O espanhol que morreu
Rubem Braga
Ir para Copacabana já não tinha o menor sentido; seria regressar à idade
moderna.
Como dar adeus às sombras amigas, como deixar os fantasmas cordiais que
se tinham abancado em volta, ou de pé, e em silêncio nos fitavam?
Era melhor cambalear pela triste Lapa. Mas então aconteceu que os
fantasmas ficaram lá embaixo, quando subimos a escada. E dentro de meia hora
chegamos à conclusão de que o meu amigo é que era um fantasma. A mulher que
dançava um samba começou a fitá-lo, depois chamou outras. Nós somos pobres, e a
dose de vermute é cara. Como dar de beber a todas essas damas que rodeiam o
amigo?
Mas elas não querem beber vermute; bebem meu amigo com os olhos e
perguntam seu nome todo. Fitam-no ainda um instante, reparam na boca, os olhos,
o bigode, e se retiram com um ar de espanto; mas a primeira mulher fica, apenas
com sua amiga mais íntima, que é mulata clara e tem um apelido inglês.
Em que cemitério dorme, nesta madrugada de chuva, esse há anos finado
senhor de nacionalidade espanhola e província galega? Esse que vinha toda noite
e era amigo de todas, e amado de Sueli? Tinha a cara triste, nos informam,
igual a ele, mas igual, igual. Então meu amigo se aborrece; nem trabalha no
comércio, nem é espanhol, nem sequer está morto, embora confesse que ama Sueli.
Elas continuam; tinha a cara assim, triste, mas afinal era engraçado, e como
era bom. E até aquele jeito de falar olhando as pessoas às vezes acima dos
olhos, na testa, nos cabelos, como se estivesse reparando uma coisa. Trabalhava
numa firma importante e um dia um dos sócios esteve ali com ele, naquela mesa
ao lado, e disse que quando tinha um negócio encrencado com algum sujeito duro,
mandava o Espanhol, e ele resolvia. Sabia lidar com pessoas; além disso bebia e
nunca ninguém pôde dizer que o viu bêbado. Só ficava meio parado e olhava as
pessoas mais devagar. Mais de dez mulheres acordaram cedo para ir ao seu
enterro; chegaram, tinha tanta gente que todos ficaram admirados. Homens
importantes do comércio, e família, e moças, e colegas de firma, automóvel e
mais automóvel, meninos entregadores em suas bicicletas, muita gente chorando,
e no cemitério houve dois discursos. Até perguntaram quem era que estavam
enterrando. Era o Espanhol.
Sueli e Betty contam casos; de repente o garçom repara em meu amigo, e
pergunta se ele é irmão do Espanhol. Descemos. Quatro ou cinco mulheres nos
trazem até a escada, ficam olhando. Eu digo: estão se despedindo de você, isto
é seu enterro. Meu amigo está tão bêbado que sai andando na chuva e falando
espanhol e some, não o encontro mais. Fico olhando as árvores do Passeio
Público com a extravagante idéia de que ele podia estar em cima de alguma
delas.
Grito seu nome. Ele não responde. A chuva cai, lamentosa. Então percebo
que na verdade ele é o Espanhol, e morreu.
Leita também: Suplantar a cultura do ódio é uma luta de longo curso https://bit.ly/3Us8tfj
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