Argumentos de relatório golpista do PL apareceram antes em
live de argentino
Teorias conspiratórias
começaram a aparecer nas redes logo após o 2º turno e tiveram consultor
argentino como principal porta-voz
Renata
Galf e Paula Soprana, Folha de S. Paulo
O partido do presidente Jair Bolsonaro,
o PL, usou uma diferença entre os arquivos de urnas mais antigas e as mais
novas como seu principal argumento para pedir a invalidação de
parte dos votos do segundo turno, em ação apresentada na última
terça-feira (22) ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
A tese de que apenas o modelo mais recente seria confiável
começou a ser propagada dias após o segundo turno e teve como principal
porta-voz o consultor político
argentino Fernando Cerimedo. Antes
disso, uma infinidade de outras teorias conspiratórias sobre as urnas, junto a
materiais com supostas comprovações de fraude, já circulavam.
Além do questionamento baseado no modelo da urna, há diferentes
pontos de conexão entre o conteúdo da peça protocolada pelo PL no TSE e as afirmações do argentino em
diferentes transmissões e postagens. Não há comprovação de que Cerimedo e a
equipe contratada pelo partido tenham tido alguma ligação ou contato.
Poucos dias antes
da primeira live de Cerimedo, o relatório usado por ele já circulava sem
autoria identificada em grupos de conversa. Inicialmente, a investida contra as
urnas mais antigas era baseada em análises estatísticas. Nas semanas seguintes,
outros elementos foram surgindo.
Em 14 de novembro,
por exemplo, Cerimedo afirmou que havia diferença entre os logs das urnas
antigas e as urnas novas. O vídeo dizia que "logs falsos foram encontrados
nas urnas anteriores a 2020" e que, por outro lado, "nas urnas de
2020 não foram observados os logs piratas". Falava ainda em um
"código pirata".
O log da urna é uma
espécie de "diário de bordo" de tudo que aconteceu nela, enquanto o
código é o programa que dá os comandos para ela funcionar.
Uma diferença entre os logs gerados pelas urnas mais novas –o
modelo 2020– e os demais modelos foi justamente o argumento utilizado pelo
partido de Bolsonaro para pedir a invalidação dos votos de
parte das urnas, mas apenas no segundo turno. A ação foi baseada em um
relatório do Instituto Voto Legal (IVL), contratado pelo PL.
O presidente do TSE, Alexandre de Moraes,
rejeitou na quarta-feira (23) a ação do PL por litigância de má-fé (exercício de maneira abusiva do direito de
recorrer à Justiça). Apesar de a situação relatada pelo PL ter ocorrido nos
logs de ambos os turnos, o PL pediu a invalidação apenas de votos do segundo
turno.
Além disso, como mostrou a Folha, diferentemente
do apontado no relatório do PL, a limitação relatada para questionar as urnas
antigas não impede a identificação
e a fiscalização delas, conforme apontam especialistas em computação.
Um outro ponto disseminado por Cerimedo apareceu com alterações
no relatório do PL. O argentino divulgou que teria conseguido identificar, a
partir dos logs das urnas, em quem cada eleitor teria votado.
Diferentemente do que alegou o argentino, o que aparece nos
logs, conforme apontou a Justiça Eleitoral, é o registro do nome de alguns
eleitores, sem que haja qualquer informação sobre o voto dado. Isso pode
acontecer, por exemplo, quando a urna trava e precisa ser religada.
A redação usada pelo PL toca no tema falando em violação do
"sigilo do ato de votar", o que foi suficiente para manter a
narrativa nos grupos bolsonaristas.
A primeira live de Cerimedo
era focada em análises estatísticas da votação por estado,
restringindo a municípios com até 100 mil ou 50 mil habitantes.
O cientista de dados Tiago Barbin Batalhão aponta diferentes
problemas no relatório que deu base para a live.
Doutor em física pela Universidade Federal do ABC (UFABC), ele é
um dos autores de documento que desmonta afirmações falsas da transmissão,
feito em conjunto com professores da Universidade Federal de São Carlos e da
Universidade de São Paulo.
Uma das lacunas, afirma ele, é não haver uma análise de que os
diferentes modelos de urna não foram distribuídos de modo aleatório.
