QUANDO UM POETA VIRA ENCRUZILHADA
GUILHERME GONTIJO FLORES, revista ‘continente”
falaste?
turvaste a água!
(extração
de um canto nyaneka, por
Ruy Duarte de Carvalho)
Os contatos da literatura
brasileira com o resto da lusofonia ainda são terrivelmente desiguais: se, por
um lado, temos uma atenção até bem-estabelecida com o que acontece no cenário
português; por outro, conhecemos muito menos do que deveríamos da literatura
africana em geral, ou mesmo do que acontece em Macau, na Ásia. Por isso,
algumas peças fundamentais por vezes demoram um prazo desmedido para chegar até
nós. Felizmente, vez por outra, alguma peça dessas chega em tempo certo, ainda
que tarde. É precisamente o caso de Ondula, savana branca,
de Ruy Duarte de Carvalho, que acaba de sair na coleção Círculo de Poemas, um
projeto em parceria das editoras Luna Parque e Fósforo.
Alguém poderá dizer
que Ruy Duarte de Carvalho não é um escritor africano, já que nasceu em Santarém,
cidade de Portugal, em 1941. No entanto, foi no município de Moçâmedes, em
Angola, que ele passou boa parte da infância, antes de retornar a Portugal em
1955, onde terminou seus estudos. Mas em 1971 ele segue de volta a Angola, onde
irá organizar sua vida e sua obra, no cinema, nas artes plásticas, na
literatura, na antropologia e no ensino, na Universidade de Luanda; bem como
participar da luta pela libertação da então colônia. Tanto é assim, que em 1983
recebeu nacionalidade angolana e seguiu dedicando sua vida à terra africana,
até morrer na Namíbia em 2010.
Do autor, eu sabia
apenas do romance Os papéis do inglês, publicado no
Brasil pela Companhia das Letras, em 2007, e do diário de viagens
ensaístico, Desmedida, publicado aqui pela
Língua Geral. Ou seja, mesmo tendo vivido um tempo no Brasil, os seus 12 livros
de poesia permaneciam singularmente inéditos por estas bandas até 2022, 12 anos
depois da sua morte.
Apesar de ser um
título único, o que temos neste volume é, na verdade, a junção de dois livros: Ondula, savana branca, de 1982, e Observação directa, de 2000. Não é uma escolha
aleatória: ainda que separadas por 18 anos, as duas obras têm uma profunda
unidade interna, já que ambas são realizadas por meio de traduções poéticas de
quase 20 etnias diferentes espalhadas por quase todos os espaços da África
Subsariana. Estamos, pois, diante de dois livros de complexa noção de autoria,
na medida mesma em que são assumidamente traduções (as notas do autor
explicitam até de que fontes ele tomou suas bases) ao mesmo tempo em que os
livros são de Ruy Duarte de Carvalho, que ao seu modo assume responsabilidade
pela seleta e pela tradução que se torna poesia em língua portuguesa. Em certo
sentido, esses experimentos se aproximam de obras poéticas que incorporam vozes
outras, à margem da tradição literária ocidental, tais como O bebedor noturno, do também lusitano Herberto
Helder, Roça barroca, da paranaense Josely Vianna Baptista,
ou Homeless, do mineiro Edimilson de Almeida Pereira, para
ficarmos em apenas três exemplos de poesia em que dialoga de modo intenso com
poéticas orais de alguns povos e comunidades.
Duarte de Carvalho,
na sua nota introdutória, nos explica que Ondula, savana branca se
organiza em três partes, “versões”, “derivações” e “reconversões”, para
funcionarem como “um livro de poesia”. Assim, ele nos explica os três
procedimentos. A citação é um pouco longa, mas se justifica para esclarecer o
projeto e os métodos:
1. Adaptar para a
língua portuguesa versões já divulgadas noutras línguas de grande expansão;
2. Devolver ou
atribuir a algumas versões fixadas em português uma configuração e dimensão
poéticas que as traduções existentes apenas permitiam reconhecer, sem contudo
configurar;
3. Transformar em
poesia algum material que, fixado já, embora dotado de uma carga poética
evidente, não poderia, tal como se apresentava, ser remetido às esferas das
produções poéticas normalmente reconhecidas como tal;
4. Disponibilizar,
para um público de poesia, produções recolhidas e traduzidas por etnógrafos, às
quais no entanto é de admitir que apenas tivessem tido acesso especialistas
mais preocupados com o interesse informativo dos testemunhos do que com as suas
qualidades, potencialidades ou natureza literária.
Ao capítulo versões corresponderá a modalidade (1). Trabalhei
aí, de facto, peças formalmente estabelecidas já como poesia em língua francesa
ou inglesa. A modalidade (2) foi a que utilizei no tratamento do material kwanyama do capítulo derivações, aproveitando traduções literais de cantos e
de imprecações que, conforme os casos, refundi, aglutinei ou reordenei. O
material nyaneka desse mesmo capítulo foi estabelecido de
acordo com a modalidade (3), operando sobre uma colecção de provérbios. O mesmo
quanto ao material bambara, na sua
origem uma sequência de máximas iniciáticas, cujo tratamento, no entanto,
remete também para o enunciado na modalidade (4) em que, por sua vez, assenta a
elaboração do texto peul, que constitui
o capítulo reconversões.
Ou seja, tudo se
transforma para manter sua potência de poesia e para tirar dessas poéticas um
ar de puro exotismo ou de leitura para especialistas em antropologia. O sucesso
pode ser visto num poema como este, que é uma “versão” do iorubá:
Yoruba
Três amigos eu tinha.
Pediu-me o primeiro
que dormisse na
esteira.
Pediu-me o segundo
que dormisse no chão.
