07 novembro 2022

América Latina: tensões

Conflitos de fronteira na América Latina

Herdadas das independências, as fronteiras latino-americanas estão longe de ser sem importância. Muitas disputas opõem os países a seus vizinhos ou a uma potência europeia. As narrativas nacionais, muitas vezes reforçadas nos currículos escolares, alimentam a sacralização dos territórios e clamam pela recuperação de terras perdidas
Romain Droog, Le Monde Diplomatique

 

Rosário de ilhas de areia branca no Caribe habitadas pela comunidade raizal, que vive principalmente da pesca, o arquipélago de San Andrés, na Colômbia, é a imagem de um cartão-postal. No entanto, desde uma decisão proferida pela Corte Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas (CIJ-ONU) em 21 de abril de 2022, os raizais tiveram de pendurar suas redes. As ilhas colombianas são um enclave em um mar territorial que acaba de ser reconhecido como pertencente à Nicarágua, o que torna ilegal a pesca nessas águas.

O arquipélago de San Andrés é apenas o exemplo mais recente de uma série de questionamentos de fronteiras, tanto marítimas como terrestres, no espaço latino-americano. Dos dezoito casos pendentes ou atualmente em julgamento no Tribunal de Haia, um terço diz respeito a disputas de fronteira entre países do continente. Além das divisões ideológicas, sociais e culturais, as tensões geográficas atravessam todas as sociedades latino-americanas e unem as comunidades nacionais: o perigo externo que paira sobre a fronteira, ao mesmo tempo concreto e imaginário, contribui para o sentimento de nação.

No papel, porém, o princípio que rege a delimitação territorial parecia muito claro. Quando se aproximavam as independências nacionais na região, majoritariamente ocorridas entre 1810 e 1822, a posse dos novos territórios remetia ao princípio conhecido como uti possidetis juris: “Como possuís, assim possuais”. O novo Império do Brasil optou por preservar sua unidade territorial traçando seus contornos sobre aqueles negociados durante o Tratado de Madri, de 1750. Seguindo a mesma regra jurídica, as nações emancipadas da Coroa Real espanhola retomaram os limites das estruturas administrativas subordinadas já existentes: o território da Real Audiência de Quito tornou-se o Equador, o Vice-Reino do Rio da Prata converteu-se na Argentina etc. As jovens repúblicas de então, mantidas pelas novas elites crioulas locais, pretendiam emancipar-se de seu estatuto colonial sem desfazer completamente as estruturas institucionais (e sociais) imperiais.1

No entanto, o princípio do uti possidetis juris esbarra em muitas armadilhas. Perseguindo a utopia de uma América Latina unificada, encarnada na figura de Simón Bolívar, os territórios onde hoje identificamos a Colômbia, o Panamá, a Venezuela e o Equador permaneceram unidos sob o brasão da Grã-Colômbia por décadas, até se separarem em 1831. A Argentina, por sua vez, havia muito dividida entre os interesses discordantes da capital e das províncias do interior, fragmentou-se em várias entidades antes de se refederalizar, por volta de 1860. Isso sem contar os inúmeros conflitos armados do século XIX que transformaram as fronteiras nacionais da região: a Guerra do Paraguai (1865-1870), que amputou metade do território paraguaio, a Guerra Mexicano-Americana (1846-1848) ou ainda a Guerra do Pacífico (1879-1884), entre o Chile, o Peru e a Bolívia, que deixou esta sem acesso ao mar.

A importância capital das artes

Além disso, a lógica extrativista do Império Espanhol concentrava-se em alguns pontos estruturantes (como as minas, as grandes cidades e os portos), com base nos quais se organizava o restante do território. No momento das independências, grande parte do espaço das Américas permanecia pouco ou não explorada (como é o caso da imensa Floresta Amazônica e das infinitas planícies da Patagônia povoadas pelos mapuches) ou não mostrava nenhum pertencimento claro (como foi o caso do arquipélago de San Andrés, transferido durante a era colonial da capitania da Guatemala para o Vice-Reino de Nova Granada, atual Colômbia). Em uma área na qual até então as estruturas territoriais coloniais eram delimitadas de forma uníssona pela metrópole, as novas repúblicas estabeleceram suas regras de modo independente umas das outras, sem se preocuparem com os vizinhos. Essa polifonia levou ao desenvolvimento de romances nacionais contraditórios na região, fonte de muitos conflitos territoriais.

