Medo e delírio nos corações bolsonaristas
Relato etnográfico: um treinador de
academia descreve a elite branca que o cerca, na Barra da Tijuca. Nas eleições,
ela rumina pós-verdades para esconder seu maior temor: perder privilégios. Ao
fazê-lo, revela suas taras, ignorância e colonialismo
Federico G. L. e Ernesto C., Outras palavras
Eram 18h. Naquele
momento alguém gritou “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, o Brasil é
nosso! O Brasil é nosso!” No número 3100 da Avenida Lúcio Costa, no Rio de
Janeiro, centenas de pessoas envoltas em bandeiras verde-amarelas estavam
dançando, gritando e cantando o hino brasileiro no auge de seus pulmões. Jair
Bolsonaro morava naquele endereço, ele tinha acabado de ganhar as eleições, era
outubro de 2018 e a Barra da Tijuca estava se enchendo de um novo tipo de
fervor. Quatro anos depois, em outubro de 2022, essa liturgia política era
substituída pelo grito de “fraude!”, “CorrupPTo!, “Luladrão!” e,
principalmente, “Intervenção Federal (ou seja, militar) já!”.
O bairro,
localizado à beira-mar na parte oeste da cidade, representava a área
bolsonarista por excelência, aquela nova Beverly Hills saneada que há anos
tentava evitar assentamentos informais de favela, e queria adotar um estilo de
vida norte-americano, representado não apenas em sua forma urbana, centros
comerciais, carros e pistas de alta velocidade, mas em símbolos como uma
Estátua da Liberdade e um Centro de Nova York. Os moradores deste bairro,
embora diversos, eram geralmente chamados de “emergentes da Barra”, da “Miami
brasileira”, uma nova classe culturalmente diferenciada de seus vizinhos da
zona sul, e onde os valores de modernidade, segurança, praticidade e self-made eram
sua marca. A Barra da Tijuca era o bairro com o mais alto índice de qualidade
de vida do Rio de Janeiro, com uma população de aproximadamente 400 mil
pessoas. Nas eleições de 2022, mais da metade do bairro votou em Bolsonaro,
sendo um dos espaços mais bolsonaristas do Rio.
A articulação do
discurso radical e da polarização política no bairro ocorreu a partir de uma
nova cultura comunicativa, caracterizada pela desintermediação, o meme, a
descontextualização e as notícias falsas, em uma espécie de populismo digital
em que tudo era rápido e antagônico, em um contexto de pós-verdade que
questiona o procedimento de construção de verdades baseadas em fatos. Milhares
de mentes dispersas acessaram esses artefatos para construir, a partir de suas
vidas muitas vezes solitárias devido à própria infraestrutura urbana de medo e
isolamento; uma comunidade imaginada para compartilhar e reafirmar tenazmente
seus ideais. Embora estes espaços fossem fundamentais para organizar o
discurso, esta classe social do bairro, sentindo a falta de um capital cultural
representativo no país, compartilhava sua raiva e orfandade nos jardins e
campos esportivos dos condomínios. Talvez o espaço mais representativo para
estes “órfãos”, agora patrocinado pelo bolsonarismo, fossem academias
esportivas dos condomínios.
Ernesto trabalhou
como treinador de academia em um desses condomínios de luxo, transitando entre
dois mundos. Todos os dias ele deixava seu bairro, numa humilde área do
Jacarepaguá, e tomava dois ônibus com a classe trabalhadora que ia para estes
condomínios. Lá ele passava por dois postos de controle de segurança armados,
chegando finalmente ao ginásio de um prédio de mais de 20 andares. Neste
condomínio, Ernesto encontrava e falava diariamente com garis, seguranças,
motoristas, trabalhadores de limpeza do prédio, manicures, passeadores de cães,
jardineiros, motoristas Uber, taxistas e motoristas de ônibus, e toda uma série
de pessoas que geralmente têm que deixar suas casas às três horas da manhã com
um objetivo em comum: manter o condomínio em boa forma.
Muitos deles eram
negros, mas nenhum deles vivia nos prédios. Não foi surpreendente que o músico
negro e comediante Eddie Jr, neste caso em São Paulo, tivesse sofrido ataques
racistas por viver em um desses condomínios para a elite branca. Embora o
racismo fosse geralmente velado na linguagem, de tempos em tempos frases como
“negro”, “feio”, “bandido” ou “macaco de fora” se acendiam. Sempre foi assim.
Ernesto falava com
os trabalhadores em seu caminho, muitos votariam novamente em Bolsonaro no
segundo turno nas eleições de 2022, pois, segundo eles, estes últimos anos
teriam se caracterizado pela seca, pandemia e pela guerra na Ucrânia, e o
“homem” precisava de outra chance. A gasolina era barata graças ao “Mito”, o
Brasil tinha deflação. Estas palavras eram reproduzidas entre a classe mais
despossuída, o que também atrairia um pequeno sorriso de seu pastor. Contra a
depravação moral, contra o bandido e a corrupção. Outros sonhavam que, ao se
comportarem como seus patrões, um dia ocupariam um espaço semelhante e
deixariam a vida nas favelas e comprariam um apartamento com vista para o mar.
