Governo Lula vai começar com 'revogaço’ em
normas sobre meio ambiente e armamento
Áreas
são consideradas prioritárias, e reversão depende apenas do presidente eleito
Sérgio Roxo, Rafael Garcia,
Paula Ferreira, Eduardo Gonçalves, Bruno Góes, Ana Lúcia Azevedo e Rafael Soares,
O Globo
O governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) planeja para as primeiras semanas após a posse um “revogaço” de portarias e decretos implantados ao longo da gestão de Jair Bolsonaro. O foco será reverter iniciativas que facilitaram o acesso a armas, dificultaram o combate ao desmatamento e impuseram sigilos a informações.
O cancelamento dessas medidas depende apenas da decisão do Executivo, sem necessidade de construção de uma maioria parlamentar. A lista exata de normas que serão derrubadas ou modificadas começará a ser decidida nesta semana, com o início dos trabalhos da equipe de transição coordenada pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin. Cinquenta pessoas vão preparar uma radiografia do atual governo.
Uma das bandeiras da
campanha de Lula, a redução do números de armas em circulação deve ser
alcançada, entre outras formas, por meio da mudança completa das políticas de
Bolsonaro.
— O compromisso expresso
na campanha foi revogar decretos que facilitam o acesso a armas e munições —
afirma o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que integrou o grupo responsável por
discutir propostas para a segurança pública.
Em entrevista ao GLOBO na
semana passada, o senador eleito Flávio Dino (PSB-MA), cotado para o Ministério
da Justiça, classificou de “imprescindível” a revisão de regras no setor. O
Anuário Brasileiro de Segurança Pública diz que o controle da posse de armas
foi “desmantelado”, fazendo com que civis e Caçadores, Atiradores e
Colecionadores (CACs) tenham em mãos um arsenal superior ao de órgãos públicos.
Ao todo, foram editados 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções e três
instruções normativas.
Foi por meio de
“canetadas”, por exemplo, que Bolsonaro abriu caminho aos CACs. A quantidade a
que a categoria podia ter acesso passou de 16 armas, 40 mil projéteis e quatro
quilos de pólvora para 60 armas, 180 mil cartuchos e 20 quilos de pólvora. Com
as mudanças nas regras, o número de CACs cresceu de 117 mil em 2018 para mais
de 673 mil até junho de 2022 — as armas registradas pelo grupo saltaram de 350
mil para mais de 1 milhão no período.
— Precisamos repensar o
controle de munição. É preciso não apenas revogar, mas inovar para facilitar o
rastreio de cartuchos e tornar obrigatória a marcação da munição vendida no
país — afirma o policial federal Roberto Uchôa, pesquisador do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública.
Já o gerente do Instituto
Sou da Paz, Bruno Langeani, defende que até mesmo as mudanças barradas pelo
Supremo Tribunal federal (STF) precisam ser anuladas:
— A autorização para
compras de armas sem a justificativa de necessidade, por exemplo, caiu com uma
decisão do ministro Edson Fachin, mas precisa ser revogada para não causar
confusão jurídica. Além disso, a decisão proíbe compras de fuzis por civis, mas
não trata das armas já compradas, que estão em circulação. O novo governo vai
precisar se debruçar sobre isso.
Na área ambiental, o
deputado federal Nilto Tatto (PT), um dos coordenadores do setor na campanha de
Lula, elenca como prioridade a revogação de dois atos do governo Bolsonaro — um
que reduziu o espaço da sociedade civil no Conselho Nacional de Meio Ambiente
(Conama); e outro que prevê a anulação de multas ambientais avaliadas em mais
de R$ 16 bilhões.
— Temos que trabalhar
nisso agora no início do governo, pois esses atos emperram as outras pautas —
disse o parlamentar, que irá junto com Lula à Conferência das Nações Unidas
sobre Mudanças Climáticas (COP27), no Egito.
