A volta dos despejos e remoções
Há risco considerável de
aumento da violência nos conflitos fundiários no país
Bianca Tavolari
Professora de direito do Insper,
é pesquisadora do Cebrap e do Mecila Folha de S. Paulo
Um terreno vazio de mais de 270 mil m2 em plena zona leste de São Paulo. Nada foi construído ali,
ao menos desde 1981. A propriedade é
de uma empresa do grupo Savoy, imobiliária dona de mais de 1.700 endereços na
cidade e de uma das maiores dívidas de IPTU. Os mais de 40 anos de terra sem
função acabaram em julho de 2021, quando, no auge da pandemia, centenas de famílias vulneráveis ocuparam o
imóvel e começaram a erguer suas casas.
As mais de 3.000 pessoas que formaram a ocupação Jorge Hereda,
no bairro do Aricanduva, são o retrato da nova vulnerabilidade
habitacional brasileira, agravada pela crise sanitária e pelos
efeitos econômicos e sociais que ainda persistem. Queda de rendimentos,
desemprego e perdas familiares levaram à escolha impossível entre comer ou
pagar o aluguel. A permanência nas casas autoconstruídas foi possível em razão
da suspensão a despejos e remoções, em decisão do ministro Luís Roberto Barroso e
referendada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal.
Prorrogada por três vezes, a suspensão esteve em vigor até o dia
31 de outubro. Anteriormente, o ministro já sinalizava que a
prorrogação não poderia se dar indefinidamente, mas que tampouco poderia haver
uma espécie de "tudo ou nada". Sair do estado de suspensão exigiria
um regime de transição. O que acontece agora que estamos diante de uma possível
avalanche de despejos e remoções, com o fim da medida adotada pelo STF?
A corte decidiu adotar critérios específicos para a transição.
As regras valem apenas para ocupações coletivas. No caso do aluguel, não há
qualquer parâmetro de passagem: medidas liminares voltam a ser permitidas em
ações de despejo por falta de pagamento.
As condicionantes para transição são exigências prévias e
obrigatórias para qualquer remoção coletiva. A primeira e mais importante delas
é a exigência de criação imediata de
Comissões de Conflitos Fundiários nos tribunais para concentrar
as audiências de mediação dos conflitos e evitar a violência. A comissão pode
realizar estudos, inspeções judiciais, agendar reuniões, monitorar resultados
e, especialmente, criar cronograma escalonado de remoções com garantia de
direitos fundamentais.
É obrigatório que cada conflito coletivo seja
debatido e negociado nessas arenas. Fica a critério de cada tribunal
definir as atribuições e a composição de sua comissão. As recomendações
aprovadas pelo Supremo podem gerar arranjos muito distintos em cada tribunal, o
que demanda atuação nacional do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Para além de uma possível heterogeneidade institucional, também
há pontos pouco claros na decisão do dia 31. Os órgãos de mediação que já
existem podem ser substitutos à altura das comissões, mesmo que não sejam
especializados? Como garantir corpo técnico para monitorar impactos e trabalhar
em mediações complexas, algumas com centenas de famílias vulneráveis? Além
disso, a lei exige a mediação apenas quando a ocupação dura mais de um ano e um
dia. Não há clareza de procedimento para casos mais recentes.
Mesmo sem a instalação das Comissões de Conflitos Fundiários, já
há decisões de tribunais inferiores que rejeitam não só o princípio de uma
transição, mas a própria ideia de mediação dos conflitos pelas cortes. O juiz
do caso da ocupação Jorge Hereda determinou que a Polícia Militar seria
diretamente competente para a desocupação. O órgão tradicional de mediação do
Tribunal de Justiça de São Paulo, o Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de
Reintegração de Posse (Gaorp), criado após o caso Pinheirinho,
está há quase dois anos inativo por ausência de indicação de juiz responsável
por parte da presidência do TJ-SP.
As famílias que ocuparam o terreno vazio na zona leste estão
longe de ser caso isolado. A Campanha Despejo Zero estima
188 mil famílias sob risco de remoção no Brasil. Os tribunais podem tomar a
decisão do STF como oportunidade para aprimorar mediações complexas de
conflitos de alta voltagem. Ou podem ignorá-la e contribuir ativamente com uma
avalanche de despejos e com o aumento da violência nos conflitos fundiários no
país.
Leia
também: Amplitude na transição: correta, mas arriscosa https://bit.ly/3EkFrJ7
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