A
nova política externa brasileira
Uma nova
política deverá se refazer livrando-se das posturas retrógradas e conservadoras
e retomando posições conquistadas na cena internacional no passado e,
sobretudo, reestabelecendo uma diplomacia que esteja atenta às diversas
demandas internas da população brasileira e, ao mesmo tempo, resulte de
análises inteligentes do contexto internacional
Marina Bolfarine Caixeta, Le Monde Diplomatique
Junto com o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva surgem os ímpetos de projetar um novo país, afastando a imagem do país “pária”[1] que tem caracterizado o Brasil no cenário Internacional. Imaginar esse novo período do Brasil, o desejável e, ao mesmo tempo, o possível implica considerar as várias crises que se manifestam na economia, na sociedade (e na moral) e na política internacional. A crise do neoliberalismo – e quiçá sua superação pelo socialismo de mercado chinês –, a competitividade, em vez da cooperação, entre países para disponibilizar às populações a vacina contra a Covid-19 em meio a uma pandemia, o fascismo social e as democracias liberais,[2] a legitimação e a legalização de ideias conservadoras (como a criminalização do aborto, a heteronormatividade, a xenofobia, entre outras coisas) e o aumento da fome e das desigualdades socioeconômicas são alguns dos fenômenos que evidenciam os desafios internos e internacionais neste novo contexto.
Mais especificamente na cena política internacional, o mundo vive novo embate entre o flanco ocidental, representando pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), e oriental, pela aliança euroasiática notabilizada pela China e Rússia, e que, também, envolve a Turquia, o Irã, além de outros países e alianças como a Organização da Cooperação de Xangai (OCX) e a Comunidade Econômica Euroasiática.[3] Em razão disso, alguns analistas têm denominado os conflitos na Ucrânia deflagrados desde fevereiro de 2022 de a Terceira Guerra Mundial.
Assim, desde o último governo de Lula no início do século XXI, quando o Sul global assumiu uma posição privilegiada na Política Externa Brasileira (PEB) e no mundo,[4] muita coisa mudou. Tanto o cenário brasileiro quanto o internacional não nos permitem ter muitas esperanças, pois, diferentemente daquele primeiro período que tínhamos um país mais comprometido com a justiça social, no presente, o desafio é retomar a construção da imagem e da realidade brasileiras.
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Neste momento, estamos diante de um Lula que, apesar de todo seu preparo intelectual, experiência política e de gestão pública do Brasil, se elegeu graças à conciliação entre partidos de esquerda e direita[5] que se uniram numa ampla frente para garantir a manutenção do Estado de direito democrático e liberal, para afastar um governo que representa o que há de mais conservador e retrógrado na sociedade brasileira. Portanto, um progressismo que terá de negociar com distintos grupos de interesse no bojo de uma democracia de baixa intensidade.[6] Um novo plano de governo, então, deve refletir esses múltiplos interesses de diversos atores, num contexto em que, cada vez mais, grupos da sociedade se interessam e se envolvem com a agenda internacional do país.
O renascimento da política externa
Como uma entre tantas outras políticas públicas, a política externa precisará renascer a partir de 2023. Isso porque o novo governo de Lula não apenas terá de promover uma mudança completa de rumo em suas iniciativas, diretrizes e narrativas pelo mundo, mas ainda terá de se livrar de imagens negativas e negacionistas em relação às concertações internacionais e aos achados científicos – como é o caso da saúde sexual reprodutiva, da identidade de gênero e do planejamento familiar.
Os eventos deste último governo vão desde uma vergonhosa diplomacia evangélica até o isolamento do Brasil no mundo, incluindo uma desastrosa diplomacia ambiental, que fez o Brasil perder financiamento da Noruega (Fundo Amazônia), e uma equivocada diplomacia sanitária, marcada pela tentativa de compras superfaturadas de vacina contra a Covid-19 (a Covaxin), alvo da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia.[7]
Não se pode esquecer da gestão ideológica-cristã que caracterizou o Itamaraty nesse período do governo Bolsonaro e que chegou a minar as relações do Brasil com a África. Além do episódio em que o então chanceler Ernesto Araújo em 2019 leva consigo uma comitiva brasileira de parlamentares para Angola para salvar a Igreja Universal (e Edir Macedo) ameaçados pelo governo daquele país por crimes cometidos em território angolano. Podemos citar também o convite a Marcelo Crivella para ser embaixador brasileiro na África do Sul, o que felizmente não foi aceito pelo governo sul-africano.[8] Algo inimaginável até então, sobretudo após Lula ter conduzido comitivas de empresários brasileiros àquele continente (“abrindo mercados”) e ter sido muito criticado por isso, mesmo sendo a diplomacia econômica muito praticada por distintos países de projeção internacional – o estímulo à internacionalização de empresas brasileiras resultava no aumento do PIB, na geração de empregos e divisas, além de elevar o poder de influência (poder brando ou soft power) com alcances políticos muito positivos.
