Um
caso raríssimo
Jornalista
negro processa a CNN Brasil por racismo estrtutural
Armando
Antenore, revista piauí
Em junho de 2016, as seleções da Alemanha e da Polônia se enfrentaram
pela Eurocopa, o campeonato europeu de futebol masculino, no Stade de France,
perto de Paris. Foi um jogo tedioso, que terminou sem gols, mas lá fora o clima
esteve quente. Pouco antes da partida, a repórter Sonia Blota e o produtor
Fernando Henrique de Oliveira, ambos da Band TV, cobriam o vaivém de torcedores
nas imediações da estação ferroviária Gare du Nord quando cerca de cinquenta
alemães os rodearam e gritaram: Get out, you niggers! Mandaram
os dois irem embora, usando a expressão racista mais insultuosa da língua
inglesa. O líder do grupo ameaçou a dupla de brasileiros com um bastão, chutou
uma perna da jornalista e deu uma bofetada em Oliveira, que operava a câmera e
conseguiu filmar parte da investida. Os agressores seguiram adiante sem que
ninguém os importunasse.
A repórter e o
produtor denunciaram o ataque para um policial que circulava pelas redondezas.
Ele se esquivou. “Vocês me parecem bem. Não sofreram ferimentos graves. Melhor
esquecer o que aconteceu para evitar um conflito maior”, explicou, de acordo
com as vítimas. Inconformado, Oliveira prestou queixa numa delegacia.
A truculência virou
notícia dentro e fora da França. Os agredidos concederam algumas entrevistas,
inclusive para a Band. Quando soube do incidente, a Associação Brasileira de
Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) soltou uma nota. Classificou o episódio
de deplorável e criticou a inércia da polícia. Com o intuito de remediar o
estrago, o ministério francês das Relações Exteriores ofereceu um almoço de
desagravo para a jornalista e o produtor.
Embora dissessem a
palavra nigger no plural, tudo indica que os torcedores não se
referiam à repórter, neta dos apresentadores Blota Júnior e Sônia Ribeiro, duas
lendas da tevê nacional. Ela é branca de cabelos escuros e olhos castanhos.
Frequentemente, na Europa, a confundem com italiana em razão do sobrenome
calabrês. Já Oliveira é preto retinto. “A dor moral e psicológica que a
bofetada me causou supera a física”, declarou à imprensa na época.
ACNN Brasil estreou em 15 de março de 2020. Enquanto montava sua
infraestrutura, a emissora contratou Fernando Henrique de Oliveira, que acabara
de deixar o programa Conversa com Bial, na Globo, onde ocupava o
cargo de assistente de produção. Ele se formara em relações públicas havia
quase duas décadas e tinha registro de jornalista desde julho de 2018. Pelo
contrato que assinou na CNN, cuidaria da “produção de imagens e/ou reportagens
diversas para transmissões”. Poderia, ainda, se dedicar à “apuração de pautas”
e à “realização de coberturas jornalísticas”. Viveria em Nova York e
trabalharia com a correspondente Luiza Duarte.
No dia 25 de maio
de 2020, o norte-americano George Floyd Jr. – um segurança negro desempregado –
virou símbolo planetário da luta contra o racismo. Preso em Minneapolis, sob a
suspeita de usar dólares falsos para comprar cigarros, morreu sufocado pelo
policial branco Derek Chauvin, que apoiou o joelho sobre o pescoço dele durante
nove minutos. As imagens do assassinato, registradas por testemunhas, geraram
uma onda de manifestações nos Estados Unidos, no Brasil e em dezenas de outros
países.
Escalado para
cobrir as repercussões do crime como repórter, Oliveira abandonou
momentaneamente a postura distanciada e fez um relato de cunho pessoal. Gravou
o depoimento na varanda do apartamento que alugava em Manhattan. De tranças
afro, barba bem aparada e óculos, trajava roupas sóbrias: blazer cinza por cima
de uma camisa azul com listras brancas e gola padre. O Empire State aparecia à
distância. Depois de acertar o enquadramento de uma pequena câmera Sony e
ajeitar o microfone de lapela, o jornalista contou que morava no East Village,
“um bairro majoritariamente branco”, em cujos supermercados sempre tinha a
impressão de que os seguranças o vigiavam. Também recordou o ataque dos
torcedores alemães, quatro anos antes, e a indiferença da polícia francesa.
“Infelizmente, nós ainda precisamos nos preocupar com quem deveria nos proteger”,
concluiu.
Exibido pela CNN em
29 de maio, o testemunho de 1 minuto e 42 segundos ficou no site da emissora.
“O produtor Fernando Henrique relata um dos momentos mais difíceis que
enfrentou na carreira por causa do racismo”, anunciava o texto online que
introduzia o vídeo. O próprio Oliveira divulgou o depoimento pelas redes
sociais. No Instagram, redigiu: “Violência racial. Como jornalista negro, conto
minha experiência por aqui. @CNNbrasil.” Uma imagem congelada do testemunho
ilustrava o post.
Ele também publicou
no Instagram trechos da cobertura que fez para o canal entre 26 de maio e 9 de
junho de 2020, em Nova York, Minneapolis e Houston, cidade do Texas onde Floyd
Jr. foi enterrado. Por quinze dias consecutivos, a CNN mostrou boletins de
Oliveira sobre o caso, a maioria estritamente jornalísticos, sem comentários
pessoais. Em 2 de junho, porém, a apresentadora Monalisa Perrone pediu outro
depoimento de caráter particular para o colega: “Eu sei que você já sofreu
racismo. Por isso, abra o coração e conte exatamente o que você está sentindo
agora.” Ao vivo, enquanto acompanhava um protesto em Manhattan, Oliveira disse
que não integrava nenhum “movimento de lutas raciais”, mas que considerava
fundamental pleitear “igualdade e justiça”. Enfatizou que se pronunciava “em
nome de todos os negros”, como representante “de um povo, de uma nação”, e não
na condição de jornalista. Perrone agradeceu: “Obrigada pelas palavras, pela
observação, por abrir o coração! Cobertura de verdade também tem emoção. É a
emoção de quem tem o lugar de fala, né?”
