O “apagão de consciência” – e como revertê-lo
Fascismo
à brasileira se reconstruiu pelas redes sociais. Mentiras e virulência
desenfreadas geraram uma “realidade paralela”, que pode sobreviver a Bolsonaro.
Como, então, reconquistar a confiança popular em torno de lógicas solidárias?
Julice Salvagni,
Marília Veríssimo Veronese e Gustavo Moura de Oliveira, Outras
palavras
Os
resultados das urnas do primeiro turno das eleições presidenciais deste ano
surpreenderam negativamente: como é possível que mais de 51 milhões de
eleitores confiem seu apoio a Jair Bolsonaro? Dentre as diferentes formas
possíveis para se examinar esse fenômeno, a compreensão do papel da comunicação
parece assumir certa centralidade. Em tempo de redes sociais digitais, a
ascensão do fascismo dá-se por uma construção ideológica, afetiva e de geração
de confiança entre supostos “pares”, alheia a qualquer dimensão factual,
assumindo um alcance e uma proporção jamais vistas no período republicano
brasileiro. Seria o primado da “pós-verdade”, na qual o conceito mesmo de
verdade factual ou amplamente aceita numa comunidade epistêmica já não é mais
baliza para orientar as crenças das pessoas.
Na disputa ao
pleito em 2018, ainda havia apostas, ainda que vagas, de que um inepto
deputado outsider, que dizia ser necessário “mudar isso daí”
para quase tudo, pudesse efetivamente mudar alguma coisa, especialmente
impulsionando a economia. Naquele contexto, já não se podia negar adesão de
parcela da população a um discurso neofascista, mas um governo comandado por
Bolsonaro ainda estava no plano das ideias, e os alertas feitos pela esquerda
eram tomados como exagero. Contudo, nesses últimos quatro anos, vieram à tona
muitos escândalos de corrupção (esquema de “rachadinhas” ou peculato, compras
de imóveis com dinheiro em espécie, tentativa de receber propina para aquisição
de vacinas, barras de ouro para pastores amigos no MEC, ligação obscura da
família com milicianos criminosos, compra de votos com o “orçamento secreto” e
muitos outros). Diante desses escândalos, solenemente ignorados por muitos, o
que se viu foi um governo que tentou impedir as investigações, cooptou ou
afastou pessoas consideradas centrais na Polícia Federal e atacou continuamente
as instituições, sobretudo o STF.
No meio de tudo
isso, surge a pandemia de covid-19. Não foi por acaso que Bolsonaro terminaria
enquadrado pela “CPI da Covid”, sendo acusado por nove crimes. Bolsonaro disse
que era só uma gripezinha, minimizando o risco real do vírus. Atuou como
propagandista do ineficaz e não recomendado “Kit Covid”. Disse que a vacina não
funcionava ou que deveria ser uma “escolha pessoal”. De forma profundamente
irresponsável, insinuou que a vacina poderia causar HIV e fez piada sobre
“virar jacaré”. Fez tudo que pôde para não adquirir as doses necessárias para
vacinação em massa, até que, pressionado, acatou a compra desde que um dólar
por vacina fosse para o bolso de seus apaniguados. De modo repugnante e vil,
imitou pessoas com falta de ar, com ar de deboche. Confrontado com as mortes,
respondeu “e daí?! Eu não sou coveiro!”, diante de um Brasil destroçado pelo vírus
e pelo luto. Incentivou a população a se aglomerar, a não usar máscaras e,
inacreditavelmente, a invadir hospitais. O resultado disso tudo: mais de 680
mil vidas perdidas no país!
O Brasil está
seguindo uma tendência de avanço da extrema direita mundial, da qual o
trumpismo nos EUA é a maior expressão, mas que também inclui países como
Hungria, Turquia, França, Espanha, Itália, Filipinas entre outros. No Brasil,
considerando suas particularidades frente aos demais casos, o que está
acontecendo parece mesmo uma alucinação coletiva delirante, muito além das
expressões econômicas e culturais de um nacionalismo racista, classista e
xenofóbico. O óbvio é ignorado e mentiras absurdas são tomadas como realidade
por partidários do atual governo, bem como distorções inaceitáveis são tomadas
como naturais em relação aos governos anteriores (como os de Lula e Dilma).
