07 novembro 2022

Fascismo e redes sociais

O “apagão de consciência” – e como revertê-lo

Fascismo à brasileira se reconstruiu pelas redes sociais. Mentiras e virulência desenfreadas geraram uma “realidade paralela”, que pode sobreviver a Bolsonaro. Como, então, reconquistar a confiança popular em torno de lógicas solidárias?
Julice Salvagni, Marília Veríssimo Veronese e Gustavo Moura de Oliveira, Outras palavras

 

Os resultados das urnas do primeiro turno das eleições presidenciais deste ano surpreenderam negativamente: como é possível que mais de 51 milhões de eleitores confiem seu apoio a Jair Bolsonaro? Dentre as diferentes formas possíveis para se examinar esse fenômeno, a compreensão do papel da comunicação parece assumir certa centralidade. Em tempo de redes sociais digitais, a ascensão do fascismo dá-se por uma construção ideológica, afetiva e de geração de confiança entre supostos “pares”, alheia a qualquer dimensão factual, assumindo um alcance e uma proporção jamais vistas no período republicano brasileiro. Seria o primado da “pós-verdade”, na qual o conceito mesmo de verdade factual ou amplamente aceita numa comunidade epistêmica já não é mais baliza para orientar as crenças das pessoas.

Na disputa ao pleito em 2018, ainda havia apostas, ainda que vagas, de que um inepto deputado outsider, que dizia ser necessário “mudar isso daí” para quase tudo, pudesse efetivamente mudar alguma coisa, especialmente impulsionando a economia. Naquele contexto, já não se podia negar adesão de parcela da população a um discurso neofascista, mas um governo comandado por Bolsonaro ainda estava no plano das ideias, e os alertas feitos pela esquerda eram tomados como exagero. Contudo, nesses últimos quatro anos, vieram à tona muitos escândalos de corrupção (esquema de “rachadinhas” ou peculato, compras de imóveis com dinheiro em espécie, tentativa de receber propina para aquisição de vacinas, barras de ouro para pastores amigos no MEC, ligação obscura da família com milicianos criminosos, compra de votos com o “orçamento secreto” e muitos outros). Diante desses escândalos, solenemente ignorados por muitos, o que se viu foi um governo que tentou impedir as investigações, cooptou ou afastou pessoas consideradas centrais na Polícia Federal e atacou continuamente as instituições, sobretudo o STF.

No meio de tudo isso, surge a pandemia de covid-19. Não foi por acaso que Bolsonaro terminaria enquadrado pela “CPI da Covid”, sendo acusado por nove crimes. Bolsonaro disse que era só uma gripezinha, minimizando o risco real do vírus. Atuou como propagandista do ineficaz e não recomendado “Kit Covid”. Disse que a vacina não funcionava ou que deveria ser uma “escolha pessoal”. De forma profundamente irresponsável, insinuou que a vacina poderia causar HIV e fez piada sobre “virar jacaré”. Fez tudo que pôde para não adquirir as doses necessárias para vacinação em massa, até que, pressionado, acatou a compra desde que um dólar por vacina fosse para o bolso de seus apaniguados. De modo repugnante e vil, imitou pessoas com falta de ar, com ar de deboche. Confrontado com as mortes, respondeu “e daí?! Eu não sou coveiro!”, diante de um Brasil destroçado pelo vírus e pelo luto. Incentivou a população a se aglomerar, a não usar máscaras e, inacreditavelmente, a invadir hospitais. O resultado disso tudo: mais de 680 mil vidas perdidas no país!