Uma vez libertas do domínio colonial, as jovens elites latino-americanas começaram a trabalhar para assentar o destino de seu país em narrativas nacionais estruturantes. Tratava-se de teorizar-se como repúblicas independentes. A diversidade de populações e de realidades históricas dentro de um mesmo território obrigou esses líderes a criar, e depois alimentar, uma consciência nacional passível de ser compartilhada pelo conjunto da sociedade. As artes desempenharam aqui um papel fundamental: construiu-se um cânone cultural, uma literatura, um teatro, um folclore “puramente” nacionais. Compuseram-se hinos, criaram-se mitos populares, elevaram-se estátuas pela glória dos novos heróis da nação. Essas narrativas foram depois retransmitidas nas salas de aula, em um momento no qual o acesso à educação elementar começava a se generalizar.

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Essas grandes epopeias espelhavam as narrativas dos países vizinhos e estavam enraizadas na questão territorial. Como aponta o cientista político equatoriano Adrián Bonilla em um artigo dedicado ao nacionalismo do Peru e do Equador: “A identidade, o sentimento de pertencimento, a ‘comunidade’ que se constrói e se vê como ‘Equador’ ou ‘Peru’ remete necessariamente a seu espaço físico, ainda mais quando existem universos paralelos de representações que tensionam a imagem nacional: a multiplicidade de expressões locais e culturais específicas, bem como a similitude das sociedades que têm mais ou menos a mesma história nacional, a mesma composição étnica e economias e recursos similares, sobretudo quando comparadas em escala mundial”.2

Em uma região como a América Latina, onde os recursos naturais são abundantes e diversos, a natureza faz parte do romance nacional. A disputa territorial entre o Peru e o Equador diz respeito a uma parte da Floresta Amazônica: foi ela que acabou levando à Guerra de Cenepa, em 1995, último conflito armado na região. Do ponto de vista equatoriano, essa luta encontrou legitimidade na cosmovisão nacional. O país andino estruturou sua narrativa na premissa do Equador como nação amazônica, por isso perder o território de Cenepa (e consequentemente o acesso ao Rio Amazonas) representava um atentado à identidade nacional. A mesma situação aplicou-se à questão do acesso da Bolívia ao mar durante a Guerra do Pacífico (1879-1884).3 Considerando-se uma potência marítima (que aliás ainda possui uma força militar naval), a Bolívia vê esse conflito não apenas como uma ameaça de natureza econômica, mas também como uma violação de sua narrativa nacional.

Nessas condições, as disputas de fronteira constituem queixas legítimas: a exigência de recuperação de um membro amputado do corpo nacional. Com um sistema educacional funcionando como vetor de transmissão, as mentalidades perpetuam a grande narrativa nacionalista, de geração em geração. Na Argentina, por exemplo, as Ilhas Malvinas são sistematicamente incluídas nos mapas nacionais exibidos nas salas de aula. A Lei Nacional de Educação, em vigor desde 2006, afirma: “A luta pela recuperação de nossas Ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul fará parte do conteúdo curricular comum de todas as jurisdições”. Nesse clima, portanto, não surpreende que, em 1985, no fim da guerra, um estudo tenha mostrado que 73,6% da população do país estava convencida de que a Argentina perdeu territórios desde sua independência. Ter sido privada das Ilhas Malvinas parece mais forte do que os milhões de quilômetros quadrados tirados do Paraguai ou dos territórios mapuches da Patagônia durante a famosa “conquista do deserto”. Esse sentimento de perda aumenta proporcionalmente ao nível de escolaridade: 86% dos entrevistados com diploma de ensino superior contra 61% daqueles que cursaram apenas a escola primária. Quanto mais tempo os argentinos permanecem no sistema educacional, mais assimilam a doutrina nacionalista.

A religião do futebol

Essa noção de luta territorial encontra seu apogeu quando é incorporada ao texto-fonte, ao DNA do Estado: sua Constituição. A questão territorial então se transforma em política de Estado. Para citar apenas alguns exemplos, o artigo 268 da Constituição boliviana declara seu “direito imprescritível ao território que lhe dá acesso ao Oceano Pacífico e seu espaço marítimo”. O artigo 10 da Constituição venezuelana de 1999 descreve o território nacional como aquele correspondente à “Capitania Geral da Venezuela de 1810” (incluindo de facto o território de Esequibo, em litígio com a vizinha Guiana). A Constituição argentina de 1994 afirma sua soberania imprescritível sobre as Ilhas Malvinas, sendo sua recuperação concebida como “um objetivo permanente e essencial do povo argentino”. Quanto à Constituição brasileira de 1988, ela introduziu o conceito de “faixa de fronteira”, uma zona territorial de 150 quilômetros de largura ao longo da fronteira, considerada “fundamental para a defesa do território nacional”, cujo uso e ocupação são regulamentados por lei.

