30 novembro 2022

A poeta e a guerrilha

Livro de Cida Pedrosa celebra idealismo da Guerrilha do Araguaia

'Araras Vermelhas', da vencedora do Jabuti, refaz poeticamente episódios dramáticos de movimento reprimido pela ditadura
Alcir Pécora, Folha de S. Paulo

 

"Araras Vermelhas", da pernambucana Cida Pedrosa, refaz poeticamente alguns episódios dramáticos da Guerrilha do Araguaia. Na primeira obra lançada desde que venceu o Jabuti de livro do ano, em 2020, a autora celebra o idealismo radical dos jovens guerrilheiros do PCdoB, que tão cedo ali deixaram a vida, e, na mesma medida, denuncia a história de horror desencadeada pela repressão militar, até hoje impune no Brasil.

Basta isso para atribuir relevância ao livro de Pedrosa, que vai na direção contrária ao esforço de apagamento do que se passou na região do Bico do Papagaio, na tríplice fronteira dos estados do Pará, Maranhão e o atual Tocantins, quando o Centro de Inteligência do Exército operou decididamente para aniquilar os guerrilheiros.

Não há dúvidas sobre os crimes cometidos: vários guerrilheiros foram executados depois de presos e torturados, tendo as cabeças arrancadas e exibidas publicamente para dissuasão dos demais. Ao final, na chamada Operação Limpeza, os corpos foram desenterrados e carbonizados a fim de impedir a sua identificação, razão programática pela qual ainda constam oficialmente como "desaparecidos".

Do ponto de vista da composição poética, os procedimentos dominantes são bastante simples: a paronomásia e a aliteração, com ecos sonoros entre as frases, e a repetição ternária de palavras e locuções, que buscam dar um registro emocional à narrativa sintética. Sobretudo, Pedrosa lança mão da construção "paralelística", em que as frases de estruturas semelhantes se sucedem com pequenas alterações a cada vez.

Além disso, o poema tem um tipo de abertura eclética que permite a incorporação de materiais diversos, como uma letra de Chico Buarque, um poema de Gonçalves Dias ou uma canção anônima das "forças guerrilheiras do Araguaia". Mais surpreendentes são as evocações de "Vapor Barato", de Waly Salomão e Jards Macalé, cantada por Gal Costa no célebre show, bem como das cinzas de Janis Joplin dispersas em San Francisco. Ambas somam à resistência da luta armada também a contracultura cosmopolita, que àquela altura era desqualificada como alienação e desbunde.

Pedrosa compõe ainda versos de corte concreto —no qual a própria forma do texto evidencia o seu conteúdo—, que reafirmam o ecletismo da sua composição. Nada do que referi até agora, entretanto, me parece tão bem-sucedido como quando a autora cria estrofes de molde popular e nordestino, como o prólogo empolgante na forma de décimas em martelo agalopado e o epílogo à maneira de uma septilha de cordel. É o caso ainda das estrofes dedicadas à lenda da metamorfose em borboleta da guerrilheira baiana Dinalva de Oliveira Teixeira, a Dina, as quais, compostas em oitavas com estribilho, para mim, soaram na vibração do frevo.

Quanto à história da guerrilha propriamente dita, Pedrosa não traz novidade em relação às pesquisas feitas por jornalistas e acadêmicos, como Hugo Studart, Maurício Monteiro, Osvaldo Bertolino, Romualdo Pessoa Campos Filho, citadas por Pedrosa, e também por Leonencio Nossa, Taís Morais, Elmano Silva e tantos outros que valeria consultar e citar, o que inclui os depoimentos de militares envolvidos na ação, como Pedro Corrêa Cabral e o famigerado Curió. Há também um erro crasso de informação ao localizar a "chacina da Lapa", de 1996, no Rio de Janeiro, e não em São Paulo.

Penso, enfim, que se poderia exigir do poema um pouco mais de problematização, tanto em termos de reflexão política sobre a luta armada como de caracterização mais complexa dos militantes —por exemplo, incorporando medos, dúvidas e contradições de uma guerrilha que, a partir de certo momento, tornou-se desesperada, com episódios ambíguos de deserções, delações e mesmo de um suposto caso de justiçamento.

São situações complexas que Pedrosa preferiu evitar, em favor de uma caracterização ingênua dos guerrilheiros. É compreensível, dada a impunidade de que ainda gozam os responsáveis pelo massacre, mas é esse justamente o desafio maior de um poeta épico: o de saber lidar com as contradições dos seus heróis.

"Araras Vermelhas" será lançado durante a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que começa nesta quarta-feira (23), e Cida Pedrosa participará de uma mesa na programação principal do evento no domingo (27), ao lado da escritora cubana Teresa Cárdenas.

Veja: A poesia libertária de Cida Pedrosa — de Bodocó e Recife para o mundo https://bit.ly/3mnZlcd

Um comentário:

Anônimo disse...

A crítica de Alcir Pécora na Folha de S. Paulo é interessante para desvendar a obra de Cida Pedrosa Araras Vermelhas. Entretanto peca na hora em que exige da autora uma análise política, sociológica e psicológica que não é o caso de uma literatura poética.