27 novembro 2022

Literatura afro-portuguesa

QUANDO UM POETA VIRA ENCRUZILHADA

GUILHERME GONTIJO FLORES, revista ‘continente”
 
 
falaste?
turvaste a água!
(extração de um canto nyaneka, por Ruy Duarte de Carvalho)

 

Os contatos da literatura brasileira com o resto da lusofonia ainda são terrivelmente desiguais: se, por um lado, temos uma atenção até bem-estabelecida com o que acontece no cenário português; por outro, conhecemos muito menos do que deveríamos da literatura africana em geral, ou mesmo do que acontece em Macau, na Ásia. Por isso, algumas peças fundamentais por vezes demoram um prazo desmedido para chegar até nós. Felizmente, vez por outra, alguma peça dessas chega em tempo certo, ainda que tarde. É precisamente o caso de Ondula, savana branca, de Ruy Duarte de Carvalho, que acaba de sair na coleção Círculo de Poemas, um projeto em parceria das editoras Luna Parque e Fósforo.

Alguém poderá dizer que Ruy Duarte de Carvalho não é um escritor africano, já que nasceu em Santarém, cidade de Portugal, em 1941. No entanto, foi no município de Moçâmedes, em Angola, que ele passou boa parte da infância, antes de retornar a Portugal em 1955, onde terminou seus estudos. Mas em 1971 ele segue de volta a Angola, onde irá organizar sua vida e sua obra, no cinema, nas artes plásticas, na literatura, na antropologia e no ensino, na Universidade de Luanda; bem como participar da luta pela libertação da então colônia. Tanto é assim, que em 1983 recebeu nacionalidade angolana e seguiu dedicando sua vida à terra africana, até morrer na Namíbia em 2010.

Do autor, eu sabia apenas do romance Os papéis do inglês, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 2007, e do diário de viagens ensaístico, Desmedida, publicado aqui pela Língua Geral. Ou seja, mesmo tendo vivido um tempo no Brasil, os seus 12 livros de poesia permaneciam singularmente inéditos por estas bandas até 2022, 12 anos depois da sua morte.

Apesar de ser um título único, o que temos neste volume é, na verdade, a junção de dois livros: Ondula, savana branca, de 1982, e Observação directa, de 2000. Não é uma escolha aleatória: ainda que separadas por 18 anos, as duas obras têm uma profunda unidade interna, já que ambas são realizadas por meio de traduções poéticas de quase 20 etnias diferentes espalhadas por quase todos os espaços da África Subsariana. Estamos, pois, diante de dois livros de complexa noção de autoria, na medida mesma em que são assumidamente traduções (as notas do autor explicitam até de que fontes ele tomou suas bases) ao mesmo tempo em que os livros são de Ruy Duarte de Carvalho, que ao seu modo assume responsabilidade pela seleta e pela tradução que se torna poesia em língua portuguesa. Em certo sentido, esses experimentos se aproximam de obras poéticas que incorporam vozes outras, à margem da tradição literária ocidental, tais como O bebedor noturno, do também lusitano Herberto Helder, Roça barroca, da paranaense Josely Vianna Baptista, ou Homeless, do mineiro Edimilson de Almeida Pereira, para ficarmos em apenas três exemplos de poesia em que dialoga de modo intenso com poéticas orais de alguns povos e comunidades.

Duarte de Carvalho, na sua nota introdutória, nos explica que Ondula, savana branca se organiza em três partes, “versões”, “derivações” e “reconversões”, para funcionarem como “um livro de poesia”. Assim, ele nos explica os três procedimentos. A citação é um pouco longa, mas se justifica para esclarecer o projeto e os métodos:

1. Adaptar para a língua portuguesa versões já divulgadas noutras línguas de grande expansão;

2. Devolver ou atribuir a algumas versões fixadas em português uma configuração e dimensão poéticas que as traduções existentes apenas permitiam reconhecer, sem contudo configurar;

3. Transformar em poesia algum material que, fixado já, embora dotado de uma carga poética evidente, não poderia, tal como se apresentava, ser remetido às esferas das produções poéticas normalmente reconhecidas como tal;

4. Disponibilizar, para um público de poesia, produções recolhidas e traduzidas por etnógrafos, às quais no entanto é de admitir que apenas tivessem tido acesso especialistas mais preocupados com o interesse informativo dos testemunhos do que com as suas qualidades, potencialidades ou natureza literária.

Ao capítulo versões corresponderá a modalidade (1). Trabalhei aí, de facto, peças formalmente estabelecidas já como poesia em língua francesa ou inglesa. A modalidade (2) foi a que utilizei no tratamento do material kwanyama do capítulo derivações, aproveitando traduções literais de cantos e de imprecações que, conforme os casos, refundi, aglutinei ou reordenei. O material nyaneka desse mesmo capítulo foi estabelecido de acordo com a modalidade (3), operando sobre uma colecção de provérbios. O mesmo quanto ao material bambara, na sua origem uma sequência de máximas iniciáticas, cujo tratamento, no entanto, remete também para o enunciado na modalidade (4) em que, por sua vez, assenta a elaboração do texto peul, que constitui o capítulo reconversões.

Ou seja, tudo se transforma para manter sua potência de poesia e para tirar dessas poéticas um ar de puro exotismo ou de leitura para especialistas em antropologia. O sucesso pode ser visto num poema como este, que é uma “versão” do iorubá:

 

Yoruba

Três amigos eu tinha.

 

Pediu-me o primeiro

que dormisse na esteira.

