Como
o capital socializa seus riscos
Eis o ardil do 0,1%: difundir ações e fundos de
investimentos, coletivizando corporações para que qualquer crise
signifique a quebra do sistema. Assim, podem chantagear Estado para que os
salvem da catástrofe que eles mesmos produziram
Eleutério F.
S. Prado/A Terra é Redonda
Muitos na esquerda estão preocupados: o espectro da crise e das perdas econômicas vultuosas paira mais uma vez sobre as economias capitalistas, principalmente no Ocidente. Mas os capitalistas, sempre no centro, na direita e mesmo na extrema direita, estão mais ou menos tranquilos. Por quê?
Michael Roberts escreveu recentemente um artigo sobre a atual crise financeira em que compara a política econômica nas grandes crises de 1929 e de 2008. Eis que, como se sabe, mas é sempre bom lembrar, ela mudou entre uma e outra de pouca água para muito vinho… e da melhor qualidade.
Diante do desastre que se anunciava em 1928, o então secretário do tesouro norte-americano, Andrew Mellon, elevou a taxa de juros e cortou a liquidez, recomendando que se deixasse os mercados se ajustarem por si mesmos, porque assim é que se deve proceder numa economia de mercado competitiva. As empresas fracas e as administrações incompetentes seriam assim saudavelmente eliminadas pela seleção natural que está implícita na concorrência capitalista.
Eis o “sábio” conselho que deu ao então Presidente Hoover: “O processo da crise vai “liquidar a mão-de-obra, liquidar as ações, liquidar os fazendeiros, liquidar os imóveis… isso eliminará a podridão do sistema. Os altos custos de vida cairão e a alta qualidade de vida virá. As pessoas vão trabalhar mais, viver uma vida mais moral. Os valores serão ajustados e as pessoas empreendedoras aprenderão com as pessoas menos competentes”.
Como se sabe, a purga do sistema resultou numa depressão que durou uma década e só foi realmente superada por meio da Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939. Após o fim do conflito bélico, em 1945, a economia capitalista ocidental, que então propiciava alta taxa de lucros e uma bela fronteira de acumulação, entrou numa fase de auge que foi chamada “era de ouro” do capitalismo. O gráfico em sequência conta essa história sinteticamente.
Na crise estagflacionária dos anos 1970, causada por uma forte queda da taxa de lucro em combinação com uma política trabalhista que tolerava e mesmo permitia o ativismo sindical, as políticas econômicas keynesianas e as políticas sociais de caráter socialdemocrata foram abandonadas.
Nos anos 1980, ascendeu então o chamado neoliberalismo cujo teor consiste em impor a lógica da competição aos trabalhadores em geral num sistema dominado por grandes empresas monopolistas que operam em âmbito mundial. Uma onda globalização propiciou, assim, a recuperação temporária da taxa de lucro, o que durou aproximadamente até o fim do século passado. A partir de 1997 essa taxa começou a cair e, assim, proveio um novo período que Michael Robert bem caracterizou como uma longa depressão.
Os ideólogos neoliberais, desde 1980, tem se valido da retórica liberalismo clássico para aliviar o Estado de seus compromissos com a sociedade, ou seja, com os trabalhadores e com os pobres em geral – pois, para eles, como se sabe, a sociedade não existe; o que existe são apenas os mercados e as famílias que buscam ambos, supostamente, a prosperidade. Mas isso não tem sido suficiente para elevar a taxa de lucro deprimida. Também com esse objetivo, o neoliberalismo propugna afoitamente pelas políticas de privatização das empresas públicas (e mesmo de certos bens comuns) e de desregulação do sistema financeiro ou sua regulação por representantes do próprio sistema financeiro (banco central independente).
Uma das caraterísticas marcantes de todo o período neoliberal consiste naquilo que é chamada vulgarmente de financeirização – eis que, sob o magnetismo desse termo, tem se solidificado uma percepção superficial do que está ocorrendo com o capitalismo.
No marxismo clássico, a exacerbação financeira está associada às três fases do ciclo econômico: prosperidade, crise e recuperação, mas, talvez, depressão. No princípio, a taxa de lucro se afigura promissora e, assim, aceleram-se os investimentos produzindo crescimento econômico elevado. Como esse processo é inerentemente desmedido, resulta em superacumulação que apenas se resolve por meio da crise e da destruição de capital.