O renascimento da PEB sob a nova gestão de Lula foi o objetivo do “Programa Renascença: construção coletiva de uma política externa pós-Bolsonaro”. Diante da constatação geral de “graves danos causados pelo atual governo à reputação e aos interesses do Brasil”, o Programa proposto pelo Instituto Diplomacia para a Democracia com participação de uma série de especialistas e interessados no assunto pautou temas e facilitou uma série de ciclos de reflexões. Os debates envolveram autoridades, como o ex-chanceler e ex-ministro da Defesa nos governos do PT Celso Amorim, e organizações da sociedade civil, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e Sem Terra (MTST e MST), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), entre outros.
A proposta articulada para uma política externa “humanista, democrática e laica, baseada na Constituição Federal” está sistematizada em um documento que conta com dez objetivos gerais e cem ações implementáveis, apresentando meios concretos de se traduzir anseios políticos em ação, considerando os recursos efetivamente disponíveis e os distintos grupos sociais. Os resultados do Programa incluem a publicação, em 2022, de dois livros no âmbito do Programa Renascença.[9]
Impõe-se, com isso, o entendimento de que a política externa deve servir à soberania nacional, inclusão social e ao desenvolvimento econômico e sustentável do Brasil. Além de uma política externa “altiva e ativa”, é imprescindível garantir uma gestão democrática para as políticas públicas, tantos as internas como as externas. Nesse novo cenário, estará o Itamaraty preparado para operar a partir de uma democracia mais intensa, ou seja, com maior participação social?
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Uma política externa democrática
Um ponto de inflexão com o qual saberá lidar o próximo governo é a inclusão de distintos atores sociais na agenda internacional do Brasil. Isso porque o novo cenário impõe uma forte reivindicação por mais participação social nas agendas comandadas pelo Itamaraty. Se até então alguns grupos sociais eram restritos a “beneficiários” de políticas públicas governamentais, no novo cenário é inevitável que empresas e grupos da sociedade civil organizada, além de governos subnacionais, se envolvam com essa agenda.
Também observa-se que novos temas até então com baixa presença seja na formação dos diplomatas seja na formulação da política externa brasileira tornam-se de grande interesse para a nova PEB. Alguns exemplos são: memória e verdade na ditadura militar brasileira, ativismo negro e indígena na PEB, justiça de transição para os povos indígenas, perfil migratório brasileiro definido a partir das hierarquias coloniais do capitalismo e acolhida aos migrantes estrangeiros (e refugiados).
Diante disso, é preciso entender o ano de 2023 como um giro nas posturas do Brasil no plano internacional. Uma nova política deverá se refazer livrando-se das posturas retrógradas e conservadoras e retomando posições conquistadas na cena internacional no passado (os Brics, os processos de integração na América Latina como a Unasul, a Celac, além do Mercosul, e as relações estratégicas com países africanos)[10] e, sobretudo, reestabelecendo uma diplomacia que esteja atenta às diversas demandas internas da população brasileira e, ao mesmo tempo, resulte de análises inteligentes do contexto internacional.
Nos cabe lembrar que esse diálogo do governo com grupos de interesse da sociedade civil por uma democratização da PEB foi, inclusive, objeto de uma demanda ao governo da recém-eleita presidenta Dilma Rousseff em seu segundo mandato (em 2014). A criação de um Conselho Nacional de Política Externa (Conpeb), conforme previsto na Constituição Federal de 1988 de garantidora da participação social na gestão pública, baseou-se na proposta de um conselho permanente de consulta, participação e diálogo da sociedade com o poder executivo, que possui competência para conduzir a política externa, para acompanhar a condução da política por parte do poder executivo federal e para contribuir com a definição de suas diretrizes gerais. Conforme destacou o Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI), autor da proposta, “[…] o Conpeb permite a institucionalização da participação da sociedade civil nas agendas da política externa, garante centralidade ao Itamaraty e, assim, evita a privatização da política externa”.[11]
Após a “Conferência Nacional 2003-2013 Uma Nova Política Externa”, definiu-se como fundamentos para a nova PEB sua contribuição para reduzir as assimetrias e desigualdades no Brasil, na região e no mundo e para a democratização do Estado, sociedade brasileira e ordem internacional, além de ser concebida como política pública apoiada pela sociedade e debatida pela opinião pública, mediante transparência na relação entre os cidadãos e as informações públicas do Estado brasileiro.
