Fora
do dólar? Brasil e China construindo o futuro do Sul Global
Brasil
e China com esse acordo monetário deram um grande passo no sentido de
reorganização dos interesses do Sul Global neste novo momento histórico
Elias Jabbour/Portal da Fundação Maurício Grabois
Antes
de tratar do assunto principal deste artigo, acho necessária uma grande
digressão histórica para situar o nosso leitor do alcance dos acontecimentos
que estão a ocorrer no mundo hoje. Vamos lá.
Nguyen
Von Giap, comandante dos exércitos guerrilheiros que derrotaram o imperialismo
no Vietnã, foi perguntado sobre a razão da vitória sobre o “mais poderoso
exército do mundo”. Sua resposta foi objetiva: a “inteligência” dos generais
dos USA. Na verdade, a falta de inteligência desses generais. Essa mesma falta
de inteligência já havia levado o imperialismo a uma derrota na Guerra da
Coreia (1950-1953). Muitos na década de 1990 imaginavam que a vitória dos USA
na Guerra Fria contra a União Soviética havia demonstrado que a história sempre
esteve ao lado dos Estados Unidos. Foram raras as exceções que diziam o
contrário e já apontavam os limites do poder e as fragilidades da sociedade
norteamericana. Entre eles, um dos membros da alta liderança chinesa, Wang
Huning, que escreveu em 1991 um interessante livro chamado “America against
America”.
Novamente
a inteligência dos generais dos USA vão confirmando sua fama histórica. No
campo interno e externo a exportação da financeirização como novo padrão
acumulação global está demonstrando seus limites e levando o próprio
capitalismo ao colapso e transformando os USA em uma exportadora de seitas de
extrema-direita. Uma série de decisões políticas equivocadas tomada nos últimos
20 anos deixam clara essa “inteligência”. Uma série de intervenções militares
massivas e altamente custosas colocou os USA em um beco sem saída que vai das
guerras no Iraque e Afeganistão até apoio a milícias islâmicas, e também
participação direta, que destruíram um dos países mais estáveis da África
(Líbia), a tentativa de derrubada de Bachar Al-Assad na Síria e a expansão da
OTAN até as fronteiras da Rússia. Foram várias as frentes de batalha, incluindo
golpes (Honduras, Paraguai e Brasil) e tentativas de golpe (Venezuela, Bolívia)
onde as digitais do imperialismo eram claras. A crise de 2008 e o surgimento de
blocos alternativos mundo afora, como o BRICS, fizeram os USA dobrarem a aposta
na tentativa de impor uma ditadura fascista em âmbito global.
Já
falando no Brasil, nosso país foi um grande laboratório de testes das chamadas
guerras de quinta geração: Guerra de narrativas, financiamento de organizações
criminosas, financiamento de organizações para-militares, ONGs com interesses
duvidosos e cooptação de setores do serviço público, principalmente do poder
judiciário. A intenção era clara: destruir um capitalismo que estava emergindo
com força desde a vitória dos governos populares de Lula da Silva e Dilma
Roussef e para isso uma grande operação foi esboçada no Departamento de Estado
com vistas à destruição de nossa indústria e a prisão de Lula e, enfraquecer os
BRICS e retirar Dilma Roussef da chefia do Estado brasileiro. Desde o golpe de
2016 o Brasil passou por um processo de autodestruição que Lula da Silva tenta
impedir.
Em
nível internacional, desde Obama, outro movimento estava em andamento que
consiste na transformação plena do dólar em arma de destruição em massa. Todos
sabemos sobre os bloqueios financeiros que sofrem Cuba, Coreia Popular, Irã,
Venezuela e outros inimigos do imperialismo. Atualmente cerca de um terço dos
países do mundo sofre algum tipo de sanção comercial ou financeira pelos
Estados Unidos. Mas existe limites para tudo na vida, inclusive para um poder
que se julgava invencível. O imperialismo chegou seu limite ao forçar a Rússia
a entrar em um conflito na Ucrânia para em seguida tentar “expulsar a Rússia do
mundo”, incluindo sanções financeiras e congelamento de ativos em dólares.
