Livro de Cida Pedrosa celebra idealismo da Guerrilha do
Araguaia
'Araras Vermelhas', da
vencedora do Jabuti, refaz poeticamente episódios dramáticos de movimento
reprimido pela ditadura
Alcir Pécora, Folha de S. Paulo
"Araras Vermelhas", da pernambucana Cida Pedrosa,
refaz poeticamente alguns episódios dramáticos da Guerrilha do Araguaia.
Na primeira obra lançada desde que venceu o Jabuti de livro do ano, em 2020, a
autora celebra o idealismo radical dos jovens guerrilheiros do
PCdoB, que tão cedo ali deixaram a vida, e, na mesma medida, denuncia a
história de horror desencadeada pela repressão militar, até hoje impune no
Brasil.
Basta isso para atribuir relevância ao livro de Pedrosa, que vai
na direção contrária ao esforço de apagamento do que se passou na região do
Bico do Papagaio, na tríplice fronteira dos estados do Pará, Maranhão e o atual
Tocantins, quando o Centro de Inteligência do Exército operou decididamente
para aniquilar os guerrilheiros.
Não há dúvidas sobre os crimes cometidos: vários guerrilheiros
foram executados depois de presos e torturados, tendo as cabeças arrancadas e
exibidas publicamente para dissuasão dos demais. Ao final, na chamada Operação
Limpeza, os corpos foram desenterrados e carbonizados a fim de impedir a sua
identificação, razão programática pela qual ainda constam oficialmente como
"desaparecidos".
Do ponto de vista da composição poética, os procedimentos
dominantes são bastante simples: a paronomásia e a aliteração, com ecos sonoros
entre as frases, e a repetição ternária de palavras e locuções, que buscam dar
um registro emocional à narrativa sintética. Sobretudo, Pedrosa lança mão da
construção "paralelística", em que as frases de estruturas semelhantes
se sucedem com pequenas alterações a cada vez.
Além disso, o poema tem um tipo de abertura eclética que permite
a incorporação de materiais diversos, como uma letra de Chico Buarque,
um poema de Gonçalves Dias ou uma canção anônima das "forças guerrilheiras
do Araguaia". Mais surpreendentes são as evocações de "Vapor
Barato", de Waly Salomão e Jards Macalé, cantada por Gal Costa no célebre show, bem como das cinzas
de Janis Joplin dispersas em San Francisco. Ambas somam à resistência da luta
armada também a contracultura cosmopolita, que àquela altura era desqualificada
como alienação e desbunde.
Pedrosa compõe
ainda versos de corte concreto —no qual a própria forma do texto evidencia o
seu conteúdo—, que reafirmam o ecletismo da sua composição. Nada do que referi
até agora, entretanto, me parece tão bem-sucedido como quando a autora cria
estrofes de molde popular e nordestino, como o prólogo empolgante na forma de
décimas em martelo agalopado e o epílogo à maneira de uma septilha de cordel. É
o caso ainda das estrofes dedicadas à lenda da metamorfose em borboleta da
guerrilheira baiana Dinalva de Oliveira Teixeira, a Dina, as quais, compostas
em oitavas com estribilho, para mim, soaram na vibração do frevo.
Quanto à história
da guerrilha propriamente dita, Pedrosa não traz novidade em relação às
pesquisas feitas por jornalistas e acadêmicos, como Hugo Studart, Maurício
Monteiro, Osvaldo Bertolino, Romualdo Pessoa Campos Filho, citadas por Pedrosa,
e também por Leonencio Nossa, Taís Morais, Elmano Silva e tantos outros que
valeria consultar e citar, o que inclui os depoimentos de militares envolvidos na
ação, como Pedro Corrêa Cabral e o famigerado Curió. Há também um erro crasso
de informação ao localizar a "chacina da Lapa", de 1996, no Rio de
Janeiro, e não em São Paulo.
Penso, enfim, que se poderia exigir do poema um pouco mais de
problematização, tanto em termos de reflexão política sobre a luta armada como
de caracterização mais complexa dos militantes —por exemplo, incorporando
medos, dúvidas e contradições de uma guerrilha que, a partir de certo momento,
tornou-se desesperada, com episódios ambíguos de deserções, delações e mesmo de
um suposto caso de justiçamento.
São situações complexas que Pedrosa preferiu evitar, em favor de
uma caracterização ingênua dos guerrilheiros. É compreensível, dada a
impunidade de que ainda gozam os responsáveis pelo massacre, mas é esse
justamente o desafio maior de um poeta épico: o de saber lidar com as
contradições dos seus heróis.
"Araras Vermelhas" será lançado durante a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que começa
nesta quarta-feira (23), e Cida Pedrosa participará de uma mesa na programação principal
do evento no
domingo (27), ao lado da escritora cubana Teresa Cárdenas.
Veja: A poesia
libertária de Cida Pedrosa — de Bodocó e Recife para o mundo https://bit.ly/3mnZlcd
Um comentário:
A crítica de Alcir Pécora na Folha de S. Paulo é interessante para desvendar a obra de Cida Pedrosa Araras Vermelhas. Entretanto peca na hora em que exige da autora uma análise política, sociológica e psicológica que não é o caso de uma literatura poética.
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