No dia 10 de junho,
Oliveira entrou novamente em cena para avaliar como o mundo deveria lidar com o
racismo à luz do homicídio de Floyd Jr. Outros nove funcionários negros da CNN,
incluindo um maquiador, uma executiva e quatro repórteres, se manifestaram.
Todos fizeram reflexões genéricas, sem explicitar situações mais íntimas.
Dois meses depois,
em 21 de agosto, o canal demitiu Oliveira por divergências salariais, embora o
contrato dele só terminasse no ano seguinte. A emissora queria que o
profissional voltasse para São Paulo. Ele concordou, mas reivindicou manter o
salário de 4 mil dólares (cerca de 21 mil reais hoje) que recebia nos Estados
Unidos. A CNN não aceitou e rompeu o contrato. No dia 19 de novembro, o jornalista
entrou com uma ação contra a antiga empregadora. À primeira vista, parecia uma
briga trabalhista convencional, assentada principalmente em pendências
financeiras. Examinado de perto, o processo se revelava também outra coisa: uma
batalha contra o “racismo estrutural” – conceito típico dos nossos tempos e
cada vez mais invocado por trabalhadores negros nas relações com as empresas.
A ação judicial não
acusa nenhuma pessoa física de discriminação racial. O único alvo é a CNN. Nas
palavras dos defensores de Oliveira, o suposto comportamento racista da
emissora não se comprova “pela chancela escancarada”, mas “pelas condutas
sorrelfas”. Por isso, os advogados usam a expressão “racismo estrutural ou
institucional” para se referir às práticas da empresa. O termo designa um
conjunto de medidas corporativas, educacionais, políticas, econômicas,
jurídicas, culturais ou religiosas que favorecem determinado grupo racial e
colocam outros em desvantagem. Nem sempre são atitudes de fácil percepção e
resultam mais de uma dinâmica coletiva e histórica que do anseio deste ou
daquele indivíduo. O racismo estrutural, portanto, se confunde com a própria
ordem social.
Não à toa, o tema
está no cerne de todas as discussões contemporâneas sobre aquilo que os negros
chamam de “segunda abolição” – uma nova alforria, mais abrangente e
transformadora que a de 1888. Uma libertação que “transcenda o corpo da lei e
faça prevalecer o espírito da lei”, conforme escreveu o cantor Gilberto Gil em
maio de 2009, no jornal Le Monde Diplomatique Brasil. Uma abolição
que ouse sair “do papel” e ganhe “as consciências”.
“Disputas jurídicas como a de Oliveira, que envolvem debates identitários,
sempre nascem de um elemento subjetivo: a percepção de quem se julga ofendido.”
A frase é da advogada mineira Juliana Bracks, que leciona direito do trabalho
na PUC do Rio de Janeiro. Ela não se refere apenas às demandas acerca do
racismo, mas também àquelas que tratam de segregação por gênero, faixa etária,
orientação sexual, crença religiosa, predileção política, deficiência física e
até obesidade. Enquanto discorre sobre o assunto, Bracks acaba tocando no ponto
que liga o processo de Oliveira contra a CNN Brasil a uma questão central do
século XXI:
“Um funcionário
negro pode ver preconceito racial em circunstâncias que os brancos
qualificariam de irrelevantes ou nem sequer enxergariam. Às vezes, a
discriminação se manifesta de modo explícito e incontestável – o superior zomba
das tranças afro de um subordinado ou o xinga de macaco. Outras vezes, porém, a
intolerância lança mão de artifícios bem mais sutis. Nesses casos, o desgosto e
a revolta do profissional que se considera atacado são absolutamente legítimos.
Ou melhor: a percepção do trabalhador merece respeito, ainda que não baste em
termos judiciais.”
A professora
explica que, nos tribunais, a percepção do reclamante vale tanto quanto a do
réu. “O funcionário negro sente que sofreu uma humilhação racista. O empregador
branco sente que não humilhou ninguém. Por que a percepção de um deveria
preponderar sobre a do outro?” Daí a necessidade de provas, que podem derivar
de perícias, vídeos, áudios, mensagens de celular, documentos em papel ou
testemunhos de terceiros. A interpretação final será do juiz, o que adiciona
mais um ingrediente à equação: até que ponto a identidade do magistrado (sexo,
cor da pele, origem socioeconômica) afeta suas decisões? “Todos esperamos que
afete o mínimo possível, e que a sentença se baseie especialmente na análise
técnica das provas”, afirma Bracks.
Em 2004, uma emenda
modificou o artigo 114 da Constituição e permitiu às cortes trabalhistas julgar
processos de indenização por danos morais. Antes, só a Justiça comum mediava o
assunto. “A emenda de 2004 certamente vem estimulando o aumento de ações sobre
conflitos identitários no ambiente de trabalho. O fortalecimento das redes
sociais, que ampliou a consciência política dos grupos tradicionalmente
afrontados, também contribui para o fenômeno”, diz a professora.
Segundo a Data
Lawyer Insights, plataforma que coleta e analisa dados jurídicos, pelo menos
3,6 mil processos trabalhistas com menções a “preconceito racial”, “racismo” ou
“discriminação racial” chegaram à primeira instância da Justiça brasileira no
ano passado. É um recorde. Em 2018, houve 1,1 mil ações. Em 2019, 1,4 mil e, em
2020, 2,3 mil. O método de prospecção adotado pela Data Lawyer Insights não
permite saber o teor exato de cada processo.
Bracks salienta que
a reforma trabalhista de 2017 introduziu o princípio da sucumbência na
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Desde então, se o reclamante perder
uma ação, terá de pagar o advogado da parte contrária e as custas judiciais. O
ex-funcionário da CNN corre, assim, o risco de ficar no prejuízo caso a
emissora vença o litígio.