O Brasil está seguindo uma tendência de avanço da extrema direita mundial, da qual o trumpismo nos EUA é a maior expressão, mas que também inclui países como Hungria, Turquia, França, Espanha, Itália, Filipinas entre outros. No Brasil, considerando suas particularidades frente aos demais casos, o que está acontecendo parece mesmo uma alucinação coletiva delirante, muito além das expressões econômicas e culturais de um nacionalismo racista, classista e xenofóbico. O óbvio é ignorado e mentiras absurdas são tomadas como realidade por partidários do atual governo, bem como distorções inaceitáveis são tomadas como naturais em relação aos governos anteriores (como os de Lula e Dilma). Muitas vezes, nem é preciso ir ao subsolo da desinformação via WhatsApp ou outras redes digitais da deep web, porque em rádios locais, locutores e “comentaristas” reacionários seguem afirmado que “o PT quebrou o Brasil”, e minimizando ou ignorando as atrocidades cometidas por Bolsonaro e seus ministros, legitimando, de certa forma, um discurso falacioso.

O avançar dessa construção, infelizmente, tem projetado um contexto gravíssimo. Não há na história brasileira qualquer relato histórico de um político simulando, em tom de deboche, a morte de uma pessoa por falta de ar. Para além dessa demonstração individual de perversidade, nunca se imaginou que tal fato pudesse passar despercebido pela população, que dirá ser aceito e aclamado, como de fato foi, pelo eleitorado bolsonarista. Será essa a instauração de uma sociedade marcada por uma sociopatia coletiva? Vladimir Safatle nos lembra que a ideologia fascista esteve presente no Brasil, historicamente, manifestando-se sob a forma de integralismo (movimento liderado por Plínio Salgado) e de práticas de eugenia, e volta e meia ressurge na arena pública. A última vez tinha sido durante a ditadura militar (1964-1985). A Nova República (1985-2016) havia nos dado a impressão de que os ímpetos fascistas tinham sido enterrados de vez, mas os últimos seis anos mostraram que não.

Contudo, mesmo em tempos da ditadura militar, os crimes bárbaros protagonizados por uma parcela do Exército – permitida, em boa medida, pelos interesses do mercado – não contavam explicitamente com o apoio de pelo menos metade do país. As condições eram outras, a comunicação social muito mais limitada e vigiada pela censura, e por se tratar de um regime de exceção, pode-se pensar que a sociedade, de modo geral, não estava apoiando e legitimando a barbárie. Bolsonaro, justamente, está entre as raras pessoas que vieram a público para defender a ditadura e exaltar torturadores. O fato de ter saído ileso de tantos pronunciamentos criminosos talvez ajude a entender em perspectiva a produção desse preocupante cenário, ao mesmo tempo em que denuncia a fragilidade do sistema democrático brasileiro e suas instituições.

Pelo menos no senso comum, a população brasileira já foi tida como festiva, alegre e acolhedora. Hoje se sabe que essa falsa identidade social apenas camuflava uma discrepante luta de classes, bastante violenta. Na década de 1960, João Ubaldo Ribeiro já falava em uma sociedade brasileira marcada pela disparidade entre uma minoria que detém os meios de produção e a outra, ainda que majoritária, que é dominada por ela. Mais recentemente, Marilena Chauí fez referência à classe média brasileira, que abrigaria uma parcela de gente de inclinação fascista, violenta e ignorante. Jessé de Souza, ao analisar a era petista, destaca a inconformidade da elite nacional frente as tênues conquistas da classe trabalhadora.

Ainda que as marcas estruturais e históricas da escravatura tenham sido retratadas, especialmente por expoentes do pensamento crítico brasileiro, como por Gilberto Freyre, claramente essa herança escravista não foi socialmente superada. Seja por uma inclinação positivista da educação brasileira (intensificada na reforma levada a cabo durante a ditadura), seja pela própria limitação do alcance do ensino no país, tem-se aqui um terreno fértil para a distorção, a mentira e, claro, o controle ideológico de contingentes populacionais significativos. Fazendo referência a um termo arendtiano, basta adicionar a esse caldo um alvo, para que o truque demagógico do controle das massas esteja posto.

