A escola sem manual de instruções
O paradigma da
transmissão de saber tornou a sala de aula um baluarte de certezas e ordem. Mas
podemos recriá-la como espaço de crítica e experimentação, onde a teoria é
amiga dos saberes mundanos. Isso vale para escolas – e para a vida
Antonio
Lafuente | Tradução: Rôney
Rodrigues/Outras palavras
Na sala de aula a
transmissão do saber é considerada um fato inquestionável. O saber é
transmitido dos professores aos alunos, dos centros para as periferias e das
metrópoles para as colônias. Todo o aparato educacional, desde seus manuais ou
leis até suas salas de aula ou prédios, reivindica a certeza da transmissão com
fé cega.
Não é fácil
questionar o axioma civilizacional de que o conhecimento vai daqueles que sabem
aos que não sabem, dos de cima para os de baixo e, já em termos geopolíticos,
do norte para o sul. E assim facilmente as práticas de tutelagem, as políticas
de dependência e as economias de escassez são legitimadas. A ordem precisa de
regras tão simples quanto eficientes. Se a gravitação universal descreve como
os corpos caem, a da transmissão global prescreve como os conhecimentos
circulam.
Os livros são
repositórios de certezas; os professores, mentores daquilo que é certo; as
salas de aula, caixas de ressonância sincronizadas; e as escolas, baluartes da
melhor ordem possível. Cada aula é uma confirmação da estabilidade que
necessitamos e as provas é de que estamos no caminho certo. A transmissão do
saber é o fio que costura tudo, a seiva que alimenta o organismo e a pedra que
sustenta a construção.
Temos evidências,
no entanto, de que as coisas poderiam ser contadas de outra forma. Há alguns
dias eu estava lendo um texto do meu amigo brasileiro, Moises Alves de
Oliveira, que descreve o que significou a introdução do ensino de química
experimental nas escolas do Brasil. Desde o final do século XIX, tornou-se
constante a prática de adquirir instrumentos científicos em escolas de todo o
mundo para, assim, estimular os alunos a entrarem em contato com a natureza
experimental de certos saberes. Supõe-se que os alunos replicaram experimentos
e verificaram o que seu manual sentenciava.
Os experimentos
então, vistos a partir da sala de aula, eram o meio utilizado pelos cientistas
para confirmar suas teorias e os alunos aprendizes do certo. Em química, no
entanto, com frequência acontecia de os reagentes necessários estivessem
vencidos, contaminados ou degradados. Os professores tiveram então que suprir
essas deficiências inovando os procedimentos para conseguir que os resultados
se aproximassem o máximo possível do que prescrevia o manual de instruções.
Os professores
pensavam que sua função consistia em confirmar o que já era sabido. Falhar era
impossível. E, quando isso era inevitável, atribuíam o fracasso incipiente à
sua incapacidade de replicar ou à sua incompetência em atuar como um verdadeiro
acadêmico. O sistema conspirava para que as regras fossem cumpridas e que fosse
rechaçada qualquer sombra de incerteza. Os professores eram obrigados a mostrar
que em sua sala de aula as leis da natureza também era cumpridas. E eles se
ajustavam para conseguir isso. E para alcançá-lo, obrigaram-se a um exercício
de inovação que convertia a sala de aula em um verdadeiro espaço de
experimentação.
A sala de aula
deixava de ser um espaço concebido para a transmissão de saber e convertia em
um espaço de produção. Já não se trabalhava para confirmar o que se sabia, mas
para entender as condições de produção dos fatos confiáveis. Os professores não
atuavam como técnicos de laboratório submissos e neutros. Eles não eram um
simulacro de cientistas, pois as circunstâncias os obrigavam a operar como
fazem os pesquisadores profissionais. Tiveram que abrir mão do propósito
prescrito e inventar como trabalhar a partir do aproximado, do incompleto e do
provisório.
Eles descobriram o
usual nas práticas experimentais. Aprenderam que na ciência não existe o
perfeito e que tudo permanece sempre em aberto: nada é absoluto ou definitivo.
Para o nosso professor de química citado, ensinar não era transmitir o que já
se sabia, mas experimentar o que era possível. Ensinar deixou de ser um ofício
retórico e se converteu, como nos ensina Jorge Larrosa, em um trabalho para
artesões. Aprender, como consequência, não era replicar, mas refazer,
reconfigurar ou redesenhar.