A sacralização do território nacional encontra uma caixa de ressonância na “religião do futebol”. Algumas vezes, liturgia e esporte chegam a se cruzar em um coquetel explosivo, que beira o realismo mágico. O caso mais emblemático continua sendo o gol de mão marcado por Diego Maradona contra a Inglaterra nas quartas de final da Copa do Mundo de 1986. Quatro anos após a terrível Guerra das Malvinas, uma verdadeira afronta para o regime militar enfraquecido do general Jorge Rafael Videla, o povo argentino se vingou no gol mítico do Pibe de Oro [Menino de Ouro], descrito na cultura popular como Mano de Dios [Mão de Deus] .

Alguns anos antes, El Salvador e Honduras se enfrentaram em outra “guerra do futebol”. A inimizade entre os dois vizinhos, provocada pelas ondas de migração salvadorenha rumo a Honduras, violentamente repelidas por este último, foi habilmente mantida pelos regimes ditatoriais dos dois países. Ela se cristalizou nas eliminatórias da Copa do Mundo de 1970. A primeira partida entre as duas seleções, vencida por Honduras, provocou o suicídio de uma jovem salvadorenha de 18 anos, que não suportou a derrota de seu país. O tiro no coração provocou uma emoção nacional tão forte que o presidente salvadorenho e toda a seleção nacional de futebol estiveram presentes em seu funeral. Na partida de volta, disputada em El Salvador, o hotel onde a equipe de Honduras se hospedou foi sitiado. A equipe precisou de proteção do Exército para chegar ao palco onde, última provocação, os organizadores queimaram a bandeira hondurenha e a trocaram por um pano de prato no momento do hino nacional. Duas semanas depois estourou a guerra entre os dois países, um conflito relâmpago que durou quatro dias, resultando em 2 mil a 6 mil mortes.

Em resposta à sacralização dos conflitos territoriais, a Igreja Católica teve seu papel em alguns processos de paz na região. Desde os tempos coloniais, a instituição incentivou a Coroa espanhola ao trabalho cartográfico, de modo a explicitar a expansão do catolicismo pelo mundo. No século XX, ela voltou a pedir o mapeamento das fronteiras, mas com o objetivo de apaziguar os povos. O papa João Paulo II, por exemplo, esteve pessoalmente envolvido na resolução do conflito na Patagônia entre o Chile e a Argentina, bem como na obtenção de um cessar-fogo durante a Guerra de Cenepa.

Outros atores se destacaram na resolução de disputas territoriais, especialmente o Brasil. No início do século XIX, a definição das fronteiras nacionais, sobretudo na Amazônia, mostrou-se crucial para esse país. Cercado por uma miríade de jovens repúblicas, ansiosas para dar sua dentada em um bolo ainda não claramente dividido, o Brasil iniciou o processo de definição de suas fronteiras buscando manter a maior parte da floresta sob suas asas. A narrativa nacional do país amazônico por excelência é una com a selva e seu rio (Amazônia), mãe de tudo e de todos. A geração dos românticos brasileiros das décadas de 1830-1840 construiu a imagem nacional em torno de uma natureza tropical primitiva idealizada. A exaltação dessa abundância natural serve de fundamento para a identidade nacional. Além disso, o Brasil faz fronteira com outros dez países, o que aumenta o risco de disputas territoriais. Assim, o colosso latino-americano logo decidiu profissionalizar seu corpo diplomático, encarregado de gerenciar essas novas relações de vizinhança.

Para além da definição de suas próprias fronteiras, na condição de potência regional e detentor de 70% da Floresta Amazônica, o Brasil zela pelo estabelecimento de demarcações claras com os territórios de seus vizinhos, de modo a evitar desestabilizações de escala regional. Assim, a República do Brasil esteve envolvida, como força mediadora, nas disputas territoriais amazônicas entre a Colômbia e o Peru (1932) e entre este e o Equador. Esse último conflito, latente desde a independência dos dois países, encontrou uma resolução parcial com o Acordo do Rio de Janeiro, de 1941. A Guerra de Cenepa terminou em 1998 graças à intervenção brasileira, com a assinatura dos Acordos de Brasília.