Pediu-me o segundo

que dormisse no chão.

Pediu-me o terceiro

para dormir no seu peito.

 

Cedi à voz do terceiro

e vi-me transportado a um grande rio.

 

E do rio eu vi o rei

e o rei do sol.

 

E vi palmeiras

tão carregadas de fruto

que o peso as vergava

e as palmeiras morriam.

 

É também impressionante o grande canto iniciático peul que ocupa toda a parte das “Reconversões”. Cito apenas a décima clareira, que guarda parte do seu saber de mistério, iniciação e corporalidade:

 

Décima clareira

Eis-nos chegados, deusa minha esposa

Foforondou, rainha da manteiga.

trago comigo um convidado nobre

agradável conviva.

É um Peul ansioso pelas coisas do gado.

À deusa do leite vem buscar conselho.

 

Não te enfureças por trazê-lo aqui

à luz laranja deste sol que é chama.

Nem acto nem palavra

serão rudes que chegue para o fazer partir.

 

Eu te conjuro, deusa do leite

pelo grande sacrificador dos sete raios, teu pai

a introduzi-lo na clareira vermelha

onde mostrará se é digno do curral.

 

Já no livro Observação directa, Ruy Duarte de Carvalho retoma procedimentos de Ondula, savana branca, ao mesmo tempo em que opera novas mudanças e torções, já que vai assumidamente realizar “extracções” que se voltam com mais fôlego e mais experimentalismo para três povos: Nyaneka, Kwanyama e Kuvale. Nesse caso, sua observação direta é também um engajamento muito direto em fazer dessas poéticas novas potências de poesia contemporânea, o que fica sugerido também pelas espacializações, ou pelo uso singular dos sinais gráficos.

 

Extrações kuvale: memórias nominais IV

é bom mas brusco e o julgam mal por isso

ferve-lhe o sangue esquece o que não deve

 

mas não engole a afronta.

 

 entende o agravo

mede-lhe o gosto

 

depois cospe fora

não deixa aziar.

 

... podia acusar

calado é que ajuda...

 

... convidam, vai

mas sem pressa...

 

: insiste só em cobrar

a promessa desmentida.

O livro ainda conta com um posfácio da poeta, tradutora e professora Prisca Agustoni, que dá início a uma recepção crítica para a obra e permite uma reflexão somada às notas informativas do próprio autor. Digo que “dá início”, porque a crítica aqui se junta e se funde à publicação do livro: não podemos esquecer que temos, há algumas décadas, um crescente interesse acadêmico pelas literaturas lusófonas africanas; porém, sem sua publicação em território brasileiro, boa parte da discussão ficava mesmo reservada a especialistas que se dedicavam e dedicam a fazer essas poéticas circularem, aos trancos e barrancos, por nosso complexo Atlântico Negro. Prisca Agustoni é uma dessas figuras luminares, com o importante livro O Atlântico em movimento, de 2013; daí sua importância ainda maior no posfácio, atrelando leitura poética e compreensão erudita das questões em jogo.

Ao fim e ao cabo, a publicação de dois livros singulares e, em certo aspecto, difíceis assim, chega em bom momento. Vemos um crescendo de interesse por poéticas indígenas, sejam elas ameríndias sejam de matriz africana no Brasil e na América como um todo; o que se desdobra numa maior procura por poéticas indígenas de outros continentes.

Ao mesmo tempo, uma obra híbrida e arriscada como essas duas pode levantar perguntas ligadas ao problema da apropriação, ou mesmo ao lugar de fala, já que Ruy Duarte de Carvalho nasceu branco na metrópole colonial. Este me parece o último ponto fundamental, porque esboça uma ética possível para beber numa “etnopoesia” (o termo muito me desagrada, por guardar certo etnocentrismo inerente ao olhar sobre o “outro”). Duarte de Carvalho faz o caminho difícil: traduz línguas que desconhece, dá todas as notas bibliográficas, desfazendo o elã místico que se poderia esperar. Isto é, ele a um só tempo guarda o rigor ético de assumir-se precário no empenho humano e a franqueza de pretender-se poeta responsável pela obra que nasce no presente.

Em outras palavras, a constante transparência do seu fazer poético, sua desmistificação quase integral, longe de se tornar uma apropriação abusiva do conteúdo de tradições inteiras de diversos povos subjugados pela máquina imperial europeia, ressurge como um gesto de convívio precário e humano, como me parece ser a missão de qualquer poesia nestes nossos tempos sombrios. Ondula, savana branca Observação directa não nos fingem oferecer um acesso direto e puro de poéticas africanas muito diversas; mas, sim, a relação poéticas que Duarte de Carvalho, como grande poeta, foi capaz de estabelecer bebendo – das maneiras mais variadas possíveis – para assim produzir um livro que fica inteiro sob sua responsabilidade. Seu gesto é o de provocar um cruzamento deliberado de tradições, uma encruzilhada móvel que ainda nos dá muito o que ler, ouvir, sentir, pensar. São aberturas de parentescos eletivos, e um canto kuvale nos lembra: “onde há parente/ sempre sobra herança”. 

GUILHERME GONTIJO FLORES, poeta, tradutor e professor na UFPR. Autor de carvão :: capim, História de Joia, Potlatch, Tradução-Exu e Uma A Outra Tempestade (os dois últimos com André Capilé) entre outros, publicou traduções de Robert Burton, Propércio, Milton, Safo, Rabelais e Celan, entre outros. Foi coeditor da revista blog escamandro e é membro da banda Pecora Loca


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