Na segunda fase do processo, cai a taxa de lucro presente e futura, reduzem-se as possibilidades de investimento lucrativo, o que leva o capital a se concentrar ainda mais na esfera financeira. A crise atua, assim, para fazer a purga do capital industrial e financeiro excedente, o que permite, eventualmente, o recomeço do ciclo.
É isso que leva certos autores marxistas a dizerem que a dita “financeirização” não demarca uma nova época, menos ainda um novo capitalismo, pois consiste simplesmente na resposta do capital à fraca lucratividade. Mas aquilo que se chama também de “dominância financeira” já tem décadas e não pode ser explicada apenas desse modo. Ela ignora o longo prazo.
Ora, já não é mais verdade o que disse Karl Marx em sua obra maior, ou seja, que o capital cria barreiras para si mesmo, supera essas barreiras para criar novas e maiores barreiras. Eis que, desde as últimas duas décadas do século XX, o capital não tem mais conseguido superar os entraves que ele põe historicamente para si mesmo.
Há uma necessidade crescente de bens públicos que não podem ser fornecidos porque isso reduz a taxa de lucro. A produção se tornou transnacional, mas não há um Estado mundial para criar as condições externas da acumulação. A produção capitalista usa e abusa da natureza humana e não humana; agora, as crises ecológicas e humanitárias persistem sem solução. A dominação financeira se afigura como definitiva e isso implica que as crises não podem mais serem resolvidas por meio da destruição de capital. Em consequência, a estagnação secular pinta no horizonte do capitalismo.
Como Marx explicou em O capital, se o capitalismo é baseado na propriedade privada dos meios de produção e da capacidade de investimento, desenvolve-se nele desde sempre uma tendência de coletivização da propriedade das empresas. E ela acontece agora por meio da difusão do capital acionário e capital reunido em grandes fundos de investimento. Nesse processo, agora bem adiantado, propriedade do capital se torna, assim, cada vez mais socializada.
Com o evolver do capitalismo, o capital privado é transformado em capital social, ou seja, em “capital de indivíduos diretamente associados”. Assim se dá, segundo Marx, “a suprassunção do capital como propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção”. A administração das empresas se modifica. O comando dos processos produtivos, administrativos e comerciais passa a ser feita por gerentes e o comando do destino do capital se torna agora um privilégio dos capitalistas donos do dinheiro, ou seja, dos capitalistas financeiros.
Entende-se, assim, por que há uma forte resistência a permitir a desvalorização do capital industrial e financeiro acumulado no passado quando sobrevêm as crises. Não se trata apenas da enorme extensão e profundidade da derrocada que a crise pode produzir. Se o sistema econômico está fundado principalmente na propriedade privada individual, as perdas serão também sempre individuais; porém, quando esse sistema passa a se fundar de modo importante na propriedade social, ou seja, na associação de capitalistas monetários, as perdas se tornam coletivas, tornando-se, assim, politicamente incompatíveis com a sobrevivência do capitalismo.
A dominância financeira, assim como a crise climática, a globalização contraditória e a sobrecarga do Estado etc. indicam que o capitalismo entrou em seu ocaso. Sobreviverá a humanidade ou ela morrerá junto com ele? A resposta a essa questão se encontra nas lutas políticas, na luta entre um novo esclarecimento e o negacionismo, na capacidade de enfrentar aqueles que se beneficiam de um capitalismo decadente.
Assim, se explica também porque o espectro da crise assusta mais na esquerda do que na direita. O socialismo do capital promove um duplo regime de concorrência: desproteção máxima possível para os trabalhadores atrelados, assalariados ou não, ao sistema e para os pequenos capitais; mínimas para o grande capital. Os Estados nacionais protegem os capitalistas na eclosão das crises, mas torna a vida dos trabalhadores em geral cada mais difícil. Para os donos do dinheiro, os choques – como Naomi Klein chamou a atenção – são oportunidades para apertar ainda mais os debaixo e impor as normas concorrenciais – e associais – do neoliberalismo.
Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).
Pesquisadores acreditam que há
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