Ninguém tenta expulsar um país do tamanho da Rússia e com seus imensos recursos
naturais e industriais impunemente. São momentos como este na história que um
dia vale mais do que décadas de luta.
Tudo
isso ocorria enquanto a China já tinha se tornado o maior parceiro comercial de
140 países e a Iniciativa Cinturão e Rota já era responsável por cerca de 3000
projetos de infraestruturas em todos os cantos do mundo. É irresistível a
analogia histórica: foi justamente com a utilização do dólar para financiar
obras na Europa na década de 1920 que os Estados Unidos iniciaram o projeto de
transformação do dólar em moeda de referência internacional. Ora, o
congelamento de ativos financeiros russos denominados em dólar demonstrou o
inegável: os Estados Unidos nunca foi um país confiável e suas preocupações não
passam por democracia e direitos humanos. A manutenção de seu poder total no
mundo demanda a completa desestabilização da ordem internacional e o conflito
na Ucrânia é mais uma expressão desse processo de “desordem mundial”
patrocinada pelo imperialismo.
E
o Brasil? Há cinco anos o então ex-presidente Lula da Silva foi condenado e
preso pela operação Lava Jato em um processo posteriormente denunciado como a
maior farsa da história da justiça brasileira. A esquerda brasileira passava
por um processo de brutal destruição de sua imagem pela grande imprensa e a
extrema-direita comandada por Jair Bolsonaro passava a ser força hegemônica no
cenário político nacional. Junto com Bolsonaro veio a completa submissão do
Brasil ao governo de Donald Trump, uma política econômica ultraliberal e um
rastro de fascismo que quase destruiu a sociedade brasileira. Anticomunista e
abertamente contra a China, Jair Bolsonaro foi a página mais triste da história
brasileira. E continua com muita força política mesmo após sua derrota nas
eleições gerais de 2022.
O
que ninguém imaginava é que não somente Lula da Silva sairia da cadeia. Ele
liderou uma frente ampla antifascista que derrotou Bolsonaro nas últimas
eleições. No front externo, sinalizou com a volta de uma política exterior em
prol da multipolaridade e de um Brasil mais próximo da China e do Sul Global.
Mais uma reviravolta típica na história de nosso país.
O
maior país da América Latina voltou a ser governado por forças progressistas,
mas o preço da destruição de nosso país tem sido muito caro. O país se
desindustrializou rapidamente com seu capital industrial destruído, cerca de
100 milhões de brasileiros vivem em estado de insegurança alimentar,
institucionalizou-se o trabalho precário e o ódio passou a fazer parte de nossa
sociedade. Por mais que Lula sinalize para uma participação mais ativa do
Brasil no mundo, a realidade de nosso país não é a mesma a época em que
chegamos ao posto de sexta maior economia do mundo. A ascensão chinesa acendeu
o alerta generalizado no chamado “ocidente”. O Brasil tem sofrido muita pressão
em todos os fóruns internacionais no sentido de tomar uma posição, por exemplo,
em relação ao conflito na Ucrânia. Mais: as autoridades norte-americanas já
assumem publicamente que os investimentos chineses na América Latina devem ser
tratados como um problema de segurança nacional. É neste mundo em transição que
nosso país é chamado à sua reconstrução.
Enquanto
o Brasil passava por uma grande prova existencial a China inaugurava o
paradigma “Laos/Camboja” em detrimento do paradigma norte-americano
“Iraque/Afeganistão”. A China levou ferrovias e outros tipos de infraestruturas
aos dois países citados enquanto os Estados Unidos destruíram om bombas o
Iraque e o Afeganistão. O socialismo voltava a pautar as relações
internacionais em oposição ao imperialismo. Não como nos tempos da União
Soviética onde se apostou em financiamento direto de insurgentes pelo mundo e
sim pela via da construção de um ponto de gravitação conforme Marx imaginava
para o “socialismo” que surgiria primeiro na Inglaterra, França e Alemanha e a
periferia do sistema se tornaria socialista por gravitação econômica. A China
socialista é esse ponto hoje e com a conflito na Ucrânia e a desmoralização do
imperialismo no Oriente Médio novas paradigmas em matéria de relações
internacionais são inaugurados pela China. O lema da “construção de uma comunidade
de futuro compartilhado” é um fato objetivo, não apenas palavras vazias.