Em 2021, uma pesquisa telefônica com 202 jornalistas pretos e pardos de
todo o país perguntou: os negros encontram mais dificuldades que os brancos
para ascender nas redações? Noventa e oito por cento dos entrevistados
afirmaram que sim. Quando os pesquisadores questionaram se os 202 profissionais
já haviam enfrentado alguma espécie de racismo enquanto trabalhavam, 43% também
responderam que sim.
As indagações
aparecem no Perfil Racial da Imprensa Brasileira, estudo que o
informativo Jornalistas & Cia realizou
com dois parceiros – o Instituto Corda e a I’Max, agência de tecnologia e
comunicação. Metade dos entrevistados se definia como do sexo masculino, e a
outra metade, como do feminino. A maioria tinha entre 26 e 45 anos. Cerca de
60% desempenhavam funções operacionais. Eram repórteres, redatores ou
diagramadores. Os restantes estavam em cargos gerenciais (diretores, editores
ou chefes de reportagem).
Das diversas
situações racistas que os entrevistados disseram viver durante o exercício da
profissão, destacam-se:
* Ser confundidos
com o pessoal da limpeza;
* Ouvir piadas ou
recriminações sobre o cabelo;
* Enfrentar
acusações de vitimismo nos momentos em que reclamam de preconceitos;
* Sentir que os
colegas os veem com desconfiança;
* Amargar tratamento
diferenciado de policiais ou seguranças durante as coberturas;
* Sofrer agressões
verbais;
* Ganhar apelidos
pejorativos, como “neguinho” e “crioulo”;
* Ser convocados
para fazer reportagens mais negativas do que positivas em comparação com os
brancos.
Por meio de
telefonemas ou questionários online, o estudo também consultou 1 750
jornalistas de diferentes origens raciais, que atuavam em sites noticiosos,
jornais, revistas, tevê, rádio, blogs e podcasts. Depois, extrapolou a amostra
para os 61 mil profissionais do país (a estimativa é da I’Max) e chegou às
seguintes conclusões:
* Embora 56% da
população brasileira se intitule preta ou parda, as redações têm mais brancos
(77,6%). Somente 20,1% dos jornalistas declaram-se negros. Os outros são
amarelos (2,1%) e indígenas (0,2%);
* Os brancos ocupam
mais cargos de chefia, recebem salários melhores e permanecem mais tempo na
mesma empresa;
* A prevalência de
um segundo emprego é maior entre os negros;
* Na pandemia de
Covid, os brancos fizeram mais home office que os negros.
A CNN Brasil ainda
não dispõe de números precisos sobre a composição étnica de seus 730
funcionários. Até dezembro, pretende implantar um comitê de diversidade, que
promoverá um censo para garimpar tais informações.
(Na piauí,
onde trabalham 35 profissionais, a situação de desigualdade se reproduz: apenas
cinco – ou 14% – consideram-se negros. Nenhum deles exerce funções gerenciais.)
Apesar de tamanho desequilíbrio na imprensa, processos trabalhistas como
o de Oliveira são raríssimos. A Comissão Nacional de Jornalistas pela Igualdade
Racial (Conajira), fundada em 2010, desconhece ações similares. “De modo geral,
os pretos e os pardos evitam acionar a Justiça quando sofrem preconceito nas
redações. Algumas vítimas até processam colegas, mas poucas se rebelam contra
as empresas”, diz Valdice Gomes, integrante da comissão. “Os negros enfrentam
vários obstáculos para atingir um mínimo de segurança na carreira. Se conseguem
furar a bolha, acabam priorizando a empregabilidade. Temem queimar o filme no
mercado caso briguem judicialmente com os patrões.”
O cenário não é
muito distinto em outras áreas da comunicação. Recentemente, porém, a
publicitária negra Rafaela Keroty Ferraz fugiu à norma e acusou de racismo a
agência Plug. O processo tramitou na 27ª Vara do Trabalho de São Paulo. Em 25
de agosto de 2020, durante a pandemia, a agência convocou a reclamante para uma
reunião por vídeo. Uma supervisora, também negra, iniciou assim o encontro:
“Estou com vontade de ver todo mundo. […] Quero ver se [citou o nome de um
funcionário, não mencionado nos autos] cortou o cabelo e se a Rafa continua
preta.” O comentário deixou a publicitária bastante constrangida e a levou às
lágrimas. Ela fechou a câmera da plataforma digital para não chorar diante da
equipe.
No dia seguinte, a
subordinada procurou a supervisora, criticou a abordagem e ouviu um pedido de
desculpas. Assim que soube do ocorrido, o dono da agência menosprezou o
episódio. Ponderou que a supervisora não quis ofender ninguém. “Ela só fez uma
brincadeira fora de hora para descontrair a tensão da pandemia”, explicou à
publicitária, de acordo com a ação judicial. Dois meses depois, a Plug demitiu
Rafaela Ferraz sob a justificativa de que passava por solavancos financeiros. A
publicitária recorreu à Justiça – e ganhou.
Em maio de 2021, a
juíza Renata Bonfiglio proferiu uma sentença que desperta a atenção pela
clareza e veemência quando descreve como a discriminação racial pode
comprometer as relações de trabalho:
O fato de a
ofensora e a própria reclamada não enxergarem no comentário qualquer ofensa não
é suficiente para que a ofensa não tenha existido. […] A
triste realidade é que há inúmeras práticas racistas naturalizadas em
nosso cotidiano e materializadas em microagressões, que partem de comportamentos […] por
vezes inconscientes. A situação dos autos […] é apenas
mais um exemplo do que se convencionou chamar de “racismo recreativo”. […]
A verdade é que
todos nós precisamos estar atentos para não incorrer nesse padrão
comportamental tão enraizado na sociedade. […] No
ambiente de trabalho, cabe ao empregador essa fiscalização. Do contrário,
estará sendo conivente com piadas que são verdadeiras manifestações de injúria
racial, como é o caso em apreço.