Pode-se dizer, também, que a proposta do CONPEB está enraizada numa nova dinâmica que teria emergido regionalmente no ciclo de governos progressistas da América do Sul conhecido como “onda rosa”. E, embora o Brasil não contasse ainda com um marco legal para a participação social nas várias agendas políticas governamentais,[12] já havia precedentes na saúde, educação entre outros e, também, nas iniciativas regionais como as Cúpulas Sociais do Mercosul e os Fóruns de Participação Cidadã da Unasul.
Também, a proposição de um Livro Branco da Política Externa é uma outra evidência do que precisa ser retomado. Ele fez parte de uma outra tentativa associada aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) de promover a abertura do Itamaraty à participação democrática em prol de uma política externa com maior envolvimento da sociedade brasileira. Nos moldes do Livro Branco de Defesa Nacional lançado em 2012 pela presidenta Dilma Rousseff e seu então-ministro da Defesa, embaixador Celso Amorim, o livro branco da PEB seria um documento público com os princípios, as prioridades e as principais linhas de ação externa do Brasil. A despeito disso, o Livro Branco nunca chegou a ser lançado.[13]
Política externa para o desenvolvimento
Uma política “pública” externa tem sido defendida por distintos especialistas das Relações Internacionais que consideram a importância da politização de seus temas/agendas, meios e gestão estratégica. Esse entendimento pressupõe, também, que a política externa deve estar integrada às outras políticas públicas visando ao desenvolvimento nacional.
Nesse sentido, a nova PEB deve estar coordenada com as demais políticas setoriais, como é o caso da saúde, da agricultura, da educação, da defesa e segurança e, também, articulada com as políticas subnacionais dos governos de estados e de municípios. A consolidação do papel do Itamaraty como agente central dos assuntos externos vai além de reivindicar a aplicação do dispositivo constitucional que diz que as relações internacionais são competência da União (artigo 21). Pressupõe-se que a condução da política externa serve aos interesses nacionais e se responsabiliza por identificar as oportunidades e os desafios apresentados pelo sistema internacional, garantindo, com isso, a sintonia entre as agendas internas e externas, ou seja, promovendo o desenvolvimento nacional e contribuindo com o desenvolvimento internacional.
Para tanto, tem sido importante contar com diplomatas em funções de assessoria internacional nos ministérios para facilitar essa coesão entres as pastas setoriais e a política externa. Diferentemente do governo Bolsonaro ao delegar essas funções aos distintos ministérios, terceirizando a política externa em benefício dos grupos de interesse que dominaram as agendas setoriais e afastando o Itamaraty das negociações temáticas.
Outra iniciativa do governo Lula que conectou as agendas nacionais e internacionais do país foi a Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional (Cobradi), que se dedicou a apresentar à população brasileira e ao mundo as contribuições – orçamentária e relatos de iniciativas e instituições – do Brasil para apoiar outros países. Em especial, a Cooperação Técnica Sul-Sul com a África e a América Latina se notabilizou em decorrência de políticas nacionais que ganharam projeção e reconhecimento internacional, fazendo convergir, assim, a prioridade interna dada ao bem-estar social com a maior presença e solidariedade do Brasil no mundo – o que alguns denominaram de “socialização do desenvolvimento”. Essas são agendas muito caras a Lula e que, neste próximo governo, devem reassumir sua relevância na nova PEB.
Assim, as palavras de ordem para o novo governo na PEB são: RETOMADA do que ficou suspenso desde 2014, em razão da crise de governabilidade da presidenta Dilma Rousseff, e que avançou significativamente, e RENASCIMENTO para enterrar aquilo que foi malfeito pelos governos que chegaram ao poder com o golpe de Estado de 2016, o que nos impõe agora a necessidade de recomeçar.
Marina Bolfarine Caixeta é pesquisadora do campo da Cooperação Sul-Sul desde 2005, realiza um estágio de pós-doutorado no Departamento de Estudos Latino-americanos (ELA) da Universidade de Brasília (UnB) e integra o Centro de Estudos e Articulação da Cooperação Sul-Sul (ASUL) desde 2015 e faz mestrado na Silk Road School (Escola da Rota da Seda) na Renmin University of China (RUC).