Pediu-me o terceiro
para dormir no seu
peito.
Cedi à voz do
terceiro
e vi-me transportado
a um grande rio.
E do rio eu vi o rei
e o rei do sol.
E vi palmeiras
tão carregadas de
fruto
que o peso as vergava
e as palmeiras
morriam.
É também
impressionante o grande canto iniciático peul que
ocupa toda a parte das “Reconversões”. Cito apenas a décima clareira, que
guarda parte do seu saber de mistério, iniciação e corporalidade:
Décima clareira
Eis-nos chegados,
deusa minha esposa
Foforondou, rainha da
manteiga.
trago comigo um
convidado nobre
agradável conviva.
É um Peul ansioso
pelas coisas do gado.
À deusa do leite vem
buscar conselho.
Não te enfureças por
trazê-lo aqui
à luz laranja deste
sol que é chama.
Nem acto nem palavra
serão rudes que
chegue para o fazer partir.
Eu te conjuro, deusa
do leite
pelo grande
sacrificador dos sete raios, teu pai
a introduzi-lo na
clareira vermelha
onde mostrará se é
digno do curral.
Já no livro Observação directa, Ruy Duarte de Carvalho retoma
procedimentos de Ondula, savana branca, ao mesmo
tempo em que opera novas mudanças e torções, já que vai assumidamente realizar
“extracções” que se voltam com mais fôlego e mais experimentalismo para três
povos: Nyaneka, Kwanyama e Kuvale. Nesse caso, sua observação direta é também
um engajamento muito direto em fazer dessas poéticas novas potências de poesia
contemporânea, o que fica sugerido também pelas espacializações, ou pelo uso
singular dos sinais gráficos.
Extrações kuvale: memórias nominais IV
é bom mas brusco e o
julgam mal por isso
ferve-lhe o sangue
esquece o que não deve
mas não engole a
afronta.
entende o
agravo
mede-lhe o gosto
depois cospe fora
não deixa aziar.
... podia acusar
calado é que ajuda...
... convidam, vai
mas sem pressa...
: insiste só em
cobrar
a promessa
desmentida.
O livro ainda conta
com um posfácio da poeta, tradutora e professora Prisca Agustoni, que dá início
a uma recepção crítica para a obra e permite uma reflexão somada às notas
informativas do próprio autor. Digo que “dá início”, porque a crítica aqui se
junta e se funde à publicação do livro: não podemos esquecer que temos, há
algumas décadas, um crescente interesse acadêmico pelas literaturas lusófonas
africanas; porém, sem sua publicação em território brasileiro, boa parte da
discussão ficava mesmo reservada a especialistas que se dedicavam e dedicam a
fazer essas poéticas circularem, aos trancos e barrancos, por nosso complexo
Atlântico Negro. Prisca Agustoni é uma dessas figuras luminares, com o
importante livro O Atlântico em movimento, de 2013;
daí sua importância ainda maior no posfácio, atrelando leitura poética e
compreensão erudita das questões em jogo.
Ao fim e ao cabo, a
publicação de dois livros singulares e, em certo aspecto, difíceis assim, chega
em bom momento. Vemos um crescendo de interesse por poéticas indígenas, sejam
elas ameríndias sejam de matriz africana no Brasil e na América como um todo; o
que se desdobra numa maior procura por poéticas indígenas de outros
continentes.
Ao mesmo tempo, uma
obra híbrida e arriscada como essas duas pode levantar perguntas ligadas ao
problema da apropriação, ou mesmo ao lugar de fala, já que Ruy Duarte de
Carvalho nasceu branco na metrópole colonial. Este me parece o último ponto
fundamental, porque esboça uma ética possível para beber numa “etnopoesia” (o termo
muito me desagrada, por guardar certo etnocentrismo inerente ao olhar sobre o
“outro”). Duarte de Carvalho faz o caminho difícil: traduz línguas que
desconhece, dá todas as notas bibliográficas, desfazendo o elã místico que se
poderia esperar. Isto é, ele a um só tempo guarda o rigor ético de assumir-se
precário no empenho humano e a franqueza de pretender-se poeta responsável pela
obra que nasce no presente.
Em outras palavras, a
constante transparência do seu fazer poético, sua desmistificação quase
integral, longe de se tornar uma apropriação abusiva do conteúdo de tradições
inteiras de diversos povos subjugados pela máquina imperial europeia, ressurge
como um gesto de convívio precário e humano, como me parece ser a missão de
qualquer poesia nestes nossos tempos sombrios. Ondula,
savana branca e Observação directa não
nos fingem oferecer um acesso direto e puro de poéticas africanas muito
diversas; mas, sim, a relação poéticas que Duarte de Carvalho, como grande
poeta, foi capaz de estabelecer bebendo – das maneiras mais variadas possíveis
– para assim produzir um livro que fica inteiro sob sua responsabilidade. Seu
gesto é o de provocar um cruzamento deliberado de tradições, uma encruzilhada
móvel que ainda nos dá muito o que ler, ouvir, sentir, pensar. São aberturas de
parentescos eletivos, e um canto kuvale nos
lembra: “onde há parente/ sempre sobra herança”.
GUILHERME GONTIJO FLORES, poeta, tradutor e professor na UFPR. Autor de carvão :: capim, História de Joia, Potlatch, Tradução-Exu e Uma A Outra Tempestade (os dois últimos com André Capilé) entre outros, publicou traduções de Robert Burton, Propércio, Milton, Safo, Rabelais e Celan, entre outros. Foi coeditor da revista blog escamandro e é membro da banda Pecora Loca
.Veja: Na 20ª Festa Literária Internacional de Paraty, Cida Pedrosa lança seu novo livro "Araras vermelhas" https://bit.ly/3TvexT0
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