Hannah Arendt, filósofa alemã, trabalhou com os conceitos de “banalidade do mal” e “mal radical”. Interpretou a adesão de “gente normal” às práticas nazistas do III Reich como a banalização do mal pelas “pessoas de bem”, e arriscamos dizer que fenômeno semelhante está acontecendo hoje no Brasil. A autora pensava nos “que se ajustaram prontamente à nova ordem, dos intelectuais oportunistas aos oportunistas de toda sorte; os que protagonizaram a concepção do regime, desde pequeno-burgueses a sádicos pervertidos; os aventureiros pais de família da crise do entreguerras, dispostos a sacrificar toda sua dignidade pessoal à segurança dos seus; aqueles que se alinharam ao regime apenas por não parecerem possuir uma resposta plausível à pergunta ‘por que não?’” (Correia, 2013, p. 64).

Alberto Guerreiro Ramos, cientista social brasileiro bastante lido no campo da administração pela sua análise das organizações, em A Nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações, obra lançada em 1981, fazia referência a uma sociedade centrada no mercado que se alicerça em uma retórica de persuasão, cujo imperativo é subsidiar a disciplina dominante. Essa linguagem distorcida, que o autor chama de “política cognitiva”, é fraudada nos termos adequados aos agentes. À época, além das próprias organizações produtivas, Guerreiro Ramos mencionava os instrumentos da mídia (como a imprensa, o rádio e a televisão), como sendo protagonistas do que ele chama de um “processo contínuo de deliberada definição da realidade”.

Tal análise mantém-se fiel ao contexto atual dos veículos de comunicação brasileiros, principalmente por manterem um padrão de legitimação das informações em diferentes meios, por ainda concentrarem-se em poucas empresas, por priorizarem certas pautas em detrimento de outras e por se aproveitarem frequentemente de pautas sensacionalistas (como nos programas pinga-sangue) que induzem ao ódio social. Ou seja, efeitos deste formato midiático ainda podem ser relacionados a muitos fenômenos recentes, como é o caso do modo despótico com que se combate as pautas da esquerda (especialmente mirando o desgaste de seus maiores expoentes). Nesse sentido, pode-se claramente responsabilizar (parcialmente, pelo menos) a grande mídia ou mídia corporativa brasileira por eventos políticos da história recente, como é o caso da ditadura militar de 1964, do golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e da legitimação de uma agenda neoliberal cuja premissa é contrarreformista e busca desacreditar a política partidária.

Todo esse constructo histórico deve ser considerado para compreender o bolsonarismo. Contudo, mais do que isso, cumpre salientar que a massificação de mensagens via plataformas digitais, ou redes sociais em linguagem popular, tem causado uma distorção em um nível antes inimaginável. Por um lado, tem-se a perda completa de qualquer referência de credibilidade da informação que, entre outros motivos, se sustenta pela construção de uma relação de confiança entre o cidadão usuário das redes sociais e os seus interlocutores digitais. Se havia distorções ou intencionalidades na mídia tradicional, nas redes cabe toda e qualquer (des)informação, por mais fantasiosa que ela venha ser, desde que a mencionada falsa da confiança prevaleça. E a confiança é um afeto importante que mobiliza adesão e está na base de comportamentos e crenças. Em outro sentido, o que se vê é a proliferação acelerada de uma notícia falsa, com poucos meios de verificação da informação acessíveis. Isso faz com que a mentira acabe sendo soberana, ocupando o palco de uma oratória completamente vã. Chega-se a um ponto em que as bases factuais de qualquer diálogo racional são inalcançáveis: institutos de pesquisa, evidências científicas e indicadores solidamente construídos, valem menos do que a “opinião”. Assim, se incumbe legitimidade a de quem se “confia” e/ou “admira”; mesmo que seja um astrólogo tabagista, visivelmente lunático e desbocado, que jamais fez parte de qualquer instituição de ensino respeitável, por motivos óbvios.

