, Cheyenne, Sauk e outras das chamadas “primeiras nações” pelo exército e outros assassinos, glorificado por Teddy Roosevelt no livro Winning of the West (Vencendo no Oeste, em português).

Quanto ao poderio bélico, Trump gabou-se dos EUA terem maior poder nuclear, com submarinos melhores e mais novos do que os da China e da Rússia, embora ambos estejam próximos de atingir paridade em cinco anos. Concluiu esta parte do sermão reforçando o patriotismo dos oficiais:

“Como líderes, nosso compromisso com todo patriota que vista um uniforme é garantir que os militares americanos permanecerão como os mais letais e dominantes do planeta, não meramente por poucos anos, mas pelas décadas e gerações vindouras. Temos que ser tão fortes que nenhuma nação terá a ousadia de nos desafiar, tão poderosos que nenhum inimigo terá a ousadia de nos ameaçar e tão capazes que nenhum adversário pode sequer pensar em nos derrotar.”

Não faltaram críticas ácidas ao governo Biden, acusado de ser o presidente de um governo incompetente, que assinava decretos sem ter conhecimento do seu conteúdo, como um autômato, e de liderar uma administração que enfraqueceu as Forças Armadas com políticas de diversidade, equidade e inclusão, conhecidas como “woke” em inglês, reforçando o que já havia dito seu ministro. Trump acusou Biden e os democratas de serem responsáveis pela redução do poder militar dos EUA através destas políticas, que para ele, desprezaram o mérito como principal critério de promoções:

“Nós vamos ser melhores do que jamais fomos antes. Estamos trazendo de volta o foco em aptidão, habilidade, caráter e força. Isso ocorre porque o propósito dos militares americanos não é proteger o sentimento de alguém. É proteger nossa república. Nós não seremos politicamente corretos quando se trata de defender a liberdade na América. Seremos uma máquina de lutas e vitórias.”

Em relação à economia, Trump exaltou a palavra “tarifa”. Avaliada por ele como a mais bonita no dicionário da língua inglesa, teria passado a ser a quinta palavra preferida, depois de amor, Deus, religião, e esposa/família. Com ironia, o presidente disse que, recentemente, um “cara financeiro” descobriu 31 bilhões de dólares provenientes de tarifas, e que o país agora estaria rico ao cobrar tributos de importação, já que antes outras nações se aproveitavam dos EUA. Aproveitou o episódio para afirmar que essa quantia seria suficiente para construir novos navios de guerra, acenando à Marinha com a promessa de investimento no setor naval.

A doutrina do “inimigo interno”

Nenhuma grande novidade sobre a política externa dos EUA emergiu, nem nada significativo foi mencionado sobre estratégia militar nas diversas guerras imperiais em que os Estados Unidos estão envolvidos em todo o mundo. O foco, porém, deslocou-se para dentro das fronteiras, com a construção de um novo “inimigo interno”. Trump afirmou:

“Estamos sob uma invasão interna, não diferente de um inimigo estrangeiro — mas, em muitos aspectos, mais difícil de combater, porque eles não usam uniformes. Pelo menos, quando usam uniformes, você pode eliminá-los. Essas pessoas não têm uniformes. Mas estamos sendo invadidos por dentro, e estamos detendo isso muito rapidamente.”

Para Trump, é a sociedade civil que protesta contra o neofascismo em curso que ameaça a segurança do país.

Reações e alertas contra o autoritarismo

Durante todo o encontro, a reação dos oficiais presentes foi de silêncio e muito pouca expressão facial de concordância ou discordância com o verdadeiro “carão” que foi o sermão de Trump e Hegseth, como se fossem alunos de novos professores que se acham os melhores do mundo. O general Ben Hodges, que foi comandante-geral do Exército dos Estados Unidos na Europa, criticou a reunião no X ao compará-la com a que ocorreu em Berlim, na Alemanha de Weimar, quando generais foram convocados para jurar lealdade a Hitler acima da Constituição.

Muitos outros oficiais da reserva e quadros do Pentágono deram declarações anonimamente nos últimos dias, em franca oposição aos discursos de Hegseth e Trump. Uma das críticas mais interessantes foi feita por Virginia Burger, analista sênior de políticas de defesa na Organização Não Governamental “Projeto de Supervisão do Governo”:

“Tropas de alta letalidade patrulhando as cidades americanas colocam a questão — quem são os adversários que esses soldados têm a responsabilidade de lutar contra? Quais são os riscos para as liberdades civis e a segurança pública dos americanos se os militares — a força construída para matar e lutar em guerras — estão agora nas ruas deles? Estas são indicações e alertas para um crescente autoritarismo que têm que ser identificados e respondidos pelo Congresso.”

Incidentes violentos para reprimir protestos pacíficos nas últimas semanas indicam que uma nova guerra foi declarada por Trump contra aqueles que se mobilizam em oposição à deportação e perseguição de imigrantes, contra os residentes em cidades onde o Partido Democrata tem grande número de eleitores negros e/ou latinos, ou onde a população branca é solidária com as minorias. Em poucas palavras, onde a oposição ao neofascismo tende a ser mais forte e crescente.

Sem dúvida, há também um cálculo eleitoral na decisão de reprimir os setores mais avançados na luta contra o regime trumpista, componente importante na legitimação do neofascismo a olho nu, por meio de uma vitória nas eleições de meio de mandato em 2026. Sem dúvida, o mais importante a se depreender do que houve em Quantico são as novas regras de conduta para os militares: lealdade completa ao governo Trump ou represálias a quem se opuser ao ditador.

Um espetáculo ridículo que demonstra o desespero de um império decadente, empenhado em enquadrar seus principais quadros militares a uma camisa de força de lealdade absoluta ao presidente, acima da Constituição do país. Daqui para a frente, o governo Trump tende a associar o atual desregramento internacional — que substituiu a antiga ordem baseada em normas ditadas pelo imperialismo dos Estados Unidos — a uma versão doméstica da malfadada doutrina de segurança nacional, nos moldes da que vigorou durante a ditadura no Brasil.

Cada vez mais, as diferenças entre o vale-tudo na política externa e o novo vale-tudo na política interna vão deixando de existir — sinal de que a decadência do império não tem limites e de que o desespero dos neoconservadores está no posto de comando do governo Trump 2.0.

Não pretendi, nesta coluna, comentar todo o sermão ironicamente intitulado Mein Trumpf por Paul Street, na revista Counterpunch. Selecionei alguns pontos que revelam bem os objetivos implícitos da reunião, pois as intervenções de Trump nunca são lineares e misturam leitura de discursos previamente escritos por assessores de imprensa com improvisos e comentários fora do script. A leitura da transcrição inteira da tortuosa reunião em Quantico exige habilidade para separar o que foi lido no teleprompter do que foi dito impromptu pelo presidente.

Eduardo Siqueira é professor na Universidade de Massachusetts, Boston, EUA e pesquisador do Observatório Internacional da FMG.

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Veja também: O mundo em transição e a atualidade da luta pelo socialismo https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/o-mundo-em-transicao-e-atualidade-da.html

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