Transição não é terra sem lei
Lula tem respaldo jurídico
para exigir dados e cooperação técnica desde já
Rafael Mafei, Folha
de S. Paulo
A demora inédita em o
presidente Jair Bolsonaro (PL) reconhecer sua derrota nas eleições,
quando ela já era admitida até mesmo por
aliados muito próximos seus, somada a seu histórico de
comportamento hostil a regras comezinhas da civilidade democrática, gera
apreensão sobre seu comportamento até o final do mandato. Que mecanismos temos
para nos defender de um presidente que se recuse a cooperar com a transição ao próximo
governo, que obteve uma vitória incontestável nas urnas?
A primeira coisa a se ter clara é que nem a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nem sua posse em
1º de janeiro, dependem de qualquer ato de Bolsonaro. Quem proclama o vencedor
das eleições é o Tribunal Superior Eleitoral, e quem dá posse ao eleito é o
Congresso Nacional. Ambas as instituições, por seus respectivos presidentes, já
felicitaram Lula pela vitória de domingo (30).
A passagem de faixa, que festeja a transição civilizada
entre governos democraticamente eleitos, é uma solenidade de forte simbologia,
mas não é condição para a investidura do novo presidente. Se Bolsonaro
confirmar a pequenez que dele se espera e não comparecer à cerimônia de posse
de Lula, repetindo o gesto mesquinho do general
João Figueiredo na posse de José Sarney, nem o país ficará surpreso
nem o mandato de Lula restará de qualquer forma afetado.
Mesmo que Bolsonaro escolha impugnar a vitória de Lula na
Justiça Eleitoral, repetindo o gesto de Aécio Neves (PSDB) em 2014, a medida
não tem o poder de impedir a transição para o novo governo. Nesse caso, seus
apoiadores não devem sequer sonhar com a possibilidade de êxito da medida —não
apenas pela falta de qualquer indício de irregularidade na vitória de Lula como
também porque o principal instrumento para a prática de abuso de poder, que é o
controle da máquina pública, estava sob o controle de Bolsonaro, não do
presidente eleito.
Nessa seara, aliás, o mais esperado é que o TSE reconheça os
diversos usos impróprios dos poderes da Presidência da República pelo atual
presidente: desde a convocação abusiva de embaixadores para espalhar delírios
golpistas até as ações da Polícia Rodoviária
Federal em locais que parecem ter sido escolhidos a dedo para
prejudicar o comparecimento do voto lulista às urnas no domingo. Se isso
ocorrer, Bolsonaro será declarado inelegível por oito anos, como manda a lei.
Por sorte, o Brasil tem a herança institucional deixada por Fernando Henrique Cardoso (PSDB),
político maiúsculo de nossa época não apenas no presente, quando juntou-se à frente
ampla para salvar a democracia brasileira, mas também no
passado, pouco antes da primeira vitória presidencial de Lula.
Em 25 de outubro de 2002, dois dias antes da votação de segundo
turno que confirmou a vitória do candidato petista sobre José Serra,
correligionário de FHC, o então presidente editou uma medida provisória
disciplinando o governo de transição. Era evidente que o novo regramento visava
a dar garantias públicas em benefício de Lula, candidato de oposição ao governo
FHC.
A medida, depois convertida em lei que ainda
hoje está vigente, dá ao presidente eleito o direito de instituir
uma equipe de transição, comandada por um coordenador, que pode se integrar
imediatamente aos diversos órgãos da administração pública federal, obtendo
dados sobre contas públicas e programas em curso a fim de viabilizar os
primeiros atos do novo governo. A lei obriga os atuais titulares dos órgãos
federais a prestar todo apoio técnico e administrativo requisitado pelos
membros da equipe de transição.
Qualquer recusa ou desídia em fazê-lo sujeitará os atuais
ocupantes dos ministérios e secretarias, que são em grande parte servidores
públicos de carreira, a processos disciplinares. A cooperação, porque
determinada por lei, poderá ser facilmente exigida judicialmente, sob pena de
crime de desobediência.
Eventual tentativa de apagamento ilegal de dados deixará
vestígios que poderão levar à responsabilização subsequente de quem a executar.
Claro que Bolsonaro poderá se esforçar para
atrapalhar, mas há mecanismos jurídicos para nos defendermos de suas
derradeiras investidas ilegais. A transição de governo não é terra sem lei.
A gente se encontra em várias trincheiras https://bit.ly/3vhYCww
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