Enquanto as potências ocidentais estiveram frequentemente envolvidas na resolução de conflitos no início do século XX, notadamente os Estados Unidos, o Reino Unido e a França, as últimas décadas caracterizaram-se pelo uso de ferramentas regionais e multilaterais. Em alguns casos, países terceiros da vizinhança imediata serviram de fiadores. Foi o caso do conflito entre o Equador e o Peru, cujas negociações foram conduzidas por Argentina, Brasil, Chile e Estados Unidos. Alguns desses países, então garantidores da paz, foram eles próprios confrontados com seus conflitos territoriais, entre si ou com um dos beligerantes: a Argentina contra o Chile no sul da Patagônia, e o Chile contra o Peru na definição de sua fronteira marítima.

Em 1948, um grande número de países da região aderiu ao Pacto de Bogotá, que obrigou os signatários a considerar todos os instrumentos pacíficos de resolução de crise e priorizar as instâncias regionais e a Corte Internacional de Justiça. Nem todos os conflitos foram evitados, mas a emoção que despertaram facilitou sua transferência para níveis regionais ou multilaterais, em um processo de desescalada. As sentenças mais recentes emitidas pelo Tribunal de Haia estão repletas de exemplos oriundos da América Latina: Bolívia contra Chile (2018), Costa Rica contra Nicarágua (2009, 2015 e 2018), Nicarágua contra Honduras (2007), Nicarágua contra Colômbia (2012 e 2022), Peru contra Chile (2014). Quanto à Organização dos Estados Americanos (OEA), ela tem um papel central na resolução pacífica dos eternos conflitos entre Guatemala e Belize (uma serpente marinha que dura desde 1859), bem como entre Honduras e El Salvador.

Essas disputas afetam as relações bilaterais entre os Estados latino-americanos. Elas permitem, no entanto, consolidar um espaço de diálogo regional capaz de desarmar algumas situações. Há algum tempo, na América Latina, as fronteiras aproximam mais do que dividem. O desenvolvimento de instituições supranacionais, a projeção internacional da América Latina como um continente de paz, a forte interdependência entre países fronteiriços (nos planos econômico, turístico, de segurança ou em questões migratórias) e a profissionalização dos corpos diplomáticos nacionais são parâmetros que facilitaram a pacificação das disputas territoriais nos últimos anos.

O exemplo mais recente remete ao ressurgimento da disputa pelas fronteiras marítimas entre o Chile e a Argentina, em setembro de 2021. A questão foi rapidamente absorvida pelos canais diplomáticos, para os quais um conflito armado parece desde então difícil de imaginar. No entanto, o reaparecimento do tema poucas semanas antes de prazos eleitorais cruciais para os governos então no poder demonstra a potencial instrumentalização da questão das fronteiras. Mas, como sugere Bonilla, o peso do nacionalismo na região reflete paradoxalmente a fragilidade das estruturas do Estado nessas áreas periféricas, onde populações e territórios são muitas vezes negligenciados: “Na ausência de elementos que preencham de substância a soberania estatal, esta privilegia o exercício da autoridade e a posse do território. Portanto, sua conservação ou acumulação adquire uma maior força simbólica e um papel central na legitimação da existência do ente estatal”. No conceito de Estado-nação, quando o primeiro dos dois elementos vem a faltar, o outro às vezes assume.

Romain Droog é conselheiro econômico da Embaixada da Argentina na Bélgica e jornalista da associação Nouveaux Espaces Latinos.

1 Ler Renaud Lambert, “Icare ou l’impossible démocratie latinoaméricaine” [Ícaro ou a impossível democracia latino-americana], Le Monde Diplomatique, mar. 2021.

2 Adrián Bonilla, “Las imágenes nacionales y la guerra” [As imagens nacionais e a guerra], Colombia Internacional, n.40, Universidad de los Andes, Bogotá, 1997.

3 Ler Cédric Gouverneur, “La Bolivie les yeux vers les flots” [A Bolívia com os olhos voltados para o mar], Le Monde Diplomatique, set. 2015.

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