Observe-se que a
forma como a ré se posiciona em sua defesa, minimizando o desconforto e
constrangimento da reclamante, já demonstra a existência de uma
microagressão. […] Segundo a reclamada, uma piada que
envolva questões raciais serve para “descontrair a tensão”, o que representa um
padrão de conduta que precisa ser revisto e combatido. […] Causa
espanto ao Juízo que, justamente numa empresa de comunicação, que se diz atenta
e preocupada com inclusão e diversidade, um fato como esse tenha sido
banalizado.
A sentença
determinava que a agência pagasse 20 mil reais à ex-funcionária por danos
morais. No dia 13 de maio de 2021, quando a abolição da escravatura completou
133 anos, as partes encerraram a pendência ao firmar um acordo que reduziu a
indenização para 18 mil reais.
Duas semanas antes de a ação de Fernando Henrique de Oliveira contra a
CNN Brasil entrar em segredo de Justiça, a piauí teve acesso à
sua íntegra. Os autos, que estão na 80ª Vara do Trabalho de São Paulo, somam
410 páginas. A maioria delas aborda questões de cunho essencialmente
trabalhista, como a reversão da demissão ou a remuneração em dobro do
jornalista pelos dezessete meses que faltavam para o término do contrato. Num
conjunto menor de páginas, entretanto, Oliveira acusa a emissora de lesá-lo com
uma série de gestos racistas, ferindo o artigo 5º da Constituição, que
considera o racismo um crime inafiançável e imprescritível. Pelo delito, o
profissional reivindica indenização por danos morais.
Uma das
discriminações raciais que o jornalista atribui à emissora é justamente a de
requerer os testemunhos pessoais sobre os preconceitos que ele já sofreu, como
a agressão durante a Eurocopa. Conforme Oliveira alega no processo, o canal o
obrigou a fazer os relatos de acordo com um “roteiro repassado pela chefia”.
Para provar, os dois advogados do ex-funcionário – Carlos Daniel Gomes Toni e
Kiyomori André Galvão Mori – apresentam trocas de mensagens entre o jornalista
e Adriana Mabilia, uma das editoras que cuidavam do caso George Floyd Jr. Ela
trabalhava na sede da CNN, em São Paulo.
– Fê, hoje […] você
poderia entrar pra dar a tua percepção de tudo – escreveu Mabilia no WhatsApp.
– Claro, Dri.
Fechado! – concordou Oliveira.
– Olha só. Editor
me passou aqui. Vou te passar algumas orientações, tá? – prosseguiu Mabilia. –
O vídeo precisa conter de 1 min a 1 min 30. É um depoimento, em que as pessoas
respondam… Quem é você? Já foi vítima de preconceito? Qual mais te marcou?
A profissional
referia-se à gravação de Oliveira na varanda de seu apartamento em Nova York.
Por áudio, a editora complementou:
– Vamos fazer uma
coisa bacana? […] Um depoimento… Questões históricas… Você trazer coisas da tua
vida. Vamos pensar nisso? Mas é urgentão!
Nas redações, os
editores costumam orientar os subordinados sobre o ângulo e a duração de um
testemunho ou uma reportagem, tanto que Oliveira não se constrangeu ao receber
as diretrizes e concordou em segui-las. Mais tarde, porém, o jornalista
percebeu que o pedido de um depoimento daquele tipo, a respeito de uma
experiência tão particular e dolorosa, configurava racismo. Fenômeno parecido
ocorre com inúmeras vítimas de assédio sexual, que só se dão conta do ataque
tempos depois de o sofrerem. Para Oliveira, a CNN lhe destinar uma tarefa como
aquela é tão invasivo quanto solicitar a um repórter judeu que, durante a
cobertura de uma passeata contra os neonazistas, evoque as perseguições
antissemitas que já enfrentou.
No processo, o
ex-funcionário acrescenta que a emissora o menosprezou com pelo menos outras
três práticas racistas:
* Todos os
jornalistas negros da redação ganhavam salários menores que os dos brancos
quando exerciam funções iguais às deles. Oliveira diz que as provas das
diferenças salariais estão “em poder da ré”, ou seja, da CNN. Como também fazia
reportagens, extrapolando as atividades habituais de produtor, ele pede
equiparação salarial retroativa com o cargo de repórter.
* O canal queria
que Oliveira fosse segurança de Luiza Duarte enquanto a correspondente
apresentasse boletins noturnos na rua. Os autos trazem mensagens que a chefia
endereçou para o jornalista em 27 de julho de 2020, uma segunda-feira. O
primeiro e-mail indagava se Oliveira poderia “acompanhar a Luiza nos
deslocamentos à noite” durante a semana. Ele respondeu que não. Informou que
tinha aulas às terças, quartas e quintas. Não entrou em detalhes, mas reservara
os horários para um curso online de reeducação corporal e reuniões virtuais
sobre um doutorado que planejava fazer. A chefia desaprovou a justificativa.
Reclamou que os compromissos atrapalhavam o fluxo da redação e lembrou que um
sem-teto perseguira Duarte numa cobertura recente. Contou, ainda, que a
repórter amargara “diversas outras situações incompatíveis”. Por fim,
sublinhou: “É inviável a Luiza trabalhar à noite, sem produtor.” Oliveira bateu
o pé e não acompanhou a correspondente, que realizou os boletins sozinha.
* Depois de
demiti-lo, a empresa tratou o jornalista como carregador. Pediu que ele levasse
para São Paulo todos os equipamentos de Nova York, inclusive os usados por
Duarte (nessa altura, a repórter havia deixado a emissora para tocar projetos
pessoais). Eram 38 itens, entre microfones, cabos, baterias, refletores e um
iPhone 11. O material, que não estava no seguro, ocupou quatro malas. Já os
pertences do ex-funcionário, apenas uma. Assim, em 30 de agosto de 2020, nove
dias após a demissão, Oliveira voou para a capital paulista com cinco malas. O
canal pagou pelo excesso de bagagem.
