13 outubro 2025

Nobel contestado

Pérez Esquivel confronta Nobel de María Corina Machado
Nobel da Paz de 1980 acusa opositora venezuelana de incoerência e alinhamento aos EUA; críticas se somam a líderes da região e à reação dura de Maduro
Barbara Luz/Vermelho 

O argentino Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz em 1980, criticou duramente a escolha da opositora venezuelana María Corina Machado como vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2025. Aos 94 anos, Esquivel publicou uma carta aberta em que questiona os vínculos da dirigente com os Estados Unidos e sua postura de confronto contra o governo bolivariano.

“Corina, pergunto-lhe: por que você pediu aos Estados Unidos que invadissem a Venezuela? Quando recebeu o anúncio de que havia recebido o Prêmio Nobel da Paz, você o dedicou a Trump, agressor de seu país. […] A pior forma de violência é a mentira”, escreveu o argentino.

Coro internacional de críticas

A escolha de Machado provocou reações em toda a região. O jornalista espanhol Ignacio Ramonet classificou a decisão como “a necrose de um Prêmio Nobel”. Para ele, trata-se de “uma aberração da atual desordem internacional” e “a distopia de Orwell em 1984, na qual a paz é guerra”.

O presidente cubano Miguel Díaz-Canel afirmou que a escolha reflete “politização, preconceito e descrédito inimagináveis” do Comitê Norueguês. Segundo ele, trata-se de “uma manobra política” contra a liderança bolivariana. Já o ex-presidente hondurenho Manuel Zelaya foi ainda mais incisivo: “conceder o Nobel da Paz a uma golpista, aliada de interesses estrangeiros, é transformar o símbolo da paz em instrumento do colonialismo moderno”.

Michelle Ellner, da plataforma estadunidense Codepink, ressaltou que “não há nada remotamente pacífico” nas políticas de Machado, que sempre significaram “golpes, sanções e privatizações” para o povo venezuelano — em paralelo à destruição em Gaza.

Reação de Maduro

Neste domingo (12), durante as comemorações do “Dia da Resistência Indígena”, o presidente Nicolás Maduro chamou a opositora de “bruxa demoníaca”, sem mencioná-la diretamente. “Noventa por cento da população repudia a bruxa demoníaca da Sayona”, afirmou, citando uma figura do folclore venezuelano. “Queremos paz, e teremos paz – mas uma paz com liberdade, com soberania”, completou Maduro.

A carta de Pérez Esquivel

Publicada no jornal argentino Página 12 nesta segunda-feira (13) com o título “De Nobel para Nobel”, a carta de Esquivel recorda sua trajetória de resistência às ditaduras e pede coerência à opositora.

Ele alerta que os EUA “não têm aliados, apenas interesses” e acusa Machado de reforçar uma lógica colonial. “Preocupa-me que você não tenha dedicado o Prêmio Nobel ao seu povo, mas sim ao agressor da Venezuela. Acho, Corina, que você precisa analisar e entender sua posição: se você é apenas mais uma engrenagem no sistema colonial dos Estados Unidos, nunca poderá ser para o bem do seu povo.”

Esquivel conclui pedindo que a opositora abra “a mente e o coração ao diálogo” e que construa a paz “não provocando mais violência, mas trabalhando pela unidade e pela liberdade de seu povo”. Confira a Íntegra da carta abaixo.

De Nobel para Nobel

“Envio-lhe as saudações de Paz e Bem de que a humanidade e os povos que vivem na pobreza, no conflito, na guerra e na fome tanto necessitam. Esta carta aberta pretende expressar os seus sentimentos e partilhar algumas reflexões.

Fiquei surpreso com sua indicação ao Prêmio Nobel da Paz pelo Comitê Nobel. Isso me lembrou das lutas contra ditaduras no continente e no meu país, ditaduras militares que enfrentamos de 1976 a 1983. Sofremos prisões, tortura e exílio, com milhares de crianças desaparecidas, sequestradas e desaparecidas, e os voos da morte, dos quais sou um sobrevivente.

Em 1980, o Comitê Nobel me concedeu o Prêmio Nobel da Paz; 45 anos se passaram e continuamos trabalhando a serviço dos mais pobres e ao lado dos povos da América Latina. Aceitei esta alta distinção em nome de todos eles, não pelo Prêmio em si, mas pelo meu compromisso com as pessoas que compartilham as lutas e as esperanças de construir um novo amanhecer. A paz se constrói dia a dia, e devemos ser coerentes entre nossas palavras e nossas ações.

Aos 94 anos, continuo a ser um eterno aprendiz e estou preocupado com a sua posição e com as suas decisões sociais e políticas. Por isso, envio-lhe estes pensamentos.

O governo venezuelano é uma democracia com seus altos e baixos. Hugo Chávez abriu caminho para a liberdade e a soberania do povo e lutou pela unidade continental; ele foi um despertar da Grande Pátria. Os Estados Unidos o atacaram constantemente: não podem permitir que nenhum país do continente escape de sua órbita e dependência colonial; continuam a sustentar que a América Latina é seu “quintal”. O bloqueio dos Estados Unidos a Cuba por mais de 60 anos é um ataque à liberdade e aos direitos do povo. A resistência do povo cubano é um exemplo de dignidade e força.

