MANGUETALS
Artista
relembra a participação das mulheres no Movimento Mangue, do qual também
participou ativamente
KARINA BUHR/revista continente
Festa no terreiro, chão de barro, dança
e música que se misturavam com cada célula do meu corpo.
No banco, “rabeca, pandeiro, baje, baje e mineiro”, dizia o Empata Samba, no
cavalo-marinho, apontando pros instrumentos. Todos homens. O mineirista sai e
Siba, que estava na rabeca, pede pra eu tocar e começo. Toco uns dois minutos,
um galante que está na dança dos arcos larga o arco rápido, pega o mineiro da
minha mão e toca até a volta do músico.
Baixo, bateria e guitarra, a festa não terminava. Todos homens. Eu
admirava a tranquilidade bêbada de músicos e plateia, e assistia gostando do
som, gostando de tudo e pensando que beleza a possibilidade de poder cair no
palco, sendo que subir no palco ainda era desafio. Outro dia, outra banda boa,
o baterista cai do palco com bateria e tudo. Todos homens. Não desejei cair do
palco com a bateria, mas invejei de novo a leveza da possibilidade do não
julgamento, ou até do julgamento de um tipo que não impedisse a passagem da
música, da ideia, mesmo dos erros, do jeito que eles viviam ali. Chego num
ensaio, não tem muito lugar pra mim, mas fico. O sábado é de rima, baque solto,
o samba comendo, maravilha geral. Todos homens.
A festa hoje é em
Guadalupe. Atabaques, gonguê, palmas, roda. Todos homens. A Pomba-gira entra,
me dá uma garrafa de champanhe e as maracas, me manda tocar. Minha primeira vez
na umbanda. Ali perto toquei por alguns anos, xequerê e também atabaque, no
afoxé, todo domingo, na Cantina Z4, colônia de pescadores de Olinda, e timbal
nos cortejos de Carnaval.
No Natal, Manuela e eu no
mergulhão (uma dança do cavalo marinho), dando uma forçada de barra, como de
costume, pois poder não podia; mulher não era pra dançar, tocar, nem botar
figura no cavalo-marinho. Essa vontade tive que engolir, nunca botei figura. As
luzes de uma filmagem acendem, para tudo, “pra vocês saberem que elas estão
dançando hoje aqui porque é festa de Natal, pra ninguém sair por aí dizendo que
viu mulher brincando no brinquedo de Salu”. Esse pensamento não era só dele,
era o costume, e a intenção aqui é contar cenas reais pra esboçar um resumo de
memória, às vezes um pouco turva, de coisas que se passaram há décadas, de um
roteiro grande, muita história, que esse texto não vai dar conta de contar
direito nem a minha própria, muito menos a de outras pessoas, nem de resolver
nada, nem tem essa pretensão. Uma coisa que a memória não esquece é que era
triste demais não poder brincar junto, ter que só assistir.
Que mulheres, cis e trans, homens trans, pessoas não binárias, todes,
possam viver na tranquilidade e contar suas histórias. Avia, século vinte e
um!
Salustiano foi um grande
mestre e dividia sua sabedoria no dia a dia também com as filhas, que
acompanhavam tudo e participavam ativamente nos bastidores. Betânia
pequenininha já mostrava a que veio, Moca já deixava pular pelos olhos a liderança que,
àquela altura, já tinha e apontava pras rédeas que ela mesma ia pegar pra guiar
depois. Me emocionava vê-las ali e também outras mulheres de Cidade Tabajara,
que bordavam gola, costuravam, cozinhavam, organizavam, criavam, produziam. Na
frente da cena, só se fossem baianas, e ser baiana não era menor, de maneira
nenhuma, mas tocar no terno ou no banco não podia. Fui baiana do Piaba de Ouro
e tocava no terno de vez em quando, porque o Carnaval é grande, maracatu acorda
cedo e dorme tarde e muitas coisas aconteciam quando se tinha vontade. Outras
não.
A bailarina Patrícia Sene
passou por lá e era lanceira no seu espetáculo. Interações, conflitos,
aprendizados, mudanças. No dia em que vi Maíca, filha de Biu Roque, tocando no
banco de cavalo-marinho, a gente ficou se olhando e gargalhando, sem falar
nada, sensação boa demais. Obrigada, Maíca! Moca hoje é mestra, formou o
cavalo-marinho Flor de Manjerona, só com mulheres, e a história se mistura com
lantejoula pelas mãos delas. Os mestres mais velhos seguem sendo reverenciados
por elas e as admiram, brincam juntos, eles e suas afilhadas e netas nos
mistérios, na beleza e no motor das usinas dos brinquedos. Salu com certeza
está orgulhoso.