Caberá à Justiça
decidir se as denúncias do jornalista constituem racismo ou não. Sob a ótica de
Oliveira, no entanto, está claro que a CNN não só adota regras e princípios que
reproduzem a desigualdade racial em vigor no país como os naturaliza,
tornando-os quase ocultos. “O racismo institucional da ré […], por óbvio, não
se comprova pela chancela escancarada […], mas pelas condutas sorrelfas que se
seguiram durante toda a relação de trabalho”, escrevem os advogados no
processo.
Embora não usem a
expressão “tokenismo” (estratégia de quem deseja parecer mais inclusivo do que
realmente é), os defensores de Oliveira fazem uma alusão à tática: “Assim como
William Waack disse ‘até tenho amigos negros’, a emissora até passou
a admitir jornalistas negros, após contratar aquele que fora demitido […] da
Globo, [depois de ser] flagrado pelas câmeras em suposto ‘gracejo’ de
dar inveja aos segregacionistas do apartheid sul-africano.”
O trecho joga luz
sobre um episódio ocorrido durante as eleições presidenciais norte-americanas
de 2016. Na ocasião, Waack ancorava o Jornal da Globo e
acompanhava a apuração dos votos. Ele se preparava para entrar no ar em
Washington, com o comentarista Paulo Sotero, quando um carro buzinou
insistentemente nas imediações do estúdio. “Tá buzinando por que, ô seu merda
do cacete?”, resmungou Waack. “Não vou nem falar […] É coisa de preto. Com certeza.”
Na sede paulistana do canal, um operador de vídeo, negro, teve acesso às
imagens do destempero e as gravou pelo celular. Um ano depois, o caso se tornou
público, e a Globo demitiu Waack, que se desculpou por fazer “uma piada
idiota”. Em junho de 2019, a CNN o contratou.
O âncora integrou a
equipe da emissora que cobriu o assassinato de George Floyd Jr. Pelas redes
sociais, não faltaram queixas. “Porra @CNNBrasil, vocês só podem tá de
sacanagem. Tão fazendo isso pra irritar a gente, né?! william waack, repito,
william waack comentando racismo? Aaah, mano…”, tuitou um jovem negro.
Convidada do programa CNN 360º, a jornalista Alexandra Loras,
também negra, mexeu no vespeiro, ao vivo, em junho de 2020. Ela repudiou o
protagonismo de Waack e frisou que a mídia detinha “o poder” de chamar
acadêmicos pretos ou pardos para discutir o homicídio de Floyd Jr. “Não é
apenas com gotinhas de cotas nas universidades que vamos resolver a questão
racial no país”, afirmou. O canal não se pronunciou.
No dia 15 de abril
de 2021, acusações de racismo assombraram novamente a CNN. Reportagem publicada
pela agência de notícias Alma Preta contou que a analista de
política Basília Rodrigues sofria perseguições dentro da emissora. A Folha
de S.Paulo reiterou as denúncias. Segundo as apurações, funcionários
do canal tratavam a jornalista negra com desrespeito. Reclamavam do cabelo
“desgrenhado” e das “olheiras” dela ou criticavam os cenários que Rodrigues
escolhia para entrar no ar quando estava em home office. Editores
de imagem evitavam mostrar o rosto da analista. Preferiam substituí-lo por
cenas ilustrativas enquanto transmitiam somente a voz de Rodrigues. Nem a Alma
Preta nem a Folha identificaram os profissionais que
fizeram as denúncias.
Logo que as
reportagens saíram, a CNN classificou os relatos de gravíssimos e anunciou que
iria investigá-los. De antemão, esclareceu que considerava o cabelo afro “um
símbolo importante de resistência e empoderamento”, que eventuais ajustes nos
cenários seguiam critérios técnicos e que “nunca houve qualquer orientação”
para ocultar o rosto da jornalista. Pelo Twitter, Rodrigues limitou-se a
agradecer o apoio da empresa e as mensagens solidárias de amigos, colegas e
desconhecidos. Em agosto de 2021, a emissora divulgou que as investigações não detectaram
racismo. Concluíram apenas que alguns funcionários tinham agido de modo
inadequado. O canal não informou se os puniu.
Entre as acusações
de Oliveira que extrapolam a seara racial, constam delitos trabalhistas
relativamente comuns nas redações do país. Ele afirma que a CNN exigiu
contratá-lo como pessoa jurídica, e não física, para pagar encargos menores.
Também diz que a emissora lhe deve horas extras e adicionais noturnos. Se levar
tudo o que pede, o jornalista receberá cerca de 700 mil reais. Desse total, 50
mil reais equivalem à reparação pelos atos racistas.
Como o processo
está sob segredo de Justiça desde março de 2021, nem o canal nem Oliveira nem
os advogados das partes podem falar sobre a causa fora dos tribunais. Só os
envolvidos têm o direito de assistir às audiências.
Adefesa da CNN Brasil, assinada pelo advogado Marcelo Costa Mascaro
Nascimento, ocupa oitenta páginas do processo. Apenas nove delas se debruçam
sobre as supostas condutas racistas. A emissora nega “veementemente” todas as
acusações. Diz que o ex-funcionário age de maneira “leviana” por mencionar
fatos inexistentes. Para o canal, Oliveira cai em contradição quando tacha de
discriminatórios os testemunhos pessoais que deu enquanto cobria o caso Floyd
Jr. Se a CNN realmente cometesse racismo, jamais permitiria que o jornalista
expusesse no ar os preconceitos que enfrentou, sustenta a defesa. Tampouco
deixaria que outros profissionais negros se pronunciassem durante a mesma
cobertura, conforme ocorreu em 10 de junho de 2020. “A empresa-ré adota
comportamento totalmente diverso daquele relatado [pelo ex-funcionário].