[1] Pária é uma palavra importada da cultura hinduísta para se referir à imagem do Brasil considerado inferior e desprezível na cena internacional por cometer transgressões às convenções pactuadas e assumir posições insignificantes nos eventos e negociações globais.
[2] Fazemos menção aos livros de Alysson Mascaro “Crítica ao Fascismo” (2021) e de Boaventura de Sousa Santos “A difícil democracia” (2016) lançados pela editora Boitempo e, respectivamente, disponíveis em https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/critica-do-fascismo-1274 e https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/a-dificil-democracia–623
[3] Sobre a projeção e importância do Fórum Econômico Oriental realizado em setembro de 2022, sugerimos a análise de Pepe Escobar em https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/mundo/76655/russia-eurasia-nao-e-mais-um-objeto-de-colonizacao-pela-europa-civilizada
[4] Não se pode esquecer que o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2013 foi intitulado “A ascensão do Sul: o progresso humano num mundo diversificado”. Disponível em: https://hdr.undp.org/system/files/documents//hdr2013portuguesepdf.pdf
[5] A frente ampla reuniu mais de 15 partidos para a vitória de Lula (PT) que obteve um pouco mais de 2 milhões de votos de vantagem em relação a seu adversário, Jair Bolsonaro (PL), em 30 de outubro de 2022; com apoio de partidos e candidatos da direita – ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (pelo PSDB) e a candidata da direita, Simone Tebet (MDB) –, espera-se que o plano de governo seja resultado de amplas negociações políticas e ideológicas.
[6] Para Boaventura de Sousa Santos (2016), a “democracia liberal” resulta da tensão entre democracia e capitalismo e, por isso, é de baixa intensidade, ou seja, não garante as condições de sobrevivência dos povos submetidos a múltiplos sistemas de alijamento, denominado pelo autor de “fascismo social”, pois está a serviço da acumulação de capital.
[7] Como bem explica Vanessa Martina Silva, logo após a demissão de Ernesto Araújo como chanceler em 29 de março de 2021, há várias razões para que esse período da PEB seja esquecido pelos livros de história por ser caracterizado por um momento em que o Brasil passa a ser uma vergonha internacional. É possível enumerar algumas evidências: Ernesto se posiciona contra a quebra de patente de vacinas, adota um negacionismo científico, boicota a iniciativa Covax/OMS para providenciar vacina para países em desenvolvimento e difunde tratamentos sem eficácia e evidências científicas contra a Covid-19 (o spray nasal de Israel, além da ivermectina e cloroquina), promove um ideário de extrema-direita e alinhamento automático aos Estados Unidos sem reciprocidade nem apoio à entrada na OCDE, dá as costas para o Mercosul no momento crucial do acordo com a União Europeia e, ainda, provoca levianamente tensões nas relações com a China, com reprimendas oficiais e risco de perder o principal parceiro comercial brasileiro.
[8] Pedro Lagosta, Enrique Lima, Magaly Alves de Moraes e Mohammed Nadir, “Angola e Universal: entre o material e o simbólico”, Observatório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil, 14 jun. 2021.
[9] Os livros estão disponíveis gratuitamente em https://www.diplomaciaparademocracia.com.br/livros
[10] Alan Silva, Giovanna Rossato e Laura Rivaben sistematizam em cinco eixos os obstáculos a serem enfrentados pelo futuro governo para recuperar as relações políticas, econômicas, culturais e o diálogo institucional entre as nações: questão ambiental, reaproximação com o continente europeu, restauração de vínculos com as nações africanas, restabelecimento de relações com os países latino-americanos e reavivamento de blocos como os BRICS e o Mercosul.
[11] Mais informação disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/gr-ri/conselho-nacional-de-politica-externa-fortalece-o-itamaraty-8986/
[12] Não se pode esquecer da instituição de uma Política Nacional de Participação Social e do Sistema Nacional de Participação Social (Decreto de 2014) pelo governo de Dilma Rousseff, posteriormente revogado em 2019 pelo governo Bolsonaro. A participação social depende da compreensão governamental. Mais disponível em https://www.scielo.br/j/se/a/dkh5j7kcmC66KNqBcvCTN3p/?format=pdf&lang=pt
[13] A elaboração do Livro Branco foi suspensa e resultaria de uma série de diálogos de política externa realizados no Itamaraty em março de 2014 e respectivos textos elaborados.
Revista 'Princípios' publica dossiê de 200 anos de uma independência incompleta https://bit.ly/3Rv2FAw
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