"Quando eu investiguei mais a fundo, por exemplo, vi que,
no estado de Pernambuco, todas as urnas novas ficaram no litoral e as antigas
no interior", diz. "É muito mais fácil de acreditar que pessoas do
litoral e pessoas do interior votam diferente do que acreditar numa fraude na
urna."
Outro problema é utilizar um recorte máximo de habitantes. Ele
explica que a análise parte da premissa incorreta de que, ao comparar, por
exemplo, duas cidades pequenas no estado de São Paulo, elas deveriam apresentar
padrões iguais, ignorando outros fatores socioeconômicos e culturais.
Leia
também: Novo ato da ópera bufa golpista https://bit.ly/3U3euhs
Também nesse ponto, o relatório do IVL apresentado à Justiça
Eleitoral tem pontos em comum com o relatório divulgado por Cerimedo. O IVL
escreve que buscou validar "estudos estatísticos que foram apresentados ao
IVL" e diz que "há estudos que mostram indícios fortes de
interferência nos percentuais de votação dos dois candidatos", escreve o
IVL, frisando os estados do Nordeste.
Além disso, o instituto também replica o filtro de até 100 mil
habitantes, sem que haja uma explicação sobre a escolha.
O documento técnico afirma ainda que o resultado da votação em
cada município ou estado "deveria independer do modelo de fabricação da
urna", também ignorando a distribuição não aleatória dos modelos dentro de
estado.
Na peça jurídica, o PL não abraça a discussão estatística, mas
afirma que as urnas de modelo 2020 teriam sido distribuídas pela Justiça
Eleitoral "em aparente quantidade proporcional e equitativa" por
todos os estados. O documento também ignora a distribuição pelos municípios.
O partido pede na ação que apenas os votos dessas urnas sejam
considerados no segundo turno, dando 51,05%, para Bolsonaro. De acordo com o
PL, esses seriam "os votos válidos e auditáveis do segundo turno",
devido ao erro nos logs.
A impressão do professor de computação da UFABC Paulo Matias é a
de que o relatório apresentado pelo PL complementa a teoria fomentada
anteriormente pelo argentino ao tentar vender uma base técnica de que esses
modelos não seriam auditáveis.
"O uso do termo 'auditáveis' não encontrava ao menos uma
definição no relatório apócrifo. Essa lacuna foi preenchida pelo relatório
PL/IVL, que inventou uma definição para ‘urna auditável’", afirma.
Ao longo de
novembro, Cerimedo, dono do canal "La Derecha Diário" e conhecido da
família Bolsonaro, tornou-se praticamente um herói para os bolsonaristas
insatisfeitos com a derrota, atuando diariamente a favor das manifestações.
Leia
também: Suplantar a cultura do ódio é uma luta de longo curso https://bit.ly/3Us8tfj
Em entrevista por
telefone à Folha, Cerimedo conta que começou a se interessar pela eleição
brasileira porque as conversas sobre fraude começaram a chamar atenção. Ele diz
que "queria entender o comportamento eleitoral" e que, então,
contratou uma empresa privada pequena para fazer uma auditoria.
O relatório usado
por Cerimedo na live já circulava em português em grupos de Telegram
bolsonaristas dias antes. Segundo o argentino, foi ele quem passou o PDF a
várias pessoas do Brasil, inclusive em outras línguas.
Questionado sobre o
nome da empresa que teria contratado, disse que não podia informar. "Não
posso revelar o nome porque não foi um contrato, foi um favor. São
amigos." Segundo ele, seriam poucos rapazes que lidam com ciência de
dados.
A equipe de fiscalização do
PL é composta por membros do Instituto Voto Legal, que tem como
presidente Carlos Rocha.
Em entrevista coletiva na última quarta-feira (23), o presidente
da sigla, Valdemar Costa Neto, disse que a equipe contratada
pelo partido trouxe "um gênio lá de Uberlândia" para
ajudar depois do segundo turno e que ele teria descoberto "esse problema
que o nosso pessoal não tinha descoberto".
Em seu relatório técnico, o IVL cita nove vezes uma empresa
chamada Gaio.io, dizendo que utilizou uma "plataforma de análise inteligente
de dados" da empresa. Não há menção no texto de qualquer representante da
empresa, tampouco de que ela teria participado da fiscalização em si. Na
representação jurídica, a Gaio não é mencionada.