Observa-se claramente […] que a reclamada abriu espaço para seus colaboradores
externarem sua opinião, como forma de reforçar a importância de assegurar o
respeito ao ser humano, independentemente da cor da pele”, ressalta Mascaro
Nascimento no processo.
Ainda de acordo com
o advogado, ninguém exigiu que Oliveira testemunhasse nem que o depoimento dele
seguisse um “roteiro repassado pela chefia”. A mensagem de WhatsApp que o
jornalista recebeu de Adriana Mabilia, a editora em São Paulo, seria mais “uma
indagação” do que “uma imposição”: “Fê, hoje […] você poderia entrar pra dar a
tua percepção de tudo.” A CNN argumenta que havia a possibilidade de Oliveira
recusar o pedido, mas ele “não o fez”. Pelo contrário: preferiu concordar
“expressamente” em se manifestar (“Claro, Dri. Fechado!”).
Quanto à denúncia
de que todos os jornalistas negros da redação ganhavam menos que os pares
brancos, a emissora diz se tratar de uma afirmação “infundada”. Por isso, não lhe
caberia abrir a folha de pagamento para a Justiça. “A atribuição de demonstrar
a existência de fatos que não existiram […] fere o princípio da razoabilidade”,
contrapõe a defesa. O canal também classifica de “impertinente” a reclamação de
que Oliveira deveria ganhar salário de repórter.
A CNN contesta,
ainda, que pretendeu converter o antigo funcionário em segurança de Luiza
Duarte. Quando o convocou para acompanhá-la na rua, a emissora queria somente
garantir “o suporte de produção” necessário às imagens que integrariam os
boletins noturnos da correspondente. Oliveira cuidaria, por exemplo, “das
questões técnicas de luz”.
O canal anexou à
ação um e-mail que Mabilia enviou em 13 de julho de 2020. A mensagem elogiava
uma matéria de Duarte e Oliveira sobre a ressurreição dos cinemas drive-in nos
Estados Unidos durante a pandemia. “Fê e Lu, o VT [jargão para reportagem]
ficou ótimo. Vocês viram? Imagens lindas… UAU! Parabéns. Valeu o esforço…
Muito!”, escreveu a editora. Conforme a defesa, o e-mail mostra que a CNN
“sempre primou pelo tratamento respeitoso e pelo reconhecimento da qualidade da
prestação de serviço, situação longe de se caracterizar como […] racismo
estrutural”.
“Por amor ao
debate”, Mascaro Nascimento também coloca em xeque as críticas que os advogados
do jornalista fizeram à contratação de William Waack. Recriminar a ida dele
para o canal revelaria tanto uma “evidente posição discriminatória” de Oliveira
quanto o desejo de condenar perpetuamente o apresentador, tirando-lhe o direito
de continuar na profissão depois de sair da Globo.
Como baseia as
acusações de racismo em “alegação desprovida de veracidade”, prossegue a
defesa, o ex-funcionário estaria praticando “litigância de má-fé”. Ou melhor:
estaria corrompendo a “lealdade processual” e tentando induzir “o Juízo a
erro”. A estratégia, se comprovada, é passível de multa.
A própria CNN pediu
o segredo de Justiça. “Os fatos alegados […], muito embora improcedentes […],
têm potencial para macular a reputação de um dos canais mais influentes do
mundo”, afirma Mascaro Nascimento nos autos. “Ademais, [fatos dessa natureza
acabam] se transformando em notícia, que é levada ao conhecimento de
colunistas de televisão para ser publicada.” No dia 9 de março de 2021, o juiz
Gabriel Garcez Vasconcelos acatou a reivindicação e decretou o segredo.
Um mês depois, a
CNN nomeou Renata Afonso como presidente. A executiva – branca – substituiu
Douglas Tavolaro, fundador e sócio minoritário da emissora, que vendeu suas
ações para o banqueiro e empreiteiro Rubens Menin, agora o único controlador do
canal. Egressa de uma afiliada da Globo em São Paulo, Afonso é casada com outra
mulher. Ela mesma deu a informação durante as primeiras reuniões de que
participou na CNN. Também disse à nova equipe que abomina qualquer preconceito
e que cresceu sob os cuidados de parentes negros. “Quero fazer uma gestão
transparente. Por isso, não poderia esconder quem sou e quais as minhas
convicções”, explicou para o site Notícias da TV.
Desde que tomou
posse, a presidente busca estimular as discussões sobre diversidade e inclusão
dentro e fora da empresa. Não à toa, em outubro de 2021, a emissora lançou
o CNN no Plural. O projeto – idealizado pela gerente de
conteúdo Letícia Vidica, uma jornalista preta – dissemina por todas as
plataformas do canal reportagens que tratam de assuntos caros às chamadas
minorias, como o etarismo, a identidade de gênero, a transfobia, a Lei de Cotas
e a luta contra a Aids. O podcast Entre Vozes aborda temas
semelhantes e se encaminha para a terceira temporada. A âncora Luciana Barreto
o apresenta. Ela, que também comanda o programa Visão CNN, figurou
na lista dos duzentos afrodescendentes mais relevantes do planeta em 2021. O
levantamento anual conta com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU).
No último 20 de
novembro, Dia da Consciência Negra, outro âncora preto, Jairo Nascimento, pediu
licença para ler um “manifesto pessoal” durante o CNN Sábado Manhã:
Há quem diga que o
racismo é mi-mi-mi, frescura, exagero e que, no fundo, a escravidão foi boa. O
absurdo dessas ideias escancara o perfil de uma pessoa: o racista. No geral,
ele estuda pouco e desconhece o passado do país, mas se vangloria desse
desconhecimento convicto. Ele se acha uma boa pessoa, tem até um amigo negro
para chamar de seu e que cai muito bem como um tipo de estepe se rolar um
processo ou uma acusação de racismo. A empregada negra é quase da família,
enquanto o cachorro, esse sim, esse é da família. O racista nunca é racista.