No Brasil, o que sustenta o bolsonarismo é uma sequência de fantasmas, estórias e mitos, que juntos não passam de uma ficção alucinante. É impressionante como vulnerabilidades cognitivas/afetivas impedem a correção dos efeitos de uma narrativa mentirosa, que é assimilada como verdade muito em função dos afetos que produz nos receptores. Mesmo que desmentida depois, o boato ou fake news segue produzindo efeitos cognitivos que são reais para quem os experimenta. Na deep web ou dark web, em sítios como 4chan (fóruns anônimos) e outros do mesmo teor, os neofascistas têm se socializado e criado fóruns, gerando uma comunidade digital que permite uma reconstrução do neofascismo contemporâneo, com novas referências teóricas e políticas (Valencia-Garcia, 2020). Foi do 4chan que a senadora eleita Damares Alves tirou a ideia da mentira que contou recentemente, acerca de crianças cujos dentes haviam sido arrancados para fazerem sexo oral (O Povo, 2022). O teor escatológico e bizarro é característico desses fóruns e seus adeptos, segundo pesquisadores/as que têm o estômago forte para analisar seus conteúdos lamentáveis (Demuru, 2021).

Evgeny Morozov, pesquisador bielorrusso, é um dos autores que já relaciona a ascensão dos dados com a morte na política, descrevendo a forma como as plataformas e seu uso oportunista intervém em processos legitimamente democráticos, deturpando-os. Esses novos contornos assumidos pela comunicação em tempos tecnológicos não só camuflam as intenções das Big Techs, como ainda dão a errônea impressão de que a internet é um campo neutro, linear e democrático.

Ainda que Bolsonaro saia perdedor nesse segundo turno das eleições, o bolsonarismo ou, em termos ainda mais amplos, essa extrema direita que insiste em afirmar-se no Brasil seguirá sendo um problema da maior ordem. Ao chamar a atenção à potência destrutiva das redes sociais digitais, com ênfase aos seus subterrâneos, busca-se enfatizar que se trata de uma realidade posta – que em muitos casos bem poderia ser vista como “realidade paralela”. Dito isso, para superar essa espécie de “apagão de consciência” produzido pela mencionada extrema direita e operacionalizado pelas redes, todas e todos nós preocupados com o Brasil do amanhã precisamos engajar-nos na construção de mecanismos reais de geração de confiança com a diversidade da população brasileira. Nesse sentido, é preciso apelar à ação e ao discurso – no bom sentido do termo – da preocupação com os problemas concretos e materiais das populações mais vulneráveis. Ainda consideramos imperativo o resgate das boas práticas dos movimentos populares das décadas de 1970 e 80 – dos quais as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais da Igreja Católica eram parte expressiva. Que se possa recuperar, enfim, os valores da teologia da libertação, da solidariedade e da crítica social reflexiva, em busca de modos mais justos de viver em comunidade. Os valores associados à “teologia da prosperidade”, ao contrário, orientam uma prática individualista e centrada em barganhas dos fiéis: nada poderia ser mais afastado de busca coletiva de uma vida melhor para todos.

CALED, D., SILVA, MJ Mídia digital e desinformação: um olhar sobre estratégias multidisciplinares contra a manipulação. J Comput Soc Sc 5, 123-159, 2022. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s42001-021-00118-8#citeas

CORREIA, A. Arendt e Kant: banalidade do mal e mal radical. Argumentos Revista de Filosofia, Fortaleza, ano 5, n. 9, p. 63-78, jan./jun. 2013.

DEMURU, P. Teorias da conspiração e populismo messiânico no Brasil contemporâneo: uma perspectiva semiótico-cultural. Estudos Semióticos, [S. l.], v. 17, n. 2, p. 264-291, 2021. DOI: 10.11606/issn.1980-4016.esse.2021.180942. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/esse/article/view/180942. Acesso em: 14 out. 2022.

O POVO. Fala de Damares sobre suposto abuso sexual de crianças circula na internet como ficção desde 2010. Leia mais em: https://www.opovo.com.br/eleicoes-2022/2022/10/13/fala-de-damares-sobre-suposto-abuso-sexual-de-criancas-circula-na-internet-como-ficcao-desde-2010.html

VALENCIA-GARCIA, L. D. (ed.). Far-right revisionism and the end of history: alt /histories. New York: Routledge/ Taylor & Francis Group, 2020, 438p.

A pressa é inimiga da opinião https://bit.ly/3n47CDe

Nenhum comentário: