11 novembro 2022

Crise habitacional

A volta dos despejos e remoções

Há risco considerável de aumento da violência nos conflitos fundiários no país
Bianca Tavolari
Professora de direito do Insper, é pesquisadora do Cebrap e do Mecila
 Folha de S. Paulo

 

Um terreno vazio de mais de 270 mil m2 em plena zona leste de São Paulo. Nada foi construído ali, ao menos desde 1981. A propriedade é de uma empresa do grupo Savoy, imobiliária dona de mais de 1.700 endereços na cidade e de uma das maiores dívidas de IPTU. Os mais de 40 anos de terra sem função acabaram em julho de 2021, quando, no auge da pandemia, centenas de famílias vulneráveis ocuparam o imóvel e começaram a erguer suas casas.

As mais de 3.000 pessoas que formaram a ocupação Jorge Hereda, no bairro do Aricanduva, são o retrato da nova vulnerabilidade habitacional brasileira, agravada pela crise sanitária e pelos efeitos econômicos e sociais que ainda persistem. Queda de rendimentos, desemprego e perdas familiares levaram à escolha impossível entre comer ou pagar o aluguel. A permanência nas casas autoconstruídas foi possível em razão da suspensão a despejos e remoções, em decisão do ministro Luís Roberto Barroso e referendada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal.

Prorrogada por três vezes, a suspensão esteve em vigor até o dia 31 de outubro. Anteriormente, o ministro já sinalizava que a prorrogação não poderia se dar indefinidamente, mas que tampouco poderia haver uma espécie de "tudo ou nada". Sair do estado de suspensão exigiria um regime de transição. O que acontece agora que estamos diante de uma possível avalanche de despejos e remoções, com o fim da medida adotada pelo STF?

A corte decidiu adotar critérios específicos para a transição. As regras valem apenas para ocupações coletivas. No caso do aluguel, não há qualquer parâmetro de passagem: medidas liminares voltam a ser permitidas em ações de despejo por falta de pagamento.

As condicionantes para transição são exigências prévias e obrigatórias para qualquer remoção coletiva. A primeira e mais importante delas é a exigência de criação imediata de Comissões de Conflitos Fundiários nos tribunais para concentrar as audiências de mediação dos conflitos e evitar a violência. A comissão pode realizar estudos, inspeções judiciais, agendar reuniões, monitorar resultados e, especialmente, criar cronograma escalonado de remoções com garantia de direitos fundamentais.

É obrigatório que cada conflito coletivo seja debatido e negociado nessas arenas. Fica a critério de cada tribunal definir as atribuições e a composição de sua comissão. As recomendações aprovadas pelo Supremo podem gerar arranjos muito distintos em cada tribunal, o que demanda atuação nacional do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Para além de uma possível heterogeneidade institucional, também há pontos pouco claros na decisão do dia 31. Os órgãos de mediação que já existem podem ser substitutos à altura das comissões, mesmo que não sejam especializados? Como garantir corpo técnico para monitorar impactos e trabalhar em mediações complexas, algumas com centenas de famílias vulneráveis? Além disso, a lei exige a mediação apenas quando a ocupação dura mais de um ano e um dia. Não há clareza de procedimento para casos mais recentes.

Mesmo sem a instalação das Comissões de Conflitos Fundiários, já há decisões de tribunais inferiores que rejeitam não só o princípio de uma transição, mas a própria ideia de mediação dos conflitos pelas cortes. O juiz do caso da ocupação Jorge Hereda determinou que a Polícia Militar seria diretamente competente para a desocupação. O órgão tradicional de mediação do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp), criado após o caso Pinheirinho, está há quase dois anos inativo por ausência de indicação de juiz responsável por parte da presidência do TJ-SP.

As famílias que ocuparam o terreno vazio na zona leste estão longe de ser caso isolado. A Campanha Despejo Zero estima 188 mil famílias sob risco de remoção no Brasil. Os tribunais podem tomar a decisão do STF como oportunidade para aprimorar mediações complexas de conflitos de alta voltagem. Ou podem ignorá-la e contribuir ativamente com uma avalanche de despejos e com o aumento da violência nos conflitos fundiários no país.

Leia também: Amplitude na transição: correta, mas arriscosa https://bit.ly/3EkFrJ7

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