Ele sempre é vítima do racismo que chama de reverso, de um mal-entendido, ou
diz que estava apenas emitindo uma opinião. O racista precisa cair na real. As
bases da escravidão são o sequestro, os assassinatos, a tortura, os estupros, a
destruição cultural, os trabalhos forçados, a separação de famílias e etnias,
além do roubo de propriedade, identidade e humanidade. Só por aqui isso
aconteceu ao longo de quase quatrocentos anos. O resultado está na negação de
direitos à maioria dos brasileiros pretos e pardos, que têm apenas acesso aos
piores índices sociais. O Brasil precisa tratar o racista por aquilo que ele é,
um criminoso. […] Eu quero dar um conselho a você, racista: assuma o seu crime,
repense o seu preconceito e modernize as suas ideias. Entenda que você não é
dono do meu passado […], nem das minhas vontades, nem dos meus pensamentos. Não
lhe cabe determinar o que eu quero ou dar tamanho à minha dor. Economize seus
adjetivos. Você, racista, é ultrapassado. A cada dia, com o despertar dos
negros, você terá que […] aguentar a nossa pele, os nossos cabelos, a nossa
teimosia em forma de resistência, a nossa história, a nossa inteligência e,
claro, os nossos batuques.
Mesmo que involuntariamente, Hebe Camargo e Fausto Silva, o Faustão,
contribuíram para que Fernando Henrique de Oliveira se encantasse pelas
comunicações. Ele pegou no batente muito cedo, aos 13 anos. Não precisava
trabalhar, mas já queria ganhar o próprio dinheiro. Ia para a escola de manhã
e, à tarde, era balconista no boteco dos avós maternos. Com o salário, comprava
roupas moderninhas, cadernos de capa dura ou lapiseiras prateadas. De quebra, a
grana o deixava um pouco mais independente do pai, funcionário administrativo
da prefeitura paulistana que criava os filhos sem nenhum tato – gritava, batia,
ameaçava.
Na periferia de São
Paulo, onde nasceu e se educou, Oliveira levava uma vida de classe média baixa.
A casa térrea em que morava tinha 60 m², se tanto. Ele dividia o quarto com os
dois irmãos e estudava numa escola pública. A mãe se dedicava às tarefas
domésticas. Caso sobrasse tempo, descolava uns trocados como manicure. Nas
férias, a família passava alguns dias em Praia Grande, balneário popular da
Baixada Santista.
Perto dos 15 anos,
Oliveira arranjou uma ocupação melhor, graças à indicação de um vizinho.
Tornou-se office boy numa agência especializada em clippings,
relatórios que reúnem informações divulgadas pela mídia sobre determinadas
marcas ou personalidades. Entre os clientes da empresa, estavam Hebe e Faustão.
De vez em quando, o garoto entregava clippings no endereço
deles. Embora nunca conseguisse vê-los, se sentia o máximo por atender duas
estrelas da tevê. A incumbência lhe parecia mais fascinante e promissora do que
servir os fregueses dos avós.
O adolescente
também deixava relatórios numa assessoria de imprensa muito requisitada por
galerias e centros culturais. De tanto ir lá, conquistou a simpatia dos
funcionários e recebeu um convite para trocar de emprego. Aceitou sem hesitar.
Na ocasião, planejava estudar artes plásticas por influência de um tio, que
fazia luminárias decorativas e pintava quadros. Como office boy da assessoria,
Oliveira ganharia mais e ainda poderia se aproximar de artistas, marchands e
curadores.
Foi assim que, com
quase 16 anos, pisou num vernissage pela primeira vez. Ficou boquiaberto: o
champanhe e as telas o deslumbraram. Ele logo se transformou num habitué de
exposições e leitor voraz de críticas. Descobriu as vanguardas modernistas, a
pop art, o abstracionismo e as performances. Por tabela, constatou que os
brancos imperavam naqueles ambientes. Raríssimos negros visitavam as mostras.
Oliveira já tinha certa noção do racismo, mas agora o problema se desnudava com
nitidez. A maioria dos negros que circulava pelos eventos usava uniforme de
segurança, garçom ou copeiro.
O desejo de cursar
artes plásticas acabou descartado em nome da prudência. Quando terminou o
ensino médio, o jovem decidiu seguir a carreira de relações públicas, que considerava
menos instável. Foi aprovado no vestibular da UniSant’Anna, uma instituição
privada. De início, julgou que conseguiria arcar sozinho com a nova despesa.
Enganou-se: o salário de office boy mal dava para a alimentação no campus. À
época, os pais de Oliveira já não viviam juntos. A separação do casal
desequilibrou o orçamento doméstico. Pedir ajuda à família não estava mais no
horizonte. Ele buscou, então, um financiamento do governo federal. Assim,
durante a maior parte da graduação, pagou apenas 30% da mensalidade. Só
liquidou o resto depois da formatura.
Antes de chegar à
UniSant’Anna, estudou numa única escola. Não figurava entre os primeiros da
turma, mas nunca repetiu de ano. Expansivo e aguerrido, se elegeu presidente do
grêmio quatro vezes. Brigou para que o colégio fornecesse merenda de qualidade,
organizasse passeios culturais, aprimorasse a limpeza das salas e não atrasasse
a entrega gratuita de cadernos. Nos tempos de faculdade, porém, o rapaz se
distanciou das lutas estudantis. Também evitou militar em partidos políticos ou
engrossar movimentos identitários. Preocupava-se mais com as aulas e o
trabalho. Mesmo assim, se proclamava um “preto de esquerda”.
