Por
que as crenças não morrem – ou o efeito “apito de cachorro”
Os seguidores do atual presidente Jair
Bolsonaro, quando confrontados com a quebra de sua crença na reeleição,
experimentaram a chamada dissonância cognitiva
Laura de Azevedo Marques e Rômulo Monteiro
Garzillo, Le Monde Diplomatique
Em
meados de 1955, o renomado psicólogo social Leon Festinger infiltrou-se em uma
célula da seita The Seekers, liderada por Dorothy Martin, a qual alegava ter
recebido uma mensagem do planeta Clarion de que um disco voador busc aria seus
seguidores para salvá-los de uma imensa inundação prevista para acontecer na
aurora do dia 21 de dezembro de 1954. A crença falhou.
O objetivo de Festinger era estudar o fenômeno psicológico
por ele batizado de “dissonância
cognitiva”. Em resumo, dissonância
cognitiva é o que acontece quando pessoas que acreditam muito em algo são
contrariadas pela realidade. Como quando uma pessoa que acredita profundamente
que seu candidato vai ganhar as eleições (a despeito de pesquisas eleitorais e
outros dados objetivos) e no fim ele é derrotado. Ou quando alguém acha que um
disco voador vai aterrizar em sua casa, mas nada acontece.
A imersão de Festinger na seita dos Seekers concluiu que
quando crenças muito consolidadas se veem refutadas por evidências externas que
demonstram que a convicção era equivocada, isso gera a chamada dissonância
cognitiva – que é, em última análise, o conflito entre duas cognições: uma
informação nova e uma crença já estabelecida.
Ocorre
que o cérebro humano não é muito bem equipado para lidar com esse conflito.
Segundo Festinger, são três as formas de eliminar a dissonância: i) o
indivíduo tenta substituir uma ou mais crenças, opiniões ou comportamentos que
estejam envolvidos na dissonância; ii) o indivíduo tenta
adquirir novas informações ou crenças que irão aumentar a consonância; e iii) o
indivíduo tenta esquecer ou reduzir a importância daquelas cognições que mantêm
a situação de dissonância.
E é exatamente esse o fenômeno que assistimos desde que foi
declarada a vit&oa cute;ria de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições do
último dia 30 de outubro. Os seguidores do atual presidente Jair Bolsonaro,
quando confrontados com a quebra de sua crença na reeleição, experimentaram a
chamada dissonância cognitiva. Buscam, agora, formas de mitigar aludida dissonância.
O pronunciamento oficial do presidente não reeleito funcionou
como um apito de cacho rro para esses ouvidos atentos.
Assim como a ferramenta de adestramento – a qual só pode ser ouvida pelos
caninos –, a declaração de Jair ressoou apenas naqueles que buscam revalidar
suas crenças e esquecer ou reduzir a importância das informações confrontantes.
Enquanto a maioria de nós ouviu apenas três minutos de um
candidato derrotado que não consegue seguir o protocolo democrático do país, os
cérebros em dissonância escutam que “os movimentos populares são fruto de
indignação e de sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral”.
Está dada, assim, a nova crença que apazigua os cérebros em sofrimento.
Em dezembro de 1954, a nave extraterrestre não veio para
buscar os seguidores da sei ta The Seekers. Às 5h da manhã, a líder Dorothy
Martin pegou lápis e papel e disse que tinha um novo recado do planeta Clarion:
segundo ela, deus tinha resolvido salvar a Terra da iminente enchente, graças
àquelas pessoas de fé que haviam se reunido. Todos se deram por satisfeitos com
a resposta e a crença seguiu.
Agora, em outubro de 2022, eleitores de Jair Bolsonaro
recebem seu posicionamento dú bio como um aceno de que o mito não morreu, de
que eles seguem unidos pela indignação e sentimento de injustiça de como se deu
o processo eleitoral. E parece ser o suficiente para apaziguar a dissonância
cognitiva e manter a crença viva.
. Laura de Azevedo Marques< /strong> é advogada criminalista, sócia do
escritório Madi Rezende Advogados, pós-graduada em Processo Penal pelo
Instituto de Direito Penal Económico Europeu em parceria com o Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante do Instituto de Defesa do Direito
de Defesa, do IBCCRIM e do Innocence Project Brasil.
. Rômulo Monteiro Garzillo é mestre em
Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), professor de Direito Constitucional da Faculdade Nove de Julho,
membro e um dos fundadores do grupo de pesquisa Sistema de Justiça e Estado de
Exceção e autor do livro Elementos autoritários em Carl Schmit
Leia também: Suplantar a cultura do ódio é uma luta de longo curso https://bit.ly/3Us8tfj
Nenhum comentário:
Postar um comentário