Mário de Andrade e a ideia de um Brasil
democrático
Fundação Grabois
Em livro, sociólogos reavaliam papel do escritor, ao analisar
sua obra e vasta correspondência. Pensou a cultura à frente de seu tempo,
contra visão autoritária do Estado Novo. E articulou ampla rede de poetas e
artistas em todo o país.
Publicado originalmente por Mauricio Ayer em Outras
Palavras.
Reencontrar o trabalho e a trajetória de Mário de
Andrade e restabelecer criticamente o sentido de seu legado e os aprendizados
que ele proporciona. De maneira sintética, esta foi a tarefa que se colocaram
os sociólogos André Botelho e Maurício Hoelz na escrita do livro O
Modernismo como M ovimento Cultural – Mário de Andrade, um aprendizado,
lançado neste ano pela Editora Vozes.
Tarefa mais do que necessária no centenário do marco do
modernismo brasileiro, a Semana de Arte Moderna de São Paulo, que teve Mário
como principal liderança. Não por acaso, a empreitada foi assumida por dois
sociólogos, que se propuseram a sopesar o papel do intele ctual paulista na
malha das configurações históricas da sociedade e do pensamento social
brasileiro. André Botelho é professor do
Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é
o atual presidente da ANPOCS, a Associação Nacional de Pós-Graduação em
Ciências Sociais. Maurício Hoelz é
professor do Departamento de Ciências Sociais e do PPGCS da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Retomando a volumosa fortuna crítica do autor de Macunaíma e
do Ensaio
sobre a Música Brasileira, além de seus escritos literários e
teóricos, suas interve nções na imprensa e a vasta correspondência, André e
Maurício procuraram aproximar-se do trabalho de Mário de Andrade no calor de
suas interações sociais. Ao fazê-lo, procuram distingui-lo da imagem que se
construiu, à sua revelia, de um Mário identificado com visões restritivas, e
até autoritárias, da cultura brasileira, da brasilidade e do nacionalismo.
Lendo esse corpus a contrapelo, os autores
resgataram uma visão do Mário mais próxima das intenções estratégicas de seus
gestos sociais face à resistência do contexto.
Poucos formularam um projeto tão democratizante da
cultura no Brasil quanto Mário de Andrade, e menos ainda investiram tanto
empenho em implementá-lo por todos os meios que encontrou. Esses meios envolvem
a sua produção literária pessoal, mas também sua atuação no debate público e,
com extrema dedicação, pelo diálogo com um amplo leque de person alidades da
cultura em todo o país, realizado essencialmente por cartas. Mário pretendia,
por um lado, assegurar foro de cidadania pleno às múltiplas e diversas
manifestações culturais populares do Brasil, e para isso viajou o país e
procurou conhecê-lo, documentá-lo e difundi-lo. Por outro lado, ampliar
radicalmente o acesso à cultura letrada a todos os públicos de todas as classes
sociais; nessa linha, destaca-se sua atuação no Departamento de Cultura de São
Paulo, criado por ele, quando criou concertos populares, bibliotecas
itinerantes e muitas outras iniciativas que se tornaram os embriões de muitas
políticas públicas na área de cultura que até hoje têm sentido e
lugar.
No entanto, no meio do caminho de Mário tinha uma
baita de uma pedra: uma ditadura, que deu grande centralidade à questão
cultural. O Estado Novo, mesmo com suas contradições, teve um papel crucial na
rotinização de certas ideias sobre a cultura brasileira e nacionalismo que
apontavam no sentido oposto ao construído pelo modernista paulista, ou seja, no
sentido da homogeneiza&cce dil;ão dos traços “nacionais”, a irradiação de
certas concepções a partir da capital, e sobretudo
nenhuma abertura para que os artistas do povo tivessem uma voz própria na
construção da nação. O nó que André e Maurício procuraram desatar é que, em
muitos âmbitos, sedimentou-se uma identificação simplificadora – e, por
isso mesmo, falsa – entre Mário de Andrade e concepções nacionalistas que eram
opostas àquilo que ele dedicou sua vida para construir.
Nesta entrevista, André e Maurício partilham um pouco
das ideias que sustentam o livro e essa revisita ao legado de Mário de Andrade.
Uma das noções mais importantes é justamente a de “movimento cultural”, que
desloca o entendimento do modernismo da lógica da vanguarda – que
acaba dando um peso agigantado para o evento da Semana de Arte – para a
lógica de uma construção coletiva, difusa e transgeracional, sem um centro
irradiador único, mas com uma interação de múltiplos agentes e múltiplas
centralidades.
Ao construir a visão do modernismo brasileiro como movimento,
o lugar de Mário de Andrade se revela ainda mais importante. Uma parte notável
do livro consiste em tomar em consideração as cartas e verificar que Mário
exerceu uma liderança efetiva na relação que estabeleceu com jovens escritores
e artistas praticamente de todo o Brasil. Dialógico, socrático, Mário
manteve-se o tempo todo à escuta, em um muito sensível exercício de admirar os
novos autores e de incentivá-los a manter-se firmes na busca de uma nova
linguagem para si e para o país.
O caso de Minas Gerais é analisado com especial
atenção por André Botelho e Maurício Hoelz – que aliás coordenam, com
Mariana Chaguri, Pedro Meira Monteiro e Eneida Maria de Souza (in
memoriam), o projeto Minas Mundo, que busca pensar o
modernismo brasileiro a partir de Minas Gerais, no fértil embate e encontro de
regionalismo e cosmopolitismo. Vemos o quão importante foi a troca epistolar
entre Mário e Carlos Drummond de Andrade para que este perseverasse como poeta
modernista e construísse sua obra poética, por muitos considerada uma das mais
importantes do século XX no Brasil.
Revista 'Princípios' publica dossiê de 200 anos de uma independência incompleta https://bit.ly/3Rv2FAw
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