Voltando
ao dólar e a desdolarização. O conflito na Ucrânia acelerou o processo de
unificação do território econômico e financeiro da Rússia e da China. Este
processo terá impactos ao mundo semelhantes ao momento histórico em que os
Estados Unidos, no último quarto do século XIX unificou seu território
econômico e formou uma imensa economia continental. São grandes marcos do novo
tempo que vivemos: Rússia e China unidas pelo yuan e imensos projetos de
infraestruturas, acrescidas pela utilização pela Índia do yuan para comprar
petróleo da Rússia e a Arábia Saudita abrir mão do dólar para fazer negócios
com a China. A completa desmoralização do imperialismo no Oriente Médio se completa
com o acordo histórico, mediado pela China, entre Irã e Arábia Saudita e a
possibilidade de fim da guerra, patrocinada pelo imperialismo, no Iêmen.
Mas
a construção deste processo histórico só será completa com a total inclusão da
América Latina, e seu principal país – o Brasil, como parte fundamental deste
mundo em transformação. Um grande e ousado passo foi dado com o acordo assinado
recentemente entre os dois países prevendo a utilização de suas próprias moedas
em negociações comerciais, dispensando o dólar. As vozes do imperialismo não
tardaram a aparecer. O congressista de extrema-direita Marco Rubio foi direto
ao ponto: “o acordo real-yuan impedirá sanções unilaterais do Ocidente”. O
congressista deixa muito clara uma ordem a ser superada onde o os Estados
Unidos, e o dólar em particular, se tornou uma ameaça real ao progresso humano,
sinônimo de retrocesso civilizacional.
Lênin
elaborou sobre as possibilidades reais do socialismo a partir dos chamados
“elos débeis da corrente imperialista”. Durante muito tempo este elo débil
esteve presente na Ásia onde as relações entre centro e periferia haviam se
tornado explosivas. As revoluções chinesa, coreana e vietnamita deram razão ao
revolucionário russo. Atualmente a América Latina é o elo débil da corrente
imperialista. Talvez o último refúgio de poder do imperialismo no mundo. Sem
antes, os Estados Unidos irão manter acesos os distúrbios no Estreito de
Taiwan, a tentativa de destruir a Rússia e o socialismo na China e o patrocínio
de grupos neonazistas mundo afora.
Brasil
e China com esse acordo monetário deram um grande passo no sentido de
reorganização dos interesses do Sul Global neste novo momento histórico que
vivemos. Aos revolucionários, a obrigação com a visão de processo histórico. A
consolidação do socialismo em âmbito mundial depende sobremaneira da
multiplicação destes acordos. Um centro de gravidade socialista (China)
ensejando imensos fluxos financeiros, monetários, de investimentos e de
comércio é fundamental para a causa da libertação nacional dos povos na
periferia do sistema. Já existe uma globalização alternativa comandada pela
China em andamento (Iniciativa Cinturão e Rota). Os países periféricos devem
tirar mais consequências deste projeto e o próprio Brasil deve ter uma adesão negociada
de forma que nossa entrada na Iniciativa sirva aos propósitos estratégicos de
meu país.
Brasil
e China podem reescrever juntos a história da América Latina e do Sul Global.
No caso do Brasil ainda imensos desafios políticos internos deverão ser enfrentados
e superados. Nosso país não tem muito tempo a perder diante de seus dramas
internos e de uma oposição de extrema-direita pronta para utilizar de todas as
formas possíveis para a destruição das esquerdas enquanto alternativa de poder
no Brasil. O Brasil e o mundo vivem momentos muito interessantes. Tenho certeza
da vitória da humanidade.
Elias Jabbour,
Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Vencedor do Special Book Award of China 2022
Às vezes o que reluz é ouro https://bit.ly/3Ye45TD
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