O golpe
da crise permanente do mercado
O
objetivo da crise permanente é não ser resolvida. Mas qual é o objetivo deste
objetivo?
Luís Nassif, Jornal GGN
Notável
pensador português, em seu último livro, “O futuro começa agora: da pandemia à
utopia”, Boaventura Santos descreve o modo de atuação do tal mercado e o que
ele denomina do álibi da “crise permanente”.
“Por exemplo, a crise
financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas políticas sociais
(saúde, educação, previdência social) ou a degradação dos salários. E assim
impede que se pergunte pelas verdadeiras causas da crise.
O objetivo da crise permanente
é não ser resolvida. Mas qual é o objetivo deste objetivo? Basicamente, são
dois os objetivos: legitimar a escandalosa concentração de riqueza e impedir
que sejam tomadas medidas eficazes para evitar a iminente catástrofe ecológica.
Se mantém algum resíduo de
mediação, é com as necessidades e aspirações dos mercados, esse megacidadão
informe e monstruoso que nunca ninguém viu, nem tocou, nem cheirou, um cidadão
estranho que só tem direitos e nenhum dever. É como se a luz que ele projeta
nos cegasse”.
Sucessivas crises econômicas, mais o fator Bolsonaro, desnudaram um
pouco esse jogo do tal do mercado. Mas o fantasma da crise permanente continua
sendo invocado para impedir a retirada de qualquer privilégio, mesmo os mais
indecentes.
Foi um jogo que contaminou todo o mundo civilizado, que comprometeu a
social democracia europeia e subjugou os dois governos Lula, pelo menos até
2008.
Lembro-me de um debate no antigo Unibanco.
Pedro Malan, diretor, dizia que com o câmbio flutuante o país estaria salvo de
todas as crises. Ponderei que jamais se consolidaria um setor exportador com
câmbio volátil. Resposta de Malan:
– Você por acaso pretende voltar aos tempos antigos, da hiperinflação?
Não havia nenhuma relação de causalidade, pelo contrário. Mas foi
necessária a intervenção de Alexandre Scheinkman, diretor da Faculdade de
Economia da Universidade de Chicago, componente da mesa, para impedir o blefe:
– Malan, ele não falou nada disso.
Porque Malan, mesmo em um ambiente restrito, apenas com alguns jornalistas
e executivos do banco, recorria a bordões tão primários? Porque o álibi da
“crise permanente” já se introjetara em todo o mercado de opinião.
E não apenas Malan. Quem não se lembra de Antonio Pallocci e suas
reiteradas “lições de casa”? Se fizermos a “lição de casa” o Brasil irá
crescer. Chegava-se no final do ano sem crescimento. Razão? A “lição de casa”
não foi suficiente, faltou cortar a merenda escolar, a agricultura familiar, a
Previdência. Obviamente, por estar no governo Lula, não chegava a ser tão
explícito assim. Mas o subentendido era o mesmo.
Nem se considere que, de lição de casa em lição de casa, Malan conduziu
o país a uma crise cambial gravíssima em 1998. Pior, levantou um empréstimo do
FMI e o utilizou integralmente para permitir que capitais financeiros
conseguissem sair incólumes do país. Ou seja, o empréstimo não foi para
garantir compras básicas, mas para salvar o tal de mercado.
Do mesmo modo, não fosse a crise internacional de 2008, a política de
Antonio Palocci teria levado o país para uma nova crise cambial.
Repare que, em ambos os casos, deu-se tudo o que beneficiava o mercado,
a pretexto de evitar a grande crise. E a grande crise veio devido aos abusos do
livre fluxo de capitais, apreciando o real até o limite da insolvência externa
e promovendo, depois, maxidesvalorização que explodia a inflação. Tudo isso
apesar da lição de casa.
Nenhuma das crises se deveu ao risco de insolvência da dívida pública,
mas aos problemas nas contas externas, decorrentes da apreciação do real –
visando atender às demandas do capital financeiro.
Agora, volta-se de novo para o terrorismo, invocando almas perdida do
passado, Mailson da Nóbrega, Gustavo Loyola, José Márcio Camargo, Arminio
Fraga, Luiz Fernando Figueiredo.
O
grande desastre de Armínio
Vamos
analisar os dois últimos, já que os desastres dos três primeiros são
suficientemente conhecidos.
Em 2002, Luiz Fernando Figueiredo, diretor do Banco Central, instituiu a “marcação a mercado” nos fundos de investimento. Até então, os títulos eram contabilizados pela “curva de juros”,
Funciona
mais ou menos assim.
Curva de juros
- Suponha um título pré fixado
que renda 15% ao ano. A maneira de contabilizar é considerar o valor
de resgate 100, e o valor de compra de 86,9565. Depois, a cada dia o Preço
Unitário ía aumentando, incorporando os juros diários de maneira a chegar
no vencimento valendo 100. Era a chamada curva do papel.
- O preço de mercado era
proporcional ao prazo do papel. Em 180 dias, por exemplo, o valor do papel
deveria entrar em 93,3398. Ou seja, se o investidor adquirisse a 93,3398
e, 180 dias, resgatasse os 100, corresponderia aos mesmos 15% ao ano de
remuneração.
Marcação
a mercado
Com as taxas de juros aumentando, influenciavam diretamente a curva de
juros do papel. Suponha que, com 180 dias de prazo, as taxas de juros do
mercado subissem para 20% ao ano. Para que o papel pré-fixado acompanhasse as
taxas do mercado, seu valor deveria cair de 93,3398 para 91,4012. Ou seja,
adquirindo a 91,4012 no 180o dia e resgatando a 100 no 365o, o investidor
receberia o equivalente a 20% de juros ao ano. E vice-versa: se as taxas de
juros caíssem para 10% ao ano, no 180o dia o valor do papel subiria para
95,4085.
O que o mercado fazia, no entanto, era calcular o valor da cota dos
fundos pela curva de juros original do pré-fixado. É como se ele fosse levar o
papel até o fim.
Com a marcação a mercado, o BC mudou a contabilidade e os pre-fixados
passaram a ser declarados pelo seu valor de mercado.
Até aí, tudo bem, até que o grande Armínio Fraga – que, nos últimos
dias, comprometeu sua imagem de bom rapaz atacando os adversários de forma
baixa – colocou em prática sua maior invenção.
Ele queria colocar mais títulos pré-fixados no mercado; mas o mercado só
queria saber de papéis cambiais – em função da expectativa de vitória de Lula.
Arminio criou, então, a venda casada: quem quisesse comprar cambiais teria que
levar os pré-fixados.
O que o mercado fez? Adquiriu o pacote e vendeu as pré-fixadas. Com as
vendas, o preço dos papéis despencaram. Não mais respondiam às taxas de juros
do dia, mas à oferta e procura. é o resgate.
Como a marcação a mercado levava em conta apenas os títulos negociados,
uma parcela ínfima dos títulos afetou todo o estoque de pré-fixados do mercado.
E os investidores acordaram mais pobres no dia seguinte, com as cotas dos
fundos perdendo valor.
Seguiu-se uma corrida de resgate dos fundos e aquisição de dólares que
quase arrebentou com a economia brasileira.
E tudo isso em nome da segurança do mercado.
São as pessoas que querem perpetuar a crise
permanente.
Leia também - Luciana Santos: Não pode haver no Brasil um teto fiscal que leve à fome https://bit.ly/3UtVnOS
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