Na conta do centro de
pesquisa independente Instituto Talanoa e do projeto Política por Inteiro,
existem 401 atos do Executivo emitidos entre 2019 e 2022 que precisam ser
revistos “para a reconstituição da agenda climática e ambiental brasileira”.
Estão também na lista normas que versam sobre direitos indígenas e facilitação ao
garimpo, dificultando a fiscalização.
Na opinião da pesquisadora
Natalie Unterstell, presidente do Talanoa, apesar da urgência em tratar muitas
questões, é preciso evitar a tomada de decisões importantes sem debate. A lista
de assuntos frágeis inclui a NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada), que
é a proposta oficial do Brasil de redução de emissões de CO2.
— Até se pode ir lá e
jogar um ato logo no primeiro dia colocando uma NDC nova, mas a gente entende
que é indispensável para isso refazer o diálogo com a sociedade — diz a
cientista
A maior parte das normas
infralegais que precisam de revisão foram emitidas durante o primeiro ano e
meio de pandemia da Covid-19, quando o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo
Salles propunha que o governo aproveitasse a situação de instabilidade para
seguir “passando a boiada” dos atos que flexibilizavam normas ambientais.
O Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc) produziu um levantamento dessas medidas no ano passado.
Para Alessandra Cardoso, analista política da entidade, é preciso atuar fora do
Ministério do Meio Ambiente também:
— Muitas “boiadas”
passaram no Incra, na Funai, no Ministério da Economia... A gente tem que ter
um olhar amplo para o que foi esse desmonte e revertê-lo nos primeiros cem dias
de governo.
“Sem revanchismo”
Também está nas pretensões de Lula revogar decretos que impuseram
sigilos de cem anos a assuntos envolvendo o governo federal. O petista chegou a
prometer rever essas iniciativas nos debates com Bolsonaro ao longo da
campanha. Ficaram sob sigilo, entre outros temas, a carteira de vacinação do
presidente, o processo interno do Exército sobre a participação do então
general Eduardo Pazuello em manifestação ao lado de Bolsonaro no Rio em maio de
2021, os crachás de acesso dos filhos de Bolsonaro ao Palácio do Planalto e a
investigação da Receita Federal contra o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Há pontos críticos ainda
nas áreas de saúde e educação, que não devem passar incólumes ao “revogaço”. O
Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) elabora um documento para
entregar à equipe de transição com políticas que, na opinião da organização,
devem ser revistas, como programas e portarias lançados pelo Ministério da
Saúde sem discussão com gestores locais, contrariando o que prevê a legislação.
Um dos pontos é a Rede de Atenção Materno Infantil (RAMI), que substituiu a
Rede Cegonha, criada em 2011 e reconhecida pelo sucesso em relação à atenção ao
pré-natal, parto e puerpério. Entre as críticas, estava o fato de a política
dar protagonismo a médicos obstetras sem prever atenção à criança por meio de
pediatras.
— Tivemos desmontagens no
campo da atenção básica, além da interrupção de programas na área de saúde da
mulher. O ministério destruiu a relação de gestão tripartite com municípios e
estados. Não é revogar por revanchismo, vamos ter que avaliar os atos. É para
isso que serve a transição: identificar os principais problemas — afirma o
ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, que participou da construção do plano de
governo de Lula.
Na educação, um dos
principais alvos deve ser a Política Nacional de Alfabetização (PNA).
Organizações como Todos pela Educação e a Campanha Nacional pelo Direito à
Educação, que devem ter representantes na equipe de transição, defendem a
revogação. A PNA colocou como central a aplicação do método fônico para
alfabetizar crianças, modelo em que a aprendizagem começa das letras e sílabas
até chegar às palavras. Na época em que foi lançada, a política foi criticada
por gestores locais e estaduais por ter desconsiderado as iniciativas que
vinham sendo desenvolvidas por estados e municípios a respeito do tema.
Vale a pena conferir: A frente ampla diante da nação dividida
https://bit.ly/3EWSIbq
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