Estou surpreso com o quanto você se apega aos Estados Unidos: você deve saber que eles não têm aliados ou amigos, apenas interesses. As ditaduras impostas na América Latina foram instrumentalizadas por seus interesses de dominação e destruíram a vida e a organização social, cultural e política dos povos que lutam por sua liberdade e autodeterminação. Nós, o povo, resistimos e lutamos pelo direito de sermos livres e soberanos, e não uma colônia dos Estados Unidos.

O governo de Nicolás Maduro está sob ameaça dos Estados Unidos e do bloqueio. Basta considerar as forças navais no Caribe e o perigo de uma invasão ao seu país. Vocês não disseram uma palavra, ou apoiam a interferência da grande potência contra a Venezuela. O povo venezuelano está pronto para enfrentar a ameaça.

Corina, pergunto-lhe. Por que você pediu aos Estados Unidos que invadissem a Venezuela? Quando recebeu o anúncio de que havia recebido o Prêmio Nobel da Paz, você o dedicou a Trump. O agressor do seu país que mente e acusa a Venezuela de ser traficante de drogas, uma mentira semelhante à de George Bush, que acusou Saddam Hussein de possuir “armas de destruição em massa”. Um pretexto para invadir o Iraque, saqueá-lo e causar milhares de vítimas, mulheres e crianças. Eu estava no hospital infantil de Bagdá no final da guerra e vi a destruição e as mortes perpetradas por aqueles que se proclamam defensores da liberdade. A pior forma de violência é a mentira.

Não se esqueça, Corina, que o Panamá foi invadido pelos Estados Unidos, que causaram morte e destruição na tentativa de capturar um antigo aliado, o General Noriega. A invasão deixou 1.200 mortos em Los Chorrillos. Hoje, os Estados Unidos buscam retomar o Canal do Panamá. É uma longa lista de intervenções e sofrimentos na América Latina e no mundo por parte dos Estados Unidos. As veias da América Latina ainda estão abertas, como disse Eduardo Galeano.

Preocupa-me que você não tenha dedicado o Prêmio Nobel ao seu povo, mas sim ao agressor na Venezuela. Acho, Corina, que você precisa analisar e entender sua posição: se você é apenas mais uma engrenagem no sistema colonial dos Estados Unidos, sujeita aos seus interesses dominantes, o que nunca poderá ser para o bem do seu povo. Como oponente do governo Maduro, suas posições e escolhas geram muita incerteza. Você está recorrendo ao pior quando pede que os Estados Unidos invadam a Venezuela.

O importante é ter em mente que construir a paz exige muita força e coragem para o bem do seu povo, que conheço e amo profundamente. Onde antes havia barracos nas colinas onde as pessoas sobreviviam na pobreza e na miséria, hoje há moradia digna, saúde, educação e cultura. A dignidade do povo não pode ser comprada nem vendida.

Corina, como diz o poeta: “Caminhante, não há caminho, o caminho se faz caminhando.” Agora você tem a oportunidade de trabalhar pelo seu povo e construir a paz, não de provocar mais violência. Um mal não se resolve com outro mal maior. Teremos apenas dois males e nunca uma solução para o conflito.

Abra sua mente e seu coração ao diálogo, ao encontro com seu povo, esvazie o jarro da violência e construa a paz e a unidade entre seu povo para que entre a luz da liberdade e da igualdade.”

Justificativa do Comitê Nobel

Em Oslo, o Comitê Norueguês justificou a escolha afirmando que Machado foi laureada “por seu trabalho incansável na promoção dos direitos democráticos para o povo da Venezuela e sua luta por uma transição justa e pacífica da ditadura para a democracia”.

O presidente do Comitê, Jorgen Watne Frydnes, afirmou que a opositora é “um dos exemplos mais extraordinários de coragem civil na América Latina nos últimos tempos”.

Quem é María Corina Machado

María Corina Machado (Caracas, 1967) é engenheira industrial e política de extrema-direita da Venezuela. Figura conhecida pela defesa de sanções estrangeiras, esteve diretamente envolvida no golpe de Estado de 2002 contra Hugo Chávez, assinando o “Decreto Carmona”, que dissolvia as instituições do país.

Fundadora de organizações oposicionistas como a Súmate e Soy Venezuela, manteve vínculos com a agenda dos Estados Unidos, chegando a pedir publicamente intervenção militar contra seu próprio país. Cassada como deputada em 2014 e posteriormente proibida de exercer cargos públicos, tornou-se um dos rostos mais agressivos da oposição a Nicolás Maduro.

Apesar de se apresentar como defensora da democracia, seu histórico combina apoio a golpes, sanções e privatizações — medidas que aprofundaram o sofrimento do povo venezuelano. Ainda assim, foi laureada com o Prêmio Nobel da Paz.

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