O endereço da empresa registrado no CNPJ é de Uberlândia e
consta como sócio-administrador o nome de Eder Lindsay Magalhaes Balbino. Em
algumas das capturas de telas anexadas pelo IVL como provas técnicas aparece a
mensagem: "Você está visualizando a tela de Eder Balbino".
A Folha enviou
questionamentos ao IVL e a Gaio sobre como se deu a participação da empresa na
fiscalização e se houve uma parceria formal entre as duas e desde quando, mas
não obteve resposta.
Os nomes do IVL foram indicados em junho ao TSE, depois de o PL
desistir de credenciar o instituto diretamente. Para tanto, seria preciso
comprovar que se tratava de entidade privada sem fins lucrativos e "com
notória atuação em fiscalização e transparência da gestão pública". O
cadastro de abertura do IVL é de novembro do ano passado.
Veja alguns pontos em comum entre argumentos usados pelo PL e
conteúdos divulgados pelo consultor argentino.
URNAS NOVAS X URNAS ANTIGAS
Relatório sem autoria
(2.nov)
Um relatório de autoria desconhecida sobre as eleições lança a
tese de que as urnas anteriores a 2020 não seriam auditadas. Ele diz que há
vários indícios que tornariam "improvável a completa lisura do processo
eleitoral de 2022" e que um dos principais deles seria a diferença de
votação, de acordo com o modelo de urna, "em uma mesma região e
população".
No arquivo, aparecem análises estatísticas comparando a votação
em urnas de modelos mais novos, as UE2020, e de modelos mais antigos,
restringindo a municípios com até 100 mil ou 50 mil habitantes.
Primeira live do argentino
Fernando Cerimedo (4.nov)
Transmissão ao vivo pelo consultor Fernando Cerimedo, no
YouTube, impulsionou o questionamento baseado nos modelos de urnas. Feita com
base no mesmo relatório que já vinha sendo divulgado há pelo menos dois dias,
foi com ela que a nova teoria conspiratória deslanchou. Replicada em diversos
outros vídeos e intensamente distribuída nos grupos, a live chegou a reunir
mais de meio mihão de pessoas.
Vídeo de Cerimedo (14.nov)
Um dia antes do feriado da Proclamação da República, quando
apoiadores de Bolsonaro organizavam atos em frente aos quartéis pelo país,
Cerimedo divulgou um vídeo prometendo que faria uma live no dia seguinte em que
mostraria "os logs das máquinas e as anomalias", adiantando que
haveria um "código pirata" e diferença entre os logs a depender do
modelo das urnas. No vídeo constava que: "logs falsos foram encontrados
nas urnas anteriores a 2020" e que, por outro lado, "nas urnas de
2020 não foram observados os logs piratas".
Ação do PL (22. nov)
O relatório técnico feito pelo Instituto Voto Legal (IVL),
anexado na ação do partido, diz que que sua análise "comprovou que são
inválidos" os arquivos log de todos os modelos de urnas "diferentes
do modelo UE2020, ou seja, de modelos antigos UE2009, UE2010, UE2011, UE2013 e
2015".
Na ação, o PL pede a invalidação de votos depositados em urnas
de modelos anteriores a 2020. O partido alega que eles seriam os únicos votos
"válidos e auditáveis do segundo turno", e dariam percentual de
51,05% dos votos a Bolsonaro.
SIGILO DO VOTO
Cerimedo (14.nov)
Na mesma data em que falou do "código-pirata",
Cerimedo também disse que os logs das máquinas permitiram identificar "o
nome de cada um e de todos os votantes e a atividade que fizeram". No
Twitter, ele postou a reprodução de parte de uma planilha com o nome de alguns
eleitores, na qual não constava qualquer dado sobre o voto em si. Em resposta a
um usuário no Twitter que perguntou se havia realmente os dados dos votos das
pessoas , Cerimedo escreveu que não iria expor os eleitores, mas que "da
mesma forma que registra o nome, registra por qual número".
Ação do PL (22.nov)
Ação e relatório do PL relatam a questão fazendo referência como
sendo uma "violação do sigilo quanto ao ato de votar". "Tais
dados, associados ao registro da hora exata em que o erro foi anotado no LOG da
urna, certamente têm o condão de vulnerar a cláusula pétrea que garante a todo
cidadão brasileiro o sigilo do voto, dada a potencialidade de identificação do
eleitor", diz a ação do partido.
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