Muitas vezes, nem é preciso ir ao subsolo da desinformação via WhatsApp ou
outras redes digitais da deep web, porque em rádios locais,
locutores e “comentaristas” reacionários seguem afirmado que “o PT quebrou o
Brasil”, e minimizando ou ignorando as atrocidades cometidas por Bolsonaro e
seus ministros, legitimando, de certa forma, um discurso falacioso.
O avançar dessa
construção, infelizmente, tem projetado um contexto gravíssimo. Não há na
história brasileira qualquer relato histórico de um político simulando, em tom
de deboche, a morte de uma pessoa por falta de ar. Para além dessa demonstração
individual de perversidade, nunca se imaginou que tal fato pudesse passar
despercebido pela população, que dirá ser aceito e aclamado, como de fato foi,
pelo eleitorado bolsonarista. Será essa a instauração de uma sociedade marcada
por uma sociopatia coletiva? Vladimir Safatle nos lembra que a ideologia
fascista esteve presente no Brasil, historicamente, manifestando-se sob a forma
de integralismo (movimento liderado por Plínio Salgado) e de práticas de
eugenia, e volta e meia ressurge na arena pública. A última vez tinha sido
durante a ditadura militar (1964-1985). A Nova República (1985-2016) havia nos
dado a impressão de que os ímpetos fascistas tinham sido enterrados de vez, mas
os últimos seis anos mostraram que não.
Contudo, mesmo em
tempos da ditadura militar, os crimes bárbaros protagonizados por uma parcela
do Exército – permitida, em boa medida, pelos interesses do mercado – não
contavam explicitamente com o apoio de pelo menos metade do país. As condições
eram outras, a comunicação social muito mais limitada e vigiada pela censura, e
por se tratar de um regime de exceção, pode-se pensar que a sociedade, de modo
geral, não estava apoiando e legitimando a barbárie. Bolsonaro, justamente,
está entre as raras pessoas que vieram a público para defender a ditadura e
exaltar torturadores. O fato de ter saído ileso de tantos pronunciamentos
criminosos talvez ajude a entender em perspectiva a produção desse preocupante
cenário, ao mesmo tempo em que denuncia a fragilidade do sistema democrático
brasileiro e suas instituições.
Pelo menos no senso
comum, a população brasileira já foi tida como festiva, alegre e acolhedora.
Hoje se sabe que essa falsa identidade social apenas camuflava uma discrepante
luta de classes, bastante violenta. Na década de 1960, João Ubaldo Ribeiro já
falava em uma sociedade brasileira marcada pela disparidade entre uma minoria
que detém os meios de produção e a outra, ainda que majoritária, que é dominada
por ela. Mais recentemente, Marilena Chauí fez referência à classe média
brasileira, que abrigaria uma parcela de gente de inclinação fascista, violenta
e ignorante. Jessé de Souza, ao analisar a era petista, destaca a
inconformidade da elite nacional frente as tênues conquistas da classe
trabalhadora.
Ainda que as marcas
estruturais e históricas da escravatura tenham sido retratadas, especialmente
por expoentes do pensamento crítico brasileiro, como por Gilberto Freyre,
claramente essa herança escravista não foi socialmente superada. Seja por uma
inclinação positivista da educação brasileira (intensificada na reforma levada
a cabo durante a ditadura), seja pela própria limitação do alcance do ensino no
país, tem-se aqui um terreno fértil para a distorção, a mentira e, claro, o
controle ideológico de contingentes populacionais significativos. Fazendo
referência a um termo arendtiano, basta adicionar a esse caldo um alvo, para
que o truque demagógico do controle das massas esteja posto.
