08 novembro 2022

Novos desafios

Eleições e democracia

O que temos como resultado das eleições é uma vantagem apertada de uma ampla coalizão política, a mais ampla formada desde o início da Nova República. Ampla e forte o suficiente para iniciar a reconstrução democrática do país
Leonardo Avritzer, Le Monde Diplomatique

 

Um sábio das redes sociais postou a seguinte frase em relação às eleições brasileiras: existem momentos em que perder eleições é parte da democracia e outros no qual, ao se perderem as eleições, perde-se a própria democracia. A frase sintetiza o que esteve em jogo no domingo, dia 30 de outubro: a democracia brasileira com as feições que ela adquiriu depois de 1988. Ou seja, uma democracia com fortes preocupações sociais com a população de baixa renda, preocupações essas que se expressaram nas políticas de transferência de renda e nos aumentos reais do salário mínimo que se iniciaram ainda no governo Fernando Henrique Cardoso e continuaram até 2016, com um sistema de divisão de poderes tendo fortes prerrogativas por parte do Supremo Tribunal Federal e, por fim, com um Ministério Público comprometido com os direitos e com a ordem democrática. Todos esses elementos estiveram em jogo na eleição do último domingo, que também colocou em jogo a própria legitimidade eleitoral. A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva foi significativa, mas é preciso reconhecer que o bolsonarismo continua forte em toda a região Sul e em parte dos estados da região Sudeste. A grande novidade em termos de região Sudeste foi a vitória do presidente Lula na cidade de São Paulo. Assim, o que temos como resultado das eleições é uma vantagem apertada de uma ampla coalizão política, a mais ampla formada desde o início da Nova República. Ampla e forte o suficiente para iniciar a reconstrução democrática do país.

Nesse sentido, a derrota de Jair Bolsonaro significa uma derrota do bolsonarismo como forma de governo, mas sua continuidade como um movimento antipolítico ainda está na agenda nacional. A antipolítica deve ser entendida como uma maneira de atacar o establishment político e, simultaneamente, desorganizar políticas públicas. Jair Bolsonaro foi eleito como representante maior da antipolítica e, enquanto tal, não só nomeou um ministério com pouquíssima representação dos partidos, até mesmo do PSL, pelo qual ele havia sido eleito, como também passou a se dedicar imediatamente a desestruturar três áreas de políticas públicas: a educação, em especial as universidades federais, o meio ambiente e os direitos humanos. Em todas essas áreas, a função de governar foi entendida como ato de desfazer políticas, desestruturar burocracias e transformar a capacidade de governar para impedir a aplicação de medidas capazes de garantir a adoção de políticas públicas. Acrescente-se a isso a consolidação da antipolítica, o questionamento das estruturas de divisão de poderes, os ataques ao STF e a implantação do orçamento secreto (que desestruturou a capacidade do governo de colocar em prática políticas públicas e a própria ideia de que uma das funções do Parlamento é apoiar ou rejeitar políticas específicas propostas pelo Poder Executivo). A derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 30 de outubro abre a oportunidade de reconstruir a política, algo que já foi realizado durante o processo eleitoral por meio da construção de uma ampla aliança em torno da candidatura do ex-presidente Lula. Ainda assim, o caminho de reconstrução será longo em razão do grande processo de erosão ocorrido nos últimos quatro anos.

Desafios do novo governo

Neste cenário, o próximo governo tem três desafios principais. Em primeiro lugar, recuperar as relações entre os poderes, esgarçadas até o limite pelo atual presidente em seus ataques ao STF. Em segundo lugar, recuperar a governabilidade na organização do Estado – a tentativa de propor imediatamente uma PEC de reconstrução nacional aponta nessa direção. Em terceiro lugar, recuperar as políticas públicas distributivas, que foram responsáveis pelo processo mais acentuado de redução da pobreza e da desigualdade que se viu no Brasil. Permitam-me elaborar cada um desses pontos.

Desenvolveu-se no Brasil, desde 1988, uma estrutura de divisão de poderes com fortes prerrogativas por parte do Poder Judiciário, em especial do STF, que adquiriu protagonismo tanto em questões penais quanto como Corte revisora. Esse protagonismo se acentuou no governo Bolsonaro, de forma que pode ser considerada indesejável, mas foi inevitável. Coube à Corte, por meio da completa cooptação da Câmara na gestão Arthur Lira, o papel de último bastião da defesa da democracia. Foi nesse papel que Alexandre de Moraes assumiu um protagonismo inédito ao retirar do ar centenas de perfis e canais do YouTube que faziam parte do que hoje denominamos “ecossistema de desinformação”. Evidentemente que o papel de último bastião da democracia, assumido tanto pelo STF como pelo TSE, foi muito importante, mas é preciso ter em conta que uma relação de complementariedade entre os poderes é necessária para a restauração da democracia e da governabilidade. Essa parece ser a primeira tarefa a que o novo governo Lula deve se dedicar.