Volta pras cenas de antes.
Quero tocar tambor, mas há uma proibição sem placa de proibido, chuvas de nãos,
ditos e não ditos. Conheci Cristina Barbosa, Virgínia Barbosa e Neide Alves,
com elas muitas admirações e caminhos, elas faziam o que eu queria fazer e não
via muita possibilidade, me inspiraram, musas verdadeiras. Comecei a tocar no
Carnaval no Angáatãnamú, grupo de percussão liderado por Éder O Rocha, e de lá
pro Estrela Brilhante, onde elas já tocavam. Walter França, mestre do baque do
Estrela na época, hoje mestre do Raízes de África, exige demais de todo mundo,
inclusive da gente, que sorte. Obrigada, Walter, sempre! No Estrela, me
aproximei dos bombos de macaíba que aprendemos a ocar, fazer aro, encourar e
afinar. Dois deles, feitos nessa época por Guga Peixoto, são os que toco ainda
hoje e já usava na Comadre Florzinha, banda com Renata Mattar, Telma César,
Isaar e Alessandra Leão. Um pouco antes de gravarmos o disco, em 1999, Maria
Helena Sampaio se juntou com a gente. Toquei com Erasto Vasconcelos, nosso Beta
Vovô, Renata também. Ele tinha mulheres na banda e o irmão, o querido Naná, também;
Lulu e Aninha o acompanhavam.
Eu ia pra roda de Dona Selma do Coco no Amparo, onde conheci a
grande Aurinha do Coco e sua filha Negadeza, neta de Selma, que hoje brilha
pelo mundo com seu gogó de ouro e seus tambores. Tinha o Rala Coco, com Isa Melo
e Lígia Verner, que cantavam com elas. Lá estavam dona Cila, o Raízes de
Arcoverde por todo canto, com as mestras Iran Calixto, Ilma (Pecon), Damares. E
mais coco, o Amaro Branco é onde tem, faz tempo, Dona Glorinha e Ana
Lúcia.
Uma
movimentação intensa começar e se espalhar vertiginosamente foi o que vi,
participei e entendi como uma coisa muito especial. Um manifesto importante
existiu, que representava as bandas ponta de lança dos microfones ligados pra
espalhar sua música de efeitos extraordinários em todo mundo que entrava em
contato com ela e expor, na base da poesia, a ligação dela com a cidade. E a
cidade estava fervendo, música de todo tipo, pra todos os lados, e muita gente
passava por ela, de dentro e de fora dela, do estado inteiro e de outros
estados. E a cidade cresceu... estufou de beleza.
Tudo começou num planeta sem internet, com panfletos, fanzines, fitas k7,
novidades chegando como fofocas preciosas, na base da orelha e do grito, troca
de ideias, escavação de sons antigos, alegrias e agonias na presença física,
conhecimentos que chegavam falados, na boca ao vivo. Eram muitos núcleos
criativos e eles conversavam entre si, criavam uma liga que permanece. Enquanto
uma cena dos palcos acontecia com força total, a força no chão também era imensa,
com os maracatus, caboclinhos, cocos, afoxés, cirandas. O MNU (Movimento Negro
Unificado) criou a Terça Negra.
Quem fica com o nome escrito na história e quem escreve? A
importância de uns não derrete a de outros, pelo contrário, ressalta tudo o que
se disse sobre esse movimento. Foi intenso e isso inclui muitas mulheres, em
várias frentes. Mas elas não estão com o nome gravado nesse lugar, ficam na
memória de quem estava lá e quanto mais tempo passa, mais se perde, a ponto de
muitas delas nem lembrarem mais onde exatamente estavam num fervo que começou
30 anos atrás e durou uns bons, sei lá, 10 anos? Se deres um google, não encontrarás quase nada. Se reparares nas comemorações, verás
majoritariamente homens e quase nenhuma mulher entre as que estavam lá, na
atividade, na movimentação intensa que, ainda bem, não cessou. O que os homens
que lá estavam conquistaram com a grandeza da arte que faziam e fazem está
guardado, lembrado, comemorado e que maravilha isso. E tinha mulher fabricando
raridades também, construindo pontes, pensando coisas, realizando junto, ao
mesmo tempo. Celebremos.