O exemplo do
professor de química brasileiro não é anedótico. Recordamo-lo porque nos
convida a considerar a sala de aula como um espaço crítico, um lugar onde nunca
ocorrem as condições ideais de replicação imaginadas nos gabinetes ministeriais
ou nos manuais de instruções. Um lugar, então, onde os professores estão sempre
improvisando, onde a cada dia a ordem ameaçada é restaurada, onde tudo é
instável, inseguro e inefável. A sala de aula seria então um dos espaços por
excelência da crítica.
Passamos décadas
pensando em como fazer manuais de instruções. É fundamental para organizações
industriais ou administrativas que a mediação entre produtos e usuários seja
feita por um simples manual de instruções. Isso poupa muito trabalho e muito
tempo. Um bom manual de instruções estabiliza o mundo, cria a ilusão de que as
coisas funcionam e de que tudo está sob controle. Os fatos, porém, demonstram
que os usuários não entendemos o que nos dizem e que estamos sempre
improvisando. Não é que eles estejam mal redatados ou que não tenha havido
inteligência em sua construção. Não é isso. O problema é que o usuário médio a
quem são direcionados não existe. Não é que sejamos estúpidos, mas sim que
somos muito criativos. Os manuais de instruções, inclusive os interativos,
assumem que a linguagem não é polissêmica, que o leitor é imparcial e que as
circunstâncias são neutras. Mas isso nunca ocorre. Tampouco na sala de aula.
As máquinas geram
seu mundo. Nos colocam a seu serviço. E esperam que o façamos sem resistência.
Um manual de uso não se limita a nos dizer como usar uma máquina corretamente,
mas contém o germe de um princípio de subordinação. Nos treina para aceitar que
só é possível o mundo garantido pelas infraestruturas. E por isso faz tanto
sentido falar de infraestruturas como garantia dos nossos direitos e como
epítome da economia dos cuidados. O fato dos manuais de instruções parecerem
pouco claros, assim como a relutância em obedecê-los, contém a esperança de que
as coisas possam ser diferentes de como os projetistas as imaginaram. O que
sabemos é que a relação entre humanos e máquinas não é entendida como uma
interação entre duas entidades independentes, mas devemos imaginá-la como uma
relação de coprodução mútua.
Na sala de aula
quase nunca acontece o que quem fez os materiais didáticos imaginou. O
imprevisível sempre acontece. Nunca impera isso que chamamos de normalidade. O
normal é uma ficção burocrática, distante e abstrata, como conta Paulo Freire
em El maestro sin recetas. E embora todo o panorama educacional
esteja repleto de leis, portarias, instruções, manuais e materiais didáticos, a
verdade é que deveríamos entender melhor o que acontece na sala de aula,
assumindo que o caos é o contexto onde a educação acontece. E mais do que
censurar os professores que não sabem, não entendem ou não se esforçam,
deveríamos imaginá-los como atores experientes em inovação pedagógica.
A sala de aula,
então, não seria um espaço para transmitir o saber, mas sim para experimentar
com os manuais de instrução e com a precariedade de materiais, das
temporalidades e dos resultados. Nada é como foi imaginado, mesmo que se
pareça, e reconhecer essa nuance equivale a admitir que não improvisamos por
ignorância, mas por responsabilidade. O paradigma da transmissão teria de ser
substituído pelo da experimentação. À escola não iríamos à escola para
adicionar novos conteúdos, mas para adaptá-los às nossas circunstâncias.
E se vale a pena na
escola, deve valer na vida. As escolas, de repente, estariam cheias de pessoas
talentosas e dedicadas, em vez de ocupadas por pessoas preguiçosas, obsoletas e
reformáveis. A sala de aula não seria imaginada como mais um espaço de
escassez, mas como um espaço criativo, emergente e inovador. As leis, como
outros manuais de instruções, em vez de focarem na suposta necessidade de mudar
a vida na sala de aula, deveriam se reconciliar com a ideia de que a
experimentação é o motor do que ali acontece. E isso implica confiar, porque o
melhor dos livros de receitas e de qualquer outra forma de ensinar é que nos
obrigam a improvisar para que eles sejam adaptados ao contexto em que vivemos.
E chamamos isso de aprendizado.
Leia
também: A educação diante dos desafios da contemporaneidade https://bit.ly/3DRbvEp
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