Mas estes eram poucos, é claro. Para a maioria, sua posição enraizada no
subúrbio vinha como algo natural, e nada mudaria jamais.
Ernesto chegava
então ao edifício. Levantando a cabeça, ele podia ver as bandeiras nacionais
que flamejavam quando o dia 30 de outubro se aproximava, e ele entrava no
ginásio, onde todos os dias comparava as frases de seus colegas de classe com
as desta elite carioca. Durante os anos do bolsonarismo, entre 2018 e 2022,
Ernesto escreveu todos os dias as frases que essas pessoas diziam. Ele
observava um espaço comum que eles compartilhavam entre as máquinas esportivas,
onde os discursos imaginários das redes sociais adquiriam corpo e matéria por
meio de gritos, críticas e assentimento. Algumas destas fotografias
representavam o trabalho de Ernesto na captura do discurso violento articulado
em academias ao longo dos anos. O silêncio durante sua jornada de trabalho, a
raiva e a impotência diante da fragilidade democrática, foi canalizado em seus
escritos, no que ele chamou em seu diário de “Beverly Hills Carioca”, e que
agora reproduzimos alguns fragmentos:
“Nossas
manifestações são educadas, sem violência. Eles não são como os da esquerda,
que só tem bandidos, onde quebram tudo e insultam a todos”, disse uma idosa no
condomínio, movendo as pernas na máquina de remo. Então, voltando-se para ele,
ela disse: “Não entendo por que você não gosta de Bolsonaro, você é um
esquerdista”. Uma mulher explicou em outro dia, após uma viagem à Índia: “é um
país muito pobre, com castelos de ouro de um lado e pobreza do outro, mas é
exótico, você sabe”. Ao mesmo tempo, um homem negro ajoelhou-se para limpar a
porta de vidro do ginásio. “Você sabia que a empresa Correios é de esquerda? É
por isso que nada funciona”, comentaram dois vizinhos caminhando rapidamente
sobre a esteira. “Você só assiste a Globo, é por isso que você não aprende”,
outro inquilino ditou paternalisticamente enquanto fazia exercícios de pulso.
“A época mais feliz da minha vida foi de 64 até o fim da era militar”, disse um
aposentado.
O diário de Ernesto
proporcionava uma pequena fechadura pela qual espiar as conversas cotidianas,
onde o racismo, o classismo e a heteronormatividade das elites cariocas estavam
presentes, como um código de conduta que tinha que ser cumprido para obter
reconhecimento na vizinhança. Algumas vezes, como nos discursos anteriores,
foram conversas sobre tapetes de chá nas quais a elite tentava explicar o
funcionamento do país. Em outros momentos, esses discursos emitiam emoções de
ódio, medo e raiva profunda, tentando reafirmar não só a posse de uma verdade
produzida, mas também virilidade, força e poder: “Marielle tinha que morrer,
ela era uma vagabunda”; “o racismo é vitimização”; “a esquerda recebe
sanduíches de mortadela nas manifestações”; “eu também deveria ter uma cota, eu
também sou uma minoria, uma minoria de descendente de alemão”, disse um vizinho
gaúcho.
Traços violentos
assumiram sua expressão mais negacionista e paranoica durante a pandemia:
“Ivermectina é nossa única saída”, disse um arquiteto. “Para eles, é
interessante que não saibamos a verdade”, especulou um dentista, em oposição à
campanha de vacinação. “Bolsonaro não comprou a vacina porque o STF não o
deixou”, disse um jovem em sua palestra. “O lockdown não funciona em nenhum
lugar, enquanto os criminosos têm festas”, gritou uma senhora.
À medida que a
campanha avançava, a histeria em massa foi novamente canalizada para o ataque
ao comunismo. “Esse papa é um comunista”, afirmou um casal de idosos. Ernesto
achava cada vez mais difícil suportar estas afirmações, e por isso perguntou,
com suposta ingenuidade, o que os cavalheiros pensavam que era o comunismo. “O
comunismo é o que não funciona em nenhum lugar, tudo para o Estado e nada para
o povo”, explicou um homem de 72 anos. “Vou lhe dar um exemplo”, disse a
mulher: “Imagine que você tem uma casa com três quartos, mas você só usa um, e
o governo o obriga a dar os outros dois a estranhos, isso é justo? Isso é
comunismo. O comunismo é defender um ladrão de telefones, um petista do MST que
quer tomar sua casa pela força”.