A mãe de Oliveira
não pulou de alegria quando o primogênito entrou na universidade. “Abra o olho,
menino! Não imagine que mudou de cor só porque anda no meio dos ricos”,
advertia. “Curso superior é papo de branco. Você vai torrar uma fortuna com a
faculdade e, depois, não vai encontrar nenhum emprego que compense o
investimento.” A orientação sexual do jovem – gay assumido desde a adolescência
– causava atritos adicionais. A mãe rejeitava os gestos delicados, a voz fina e
os trajes exuberantes do filho.
Não por acaso, às
vésperas dos 19 anos, Oliveira saiu da casa materna para dividir uma quitinete
com um professor da UniSant’Anna, também negro e gay. Em poucas semanas, o
rapaz já enxergava o parceiro de apartamento como um híbrido de pai, irmão mais
velho e mentor intelectual. O professor, que ensinava língua portuguesa, tinha
centenas de livros. “Não leia apenas os textos da faculdade. Explore a minha
biblioteca”, sugeria para o jovem, que acatava todas as recomendações de
leitura. Certo dia, o professor lhe perguntou: “Que tal estudar fora do
Brasil?” O universitário jamais aventara a hipótese. “Por que não? Quem sabe a
França…”, insistiu o professor. “Se você realmente quiser, vai rolar.” O
incentivo surtiu efeito.
Contrariando os
receios da mãe, Oliveira arrumou bons empregos nos primeiros anos de formado,
conseguiu poupar um dinheirinho e levou adiante o conselho de ir para a França.
Desembarcou por lá no segundo semestre de 2007. Seis meses antes da viagem,
teve aulas básicas de francês. Em Paris, continuou o aprendizado na Sorbonne,
que oferecia cursos para estrangeiros. Tão logo se tornou fluente, tratou de
alçar voos maiores. Ainda na Sorbonne, concluiu uma licenciatura e dois
mestrados, sempre em arte e cultura. Sustentava-se principalmente com bolsas e
outros tipos de apoio governamental. Se necessário, fazia bicos em restaurantes
e bares. Não raro, cuidava de crianças.
Em 2011, o
jornalismo da Band precisou de um produtor e cinegrafista na França. Era uma
vaga temporária. Como sabia operar câmeras, Oliveira se candidatou. Deu conta
do recado, e a emissora o convocou mais vezes. Com o tempo, ele se firmou no
ofício, que exercia em paralelo às obrigações acadêmicas. Quando não prestava
serviços para a Band, auxiliava o SBT, a Rede TV!, a France Télévisions e o
canal russo RT.
No início de 2018,
recebeu uma proposta da Globo. O programa Conversa com Bial queria
incorporá-lo à equipe de produção, que ficava em São Paulo. Oliveira aceitou a
oferta, mesmo sem curtir muito a ideia de deixar Paris. Aproveitou o retorno à
cidade natal para obter o registro de jornalista no Ministério do Trabalho. Em
dezembro de 2019, trocou a Globo pela CNN Brasil e São Paulo por Nova York.
Hoje, com 39 anos, está de volta à capital francesa. Solteiro, não tem filhos,
segue ganhando a vida como produtor e faz doutorado em economia da cultura.
Entre março e outubro
de 2020, enquanto morava nos Estados Unidos, foi colunista da Gama,
revista eletrônica do grupo Nexo. Escrevia sobre arte e questões raciais. Num
dos artigos, relembrou o momento em que tirou o passaporte pela primeira vez,
já com a intenção de viajar para a França. “Um sufoco. […] Todo mundo me achou
maluco. Ir à polícia sem ser detido era algo novo no meu pedaço.” Ele contou
que, quando começou a viver em Paris, finalmente se sentiu tratado de maneira
respeitosa. “Me chamavam de monsieur DE OLIVEIRA (com um leve
acento no A, bem francês).” Sempre que visitava o Brasil, se entristecia “por
deixar para trás o respeito e o vocativo de senhor”.
Em outro artigo,
abordou a cobertura do assassinato de George Floyd Jr.: Caminhar pelas
ruas de Houston, no Texas, faz de mim um homem dividido: aquele que narra e
aquele que está prestes a inventar suas próprias leis. […] As
horas passam, e as reflexões não param. Minha conclusão é que Floyd cometeu,
sim, um crime: nasceu preto. Minha entranha está dilacerada. Eu também sou um
criminoso […]: nasci preto. […] Dizer que a vida
dos negros importa é essencial, mas dizer isso para nós, sinceramente, não muda
nada. […] O que Floyd, eu e tantos outros temos em comum é que
somos fruto da desigualdade social. Não somos e não seremos iguais enquanto eu
tiver três vezes mais chance de ser assassinado pela polícia do que você.
Num terceiro
artigo, Oliveira discorreu sobre o Dia da Consciência Negra:
Se não bastasse lidar com todas as frustrações, lido com o que dita a
moda. […] Por conta da cor, pelo famoso lugar de fala e talvez
por minha formação acadêmica, às vezes sou sondado para o dia de “preto
brilhar” […]. Dos oito convites que me foram feitos – entre
eles, escrever um texto, dar uma palestra e fazer um filme para a internet –
nenhum foi remunerado. Nenhum. Minha leitura? “Aproveite o momento para
levantar a bandeira da sua gente. Não precisamos te pagar para isso; na
verdade, é uma oportunidade.” Além de ser frustrante, é a morte do bom senso.
Mudar pressupõe repensar a economia e a distribuição de renda.
Quando vivia em
Nova York, o jornalista também conversou a respeito de Floyd Jr. com o
publicitário Bruno Infanger, que mantém o canal Alto Papo no
YouTube. A entrevista durou 28 minutos. Logo no início, Infanger perguntou se
falar de racismo incomodava Oliveira. O entrevistado respondeu que considera
necessário discutir o assunto, embora não goste de recordar “o que já
aconteceu” com ele próprio ou “algum amigo, primo, parente”. E explicou: “Na
verdade, lembrar é sempre muito doloroso”.
Leia também: Suplantar a cultura do ódio é uma luta de longo curso https://bit.ly/3Us8tfj
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