Estes dias árduos
Notas desnudam persistência
antidemocrática do bolsonarismo militar
Janio
de Freitas, Folha de S. Paulo
O encadeamento é
eloquente. Surpreendente, não. O golpismo, como associação de primarismo e
perversão, não se extingue pela luminosidade de um resultado eleitoral honesto.
Como a outra criminalidade, menos pretensiosa e mais disseminada.
A obstrução simultânea
de estradas por todo o país indica, nos apoios como alimentação gratuita,
banheiros e faixas e símbolos idênticos, uma coordenação nacional do protesto.
Danos se acumulam, mas a pressão persistente do tal mercado é só contra a falta
de indicação imediata do novo ministro da Fazenda/Economia. Às estradas,
segue-se a ocupação pedestre das frentes de quartéis.
Instalado esse ambiente, os comandantes da Marinha, do Exército
e da Aeronáutica emitem nota que se pretende dúbia, mas sua aceitação dos atos
golpistas é clara. Até estimulante. O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio
Nogueira, volta ao assunto das urnas, com tergiversações para o reconhecimento
de que os repentinos experts do Exército não detectaram sequer indício de uma
falha, uma que fosse, para desqualificar as urnas e a apuração.
Notas militares são
como pesquisas eleitorais. Valem por um momento. Daí que jamais lhes faltem
afirmações como "o compromisso irrestrito e inabalável das Forças Armadas
com a democracia e a Constituição". É o coldre lustroso da arma. Em março
de 64, o general Castello Branco, chefe do Estado-Maior, emitiu nota com garantias
à continuidade do regime democrático. Hoje, as madames não precisam da
experiência de andar a pé com Deus, pela família e a democracia, porque os
caminhões param pelo mesmo golpismo e seus pretextos.
Figura central na elevação de Bolsonaro a
candidato representante das Forças Armadas em
2018, o general Eduardo Villas Bôas emite do seu retiro, 15 dias pós-eleição,
imediato apoio às notas da Defesa e dos comandantes. Justifica todos os
protestos vendo-os como reação a "atentados contra a democracia"
praticados pelo Supremo e
pelo Tribunal Superior Eleitoral.
E não relega as "dúvidas sobre o processo eleitoral".
O TSE, por
meio do ministro Alexandre
de Moraes, determina o bloqueio das contas de 43
empresários patrocinadores das obstruções e outros protestos. Investigações
preliminares constatam a ajuda de políticos aos arruaceiros e a omissão
deliberada da Polícia Rodoviária Federal em relação às obstruções e ao
vandalismo, incêndios de veículos e impedimento de socorro médico.
Imagem de esperteza já antiga na praça, ministro do Tribunal de
Contas da União —logo onde—, Augusto Nardes aparece
em gravação terrorista: é "questão de horas, dias, no máximo uma semana,
duas, talvez menos do que isso, um desenlace bastante forte da nação".
Fala de conversas longas com Bolsonaro, faz uma das primeiras referências à
saúde de Bolsonaro, mas tem certeza de que ele logo voltará recuperado ao
Planalto para "enfrentar" a situação.
Exposta a gravação de sua conversa, Nardes foge, e sumido
continua.
Jornais e alguns noticiosos de TV ampliam sua política de
avestruz. Sonegam ou, na melhor hipótese, esvaziam de importância certas
informações. A fala de Nardes já entrou nesse buraco aprofundado. Nela
encadeou-se, com o mesmo destino, o pedido de anulação dos
votos de não menos do que 279.300 urnas. A manobra haveria de
ser muito conveniente a Valdemar Costa Neto. Do contrário, sendo ele
reconhecido como um dos maiores ardilosos do Congresso em todos os tempos, não
se entenderia sua subserviência à trama infantil de Bolsonaro. Moraes
desmoralizou a ordinarice com simplicidade.
Valdemar Costa Neto aderiu ao extremismo desesperado de
Bolsonaro, e Hamilton Mourão aderiu
a Valdemar Costa Neto. O que lhe exigiu, entre outras coisas, opor-se ao seu
partido, o Republicanos-mas-não-muito, que reagiu ao PL de Valdemar desfazendo
a aliança com esse partido, decisão também do PP.
O general Hamilton Mourão emergiu da obscuridade com
pronunciamentos direitistamente extremados, no Sul. Com isso, o Clube Militar
(do Exército) logo elegeu-o presidente. O mesmo motivo o levou depressa a vice
de Bolsonaro. Então surgiu um vice moderado, simpático com os repórteres,
suavizando as falas do chefe. Posto à margem do Planalto, preservou a linha até
se lançar ao Senado pelo Rio Grande do Sul. Aí, em território direitista,
voltou à linha dura. E foi eleito.
Mourão não assinou sua nota como senador eleito. Foi o
"General Hamilton Mourão" a indicar que não é nota de político, é de
militar que nem ao menos segue o seu partido. Conclama "a direita
conservadora" (não revelou qual seria a outra) à reação ao Supremo, ao TSE
e a Alexandre Moraes, cujas decisões ataca com aspereza. Sem mencionar, no
entanto, algum fundamento legal oposto aos invocados por Moraes e outros
ministros.
Fazer notas e outros pronunciamentos só com adjetivos é muito
fácil. E só não é inútil porque desnuda posições, propósitos, grau de
confiabilidade conceitual, política ou pessoal. E, nestes dias, a persistência
antidemocrática do bolsonarismo militar, do tal mercado e do agronegócio. O
encadeamento exposto aí atrás não poderia ter outra razão de ser. Nem advertir
para outro futuro imediato que não um embate penoso. Ainda que incapaz de
inverter o que as urnas decidiram e o mundo festeja.
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