A segunda questão fundamental é a reconstituição simultânea das prerrogativas do Congresso e da capacidade de execução orçamentária. Jair Bolsonaro formou um ministério antipolítico, com presença majoritária de militares e de membros do Poder Judiciário. Em determinado momento de seu governo, todos os ministros da casa eram militares. Bolsonaro, a princípio, não se preocupou em formar maiorias no Congresso e se tornou o presidente com o maior número de decretos derrubados pelo Congresso na história da Nova República. Mas, a partir da eleição de Arthur Lira para a presidência da Câmara, Bolsonaro mudou de postura e passou a contar com uma maioria automática e despolitizada. Foi essa maioria que deu origem ao elemento mais fortemente antirrepublicano da trajetória do Congresso Nacional, o orçamento secreto. Ele fragmenta o orçamento, rompe com o princípio da cidadania na distribuição de recursos públicos e retira o planejamento das políticas públicas da mão do Executivo, sem colocá-lo na mão de ninguém. O próximo governo tem de retomar o controle do orçamento e publicizá-lo dentro de uma lógica de retomada do controle do Executivo sobre o orçamento público. Essa constitui a única maneira de voltarmos a ter políticas públicas inclusivas. É nesse campo também que devemos entender a proposta de um orçamento participativo nacional, que poderá envolver a população na definição de prioridades orçamentárias em todas as regiões e grandes capitais.

Por fim, o novo governo precisa abraçar, da forma mais incisiva possível, novas agendas de políticas públicas: uma primeira no meio ambiente, uma agenda de combate à violência contra a mulher e uma agenda de aprofundamento da integração racial, a política que sofreu menos descontinuidade de 2016 para cá. Eu diria que essas são as agendas nas quais os governos não avançaram suficientemente na última década. Apesar de o governo Lula ter adotado uma agenda antidesmatamento, ele não foi capaz de investir, de modo determinante, na criação de atividades econômicas alternativas para a manutenção da região. O projeto antimoderno de desmatamento entusiasmou os habitantes da parte baixa da Amazônia. Investir com força em um projeto de reversão do desmatamento e das áreas de garimpo e associar esse projeto a uma nova inserção internacional do Brasil parece ser essencial para que a Amazônia não se desestruture como bioma. Ao mesmo tempo, deter o desmatamento tem de estar associado à realização de um forte plano de inversões na região que seja capaz de criar alternativas ao desmatamento para a população de baixa renda.

A segunda agenda fundamental é a do combate à violência contra a mulher. O primeiro governo Lula criou a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, que desempenhou um papel importante em chamar atenção para diversas agendas femininas. Foi também no primeiro governo Lula que se concretizou a Lei Maria da Penha. No entanto, tudo indica que as agendas femininas e feministas do governo Lula ficaram restritas às mulheres de classe média e não foram capazes de pautar as formas violentas de relação entre homens e mulheres que levam ao feminicídio e às agressões abertas de gênero. Evidentemente, essa questão precisa se adaptar à nova dinâmica da influência religiosa na política, porém existe um conjunto de agendas relevantes nesse caso, como o aprofundamento da igualdade de gênero no mercado de trabalho e uma política simbólica de maior presença das mulheres no ministério e em cargos de forte visibilidade política. Por fim, a integração racial e as ações afirmativas devem ser estendidas ao mercado de trabalho. Tanto as agendas do meio ambiente como as agendas de igualdade de gênero e raça devem ser agendas participativas. Especialmente no campo do meio ambiente, a possibilidade de organizar um green new deal brasileiro, em consonância com o que já está sendo feito nos Estados Unidos e na Europa hoje, parece constituir a maior oportunidade participativa do novo governo e ser capaz de integrar essas diversas agendas.

Em suma, esse é um governo de união nacional em torno da reconstrução da democracia. Essa reconstrução tem como primeiro ponto a reabilitação da política, que foi desvalorizada por um bolsonarismo que tentou mostrar que toda política é corrupta. Os resultados desastrosos da pandemia foram provocados por essa postura, que também impediu que Bolsonaro ampliasse seus apoios nessa eleição. A vitória do presidente Lula está diretamente relacionada à sua capacidade de forjar uma ampla coalização em torno da reconstrução da política. Foi possível perceber sinais dessa reabilitação da política ainda na noite de domingo, nos dois principais discursos da noite, o do presidente eleito e o do presidente da Câmara, Arthur Lira. Ambos sinalizaram na direção do fim da lógica amigo/inimigo e da polarização instituída pelo bolsonarismo. No entanto, o fim dessa lógica tem de passar por uma forte reabilitação do fazer política entre todos os poderes e por uma ampliação do fazer política em direção à sociabilidade. Pautas ambientais, de gênero e de raça, assim como agendas de políticas públicas, têm de passar por uma reconstrução da participação que ajude o sistema político a sinalizar para a sociedade um novo pacto nacional e internacional pela democracia.

*Leonardo Avritzer é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Observatório das Eleições. É autor, entre outros livros, de O pêndulo da democracia (Todavia, 2019).

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