Hannah Arendt,
filósofa alemã, trabalhou com os conceitos de “banalidade do mal” e “mal
radical”. Interpretou a adesão de “gente normal” às práticas nazistas do III
Reich como a banalização do mal pelas “pessoas de bem”, e
arriscamos dizer que fenômeno semelhante está acontecendo hoje no Brasil. A
autora pensava nos “que se ajustaram prontamente à nova ordem, dos intelectuais
oportunistas aos oportunistas de toda sorte; os que protagonizaram a concepção
do regime, desde pequeno-burgueses a sádicos pervertidos; os aventureiros pais
de família da crise do entreguerras, dispostos a sacrificar toda sua dignidade
pessoal à segurança dos seus; aqueles que se alinharam ao regime apenas por não
parecerem possuir uma resposta plausível à pergunta ‘por que não?’” (Correia,
2013, p. 64).
Alberto Guerreiro
Ramos, cientista social brasileiro bastante lido no campo da administração pela
sua análise das organizações, em A Nova ciência das organizações: uma
reconceituação da riqueza das nações, obra lançada em 1981, fazia
referência a uma sociedade centrada no mercado que se alicerça em uma retórica
de persuasão, cujo imperativo é subsidiar a disciplina dominante. Essa
linguagem distorcida, que o autor chama de “política cognitiva”, é fraudada nos
termos adequados aos agentes. À época, além das próprias organizações
produtivas, Guerreiro Ramos mencionava os instrumentos da mídia (como a
imprensa, o rádio e a televisão), como sendo protagonistas do que ele chama de
um “processo contínuo de deliberada definição da realidade”.
Tal análise
mantém-se fiel ao contexto atual dos veículos de comunicação brasileiros,
principalmente por manterem um padrão de legitimação das informações em
diferentes meios, por ainda concentrarem-se em poucas empresas, por priorizarem
certas pautas em detrimento de outras e por se aproveitarem frequentemente de
pautas sensacionalistas (como nos programas pinga-sangue) que induzem ao ódio
social. Ou seja, efeitos deste formato midiático ainda podem ser relacionados a
muitos fenômenos recentes, como é o caso do modo despótico com que se combate
as pautas da esquerda (especialmente mirando o desgaste de seus maiores
expoentes). Nesse sentido, pode-se claramente responsabilizar (parcialmente,
pelo menos) a grande mídia ou mídia corporativa brasileira por eventos
políticos da história recente, como é o caso da ditadura militar de 1964, do
golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e da legitimação de uma
agenda neoliberal cuja premissa é contrarreformista e busca desacreditar a
política partidária.
Todo esse
constructo histórico deve ser considerado para compreender o bolsonarismo.
Contudo, mais do que isso, cumpre salientar que a massificação de mensagens via
plataformas digitais, ou redes sociais em linguagem popular, tem causado uma
distorção em um nível antes inimaginável. Por um lado, tem-se a perda completa
de qualquer referência de credibilidade da informação que, entre outros
motivos, se sustenta pela construção de uma relação de confiança entre
o cidadão usuário das redes sociais e os seus interlocutores digitais.
Se havia distorções ou intencionalidades na mídia tradicional, nas redes cabe
toda e qualquer (des)informação, por mais fantasiosa que ela venha ser, desde
que a mencionada falsa da confiança prevaleça. E a confiança é um afeto
importante que mobiliza adesão e está na base de comportamentos e crenças. Em
outro sentido, o que se vê é a proliferação acelerada de uma notícia falsa, com
poucos meios de verificação da informação acessíveis. Isso faz com que a
mentira acabe sendo soberana, ocupando o palco de uma oratória completamente
vã. Chega-se a um ponto em que as bases factuais de qualquer diálogo racional
são inalcançáveis: institutos de pesquisa, evidências científicas e indicadores
solidamente construídos, valem menos do que a “opinião”. Assim, se incumbe
legitimidade a de quem se “confia” e/ou “admira”; mesmo que seja um astrólogo
tabagista, visivelmente lunático e desbocado, que jamais fez parte de qualquer
instituição de ensino respeitável, por motivos óbvios.