Todas estas
mensagens deram forma e interação superficial ao que estava sendo transmitido
nas redes sociais. Em uma mistura de diferentes espaços para a construção da
retórica, Ernesto viu como, no contexto eleitoral, os grupos de vizinhos da
academia adquiriram uma violência e um grau de paranoia particulares. Assim,
uma vizinha escreveu no grupo hidro-ginásio de seu prédio:
“Vamos fazer um
protesto para que o governo do PT de Lula não entre. Porque nós, cristãos,
vamos sofrer. Não vote em Lula, ele está planejando fazer um banheiro misto
masculino e feminino, colocar uma imagem de Exu do vento em cada cidade do Rio
como guardião. As crianças poderão escolher que sexo podem ser, as mulheres
poderão ter um relacionamento com seus animais de estimação que não será um
crime, o pastor será obrigado a fazer casamentos gays e lésbicos em sua igreja
se ele não o fizer, eles serão presos. Vamos orar para esse Lula não ganhar as
eleições. Eu não gosto de política. Mas eu não voto em Lula, ele está fechado
com os espíritas, ele fez um pacto com os demônios. Bolsonaro é a favor da
família e temente a Deus.”
Da mesma forma, o
fim da campanha eleitoral alimentou sentimentos profundos de natureza mais
antidemocrática, representados no lançamento de granadas na Polícia Federal e
mensagens tirados da gaveta apelando para um golpe militar no WhatsApp,
falsificando as palavras das lideranças do exército:
“(…) Nós juramos
defender a Pátria! Começou em 1964. Os senhores meus amigos sabem muito bem.
Uma coisa leva a outra!!!! Assim estou expressando meu maior sentimento de
repúdio a esse Supremo Tribunal da Vergonha. Nós das FFAA sabemos muito bem o
que devemos fazer para impedir tudo isso, mas agora cabe saber o que a Sociedade
de bem deseja. Será que também vão invadir minha casa? Convoco aqui, como Chefe
de Instituição Militar, uma grande mobilização dos nossos amigos oficiais
patriotas e que essa carta se espalhe para todos vocês e se unam (…)”.
A defesa racional
dos interesses de raça, classe e gênero parecia ser acompanhada por uma espécie
de delírio discursivo que chicoteava fantasmas, medos e ódios que dominavam o
mais íntimo dos vizinhos do condomínio. O valor da cruz foi apresentado em sua
faceta mais punitivista. Isoladas entre quatro paredes, as pessoas construíram
uma base complexa de pensamento, poder e desejo, na qual a dominação
pós-colonial foi, por sua vez, tecida com demônios potenciais das religiões
afro-brasileiras, inseguranças em um universo hiper-masculinizado e medos de
transformação em monstros e taras anticristãs que habitariam nas profundezas
das almas.
O pensamento
bolsonarista foi articulado e solidarizado neste espaço concreto, fortalecendo
um sentimento de pertencimento através da repetição de ideias. Como a análise
de Trotsky sobre o nazismo, os medos e percepções de ameaças iminentes
permitiram a lunática criação de formas inimigas que poderiam muito bem ser
categorizadas como pensamento mágico ou paranoia coletiva. Dentro de suas
paredes, Ernesto observava como os vizinhos reagiam agressivamente aos avanços
civis. Eles procuravam restabelecer aqueles privilégios teoricamente perdidos,
e a academia era um espaço de cristalização e reprodução do poder social de
elite, onde era legítimo desenvolver uma mentalidade agressiva de Lobo de Wall
Street. Nesse espaço, o trabalhador negro, a trabalhadora doméstica ou o
jardineiro pobre tinha um papel social claro: uma subalternidade assumida, uma
naturalização daquela ordem que tinha que ser recuperada. E claro, o discurso
sempre foi construído a partir dos corpos, dos músculos do machista, dos
espaços onde as elites levantam pesos, suor e gritos. É a partir desses espaços
isolados que a elite bolsonarista imaginou, com raiva e angústia, seus
inimigos, como uma polícia de fronteira capaz de legitimar um “nós contra
eles”, um “bem contra o mal” eterno.
Ernesto chegou
sorridente após a vitória. Silêncio. Essas vozes constantes, antidemocráticas,
estavam agora em silêncio. Algo infantil, violentamente infantil, eternamente
infantil, era expresso através dos olhos dos vizinhos: a saída do bolsonarismo
era pôr fim a um mal inventado, para o qual era importante se organizar rápido,
assaltar as estradas, reclamar a fraude, acabar com os inimigos do Brasil. O
inimigo não sabia com quem ele estava falando. Muitos destes supostos inimigos
também estavam ao seu redor, construindo sua identidade social através da
limpeza de seus espaços, apoiando em aparente contradição uma ordem histórica
que o bolsonarismo reivindicava.
Os “cidadãos de
bem” bolsonaristas suavam, levantavam pesos, expressando uma raiva eterna,
selada em sangue, capital e bandeira. “Nossa vingança será ver como o pobre vai
se arrepender”, exclamou uma senhora na bicicleta elíptica. Os trabalhadores,
quase todos negros, limpavam o chão da academia. Sorte que o Flamengo tinha
ganhado a Copa Libertadores, e o futebol se apresentava, mais uma vez, capaz de
mediar essa falsa cordialidade. Dessa vez foi o Corinthians e sua torcida quem
teve que demonstrar seu papel político na defesa da democracia, sem ocultar
debaixo da bola uma eterna luta racial, de gênero e de classe que era
representada nesse pequeno microcosmos da academia.
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