No
Balé Brasílica, filho do Balé Popular do Recife, conheci Amélia Veloso, com
quem aprendi e que formou, junto com Bernardino, o Nação Pernambuco, e Vilma
Carijó com seu Daruê Malungo, com mestre Meia Noite. Tinha mulheres também na
Cabra Alada, Márcia Araújo rainha desde antes; as pastoras do Véio Mangaba e
suas Pastoras endiabradas; nas produções, realizações, pensamentos,
cenografias, design de cartazes, na
música, nos figurinos, no cinema, estavam lá Sonally Pires, Sonaly Macedo,
Denize Barros, Mônica Rodrigues Fernandes, Melina Hickson, Valentina Trajano,
Carla Sarmento, Isabela Faria, Stella Zimmerman, Chica Mendonça, Katia Mesel,
Clarice Hoffmann, Aninha Z, Adelina Pontual, Cecília Araújo.
Maria
Duda Belém me entregou um panfleto de um show, na entrada de um mercado,
falando “é o trabalho de uns amigos que fazem um som fusion”... o resto é história. Nas artes plásticas, Oriana Duarte,
Renata Pinheiro, Juliana Notari e aqui vão faltar realmente muitas outras.
Entre os Moluscos Lama, estavam Lia Letícia nas artes visuais, ela hoje também
trabalha com Lia de Itamaracá (que é Lia de todos os movimentos), Lícia Jardim
nos Textículos de Mary, Renata Faccenda. Ainda nas produções, Paula de Renor,
Damiana Crivellare...
Stela
Campos, presença importante na cena, também Tania Christal trazendo música e
teatro misturados; Mônica Pantoja, Mônica Feijó, Fabiana Pirro, Christina
Jovita, da Tempo Nublado, Aline Feitosa e Iana Reckman no Kaya na Real, Daniela
Câmara no Zaratempô, Lucinha Guerra, Ana Miranda, DJ Lala K. Maíra Macedo no
cavaquinho e Moema Macedo no bandolim, Aglaia Costa na rabeca, Lourdinha
Nóbrega no sax. As Loucas de Pedra Lilás estavam pelas praças fazendo teatro feminista.
A Zabumba Velha do Badalo fazia São João no Poço da Panela. Quem viu o Majê
Molê não esquece. Mônica Lira! Maria Paula Costa Rêgo, o maracatu Badia, Beth
de Oxum, Ana Paula Guedes, cantora divina do afoxé Alafin Oyó. Tinha Márcia, da
Período Fértil, nos figurinos e também Andrea Monteiro. Michelle de Assumpção e
Adriana Dória Matos, jornalistas fundamentais, depois também Débora Nascimento
no bonde; Aninha de Fátima documentando tudo, Vládia Lima e Roberta Guimarães
fotografando. Renata Rosa chegou pra junto. Mestra Joana Cavalcante no final
dos anos 1990 já moía as coisas, com suas Filhas da Oxum Opará, na comunidade
do Bode, pra se tornar quem é hoje, a primeira mestra de uma nação de maracatu
de baque virado, o Encanto do Pina.
Fazer
lista de nomes é tarefa difícil. Sofro por antecedência, já que não vou nomear
todo mundo, por esquecimento na hora de escrever, por estar insegura em algumas
informações sobre algumas pessoas, pelo prazo de publicar.
Estou
trabalhando com minhas memórias e com fé que a covid não tenha estragado o que
me restou. Este é um texto a partir de onde eu estava, onde outras mulheres
estavam também, antes, durante e depois – comecei a tocar em 1993 e os
registros aqui são mais ou menos até 2000 –, num tempo em que relações de
amizade e arte criavam tecnologias na festa,
na busca de uma fala própria e reverberação, no meio do caos e da lama.
KARINA BUHR, cantora, compositora,
ilustradora, escritora e atriz. A artista fez parte dos maracatus Estrela
Brilhante e Piaba de Ouro e das bandas Comadre Fulozinha e Eddie. Com o
trabalho solo, lançou os discos Eu menti pra você, Longe de onde, Selvática e Desmanche. Em 2022, lançou seu primeiro romance, "Mainá". É
colunista da Continente Online, onde publica suas
crônicas mensalmente.
A luta
política na base da sociedade https://bit.ly/3FZNuve
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