No Brasil, o que
sustenta o bolsonarismo é uma sequência de fantasmas, estórias e mitos, que
juntos não passam de uma ficção alucinante. É impressionante como
vulnerabilidades cognitivas/afetivas impedem a correção dos efeitos de uma
narrativa mentirosa, que é assimilada como verdade muito em função dos afetos
que produz nos receptores. Mesmo que desmentida depois, o boato ou fake
news segue produzindo efeitos cognitivos que são reais para quem os
experimenta. Na deep web ou dark web, em sítios
como 4chan (fóruns anônimos) e outros do mesmo teor, os neofascistas têm se
socializado e criado fóruns, gerando uma comunidade digital que permite uma
reconstrução do neofascismo contemporâneo, com novas referências teóricas e
políticas (Valencia-Garcia, 2020). Foi do 4chan que a senadora eleita Damares
Alves tirou a ideia da mentira que contou recentemente, acerca de crianças
cujos dentes haviam sido arrancados para fazerem sexo oral (O Povo,
2022). O teor escatológico e bizarro é característico desses fóruns e seus
adeptos, segundo pesquisadores/as que têm o estômago forte para analisar seus
conteúdos lamentáveis (Demuru, 2021).
Evgeny Morozov,
pesquisador bielorrusso, é um dos autores que já relaciona a ascensão dos dados
com a morte na política, descrevendo a forma como as plataformas e seu uso
oportunista intervém em processos legitimamente democráticos, deturpando-os.
Esses novos contornos assumidos pela comunicação em tempos tecnológicos não só
camuflam as intenções das Big Techs, como ainda dão a errônea
impressão de que a internet é um campo neutro, linear e democrático.
Ainda que Bolsonaro
saia perdedor nesse segundo turno das eleições, o bolsonarismo ou, em termos
ainda mais amplos, essa extrema direita que insiste em afirmar-se no Brasil
seguirá sendo um problema da maior ordem. Ao chamar a atenção à potência
destrutiva das redes sociais digitais, com ênfase aos seus subterrâneos,
busca-se enfatizar que se trata de uma realidade posta – que em muitos casos
bem poderia ser vista como “realidade paralela”. Dito isso, para superar essa
espécie de “apagão de consciência” produzido pela mencionada extrema direita e
operacionalizado pelas redes, todas e todos nós preocupados com o Brasil do
amanhã precisamos engajar-nos na construção de mecanismos reais de geração
de confiança com a diversidade da população brasileira. Nesse sentido,
é preciso apelar à ação e ao discurso – no bom sentido do termo – da
preocupação com os problemas concretos e materiais das populações mais
vulneráveis. Ainda consideramos imperativo o resgate das boas práticas dos
movimentos populares das décadas de 1970 e 80 – dos quais as Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais da Igreja Católica eram parte
expressiva. Que se possa recuperar, enfim, os valores da teologia da
libertação, da solidariedade e da crítica social reflexiva, em busca de modos
mais justos de viver em comunidade. Os valores associados à “teologia da
prosperidade”, ao contrário, orientam uma prática individualista e centrada em
barganhas dos fiéis: nada poderia ser mais afastado de busca coletiva de uma
vida melhor para todos.
CALED, D., SILVA, MJ Mídia digital e desinformação: um olhar sobre estratégias multidisciplinares contra a manipulação. J Comput Soc Sc 5, 123-159, 2022. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s42001-021-00118-8#citeas
CORREIA, A. Arendt e Kant: banalidade do mal e mal radical. Argumentos Revista de Filosofia, Fortaleza, ano 5, n. 9, p. 63-78, jan./jun. 2013.
DEMURU, P. Teorias da conspiração e populismo messiânico no Brasil contemporâneo: uma perspectiva semiótico-cultural. Estudos Semióticos, [S. l.], v. 17, n. 2, p. 264-291, 2021. DOI: 10.11606/issn.1980-4016.esse.2021.180942. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/esse/article/view/180942. Acesso em: 14 out. 2022.
O POVO. Fala de Damares sobre suposto abuso sexual de crianças circula na internet como ficção desde 2010. Leia mais em: https://www.opovo.com.br/eleicoes-2022/2022/10/13/fala-de-damares-sobre-suposto-abuso-sexual-de-criancas-circula-na-internet-como-ficcao-desde-2010.html
VALENCIA-GARCIA, L. D. (ed.). Far-right revisionism and the end of history: alt /histories. New York: Routledge/ Taylor & Francis Group, 2020, 438p.
A pressa é inimiga da opinião https://bit.ly/3n47CDe
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