10 novembro 2022

Qual futebol brasileiro?

Existe um futebol “genuinamente” brasileiro?

Em 2022, seleção vai conviver com a mesma exigência que recaiu sobre as campanhas anteriores em Mundiais.
Helcio Herbert Neto, Le Monde Diplomatique

 

Na segunda-feira, dia 7, a convocação final da seleção brasileira para a Copa do Mundo do Catar será anunciada e os jogadores serão colocados diante da obrigação primordial. Mesmo com a goleada por 5 a 1 contra a Tunísia, no último amistoso da preparação para o torneio mais importante do calendário, ressurgiu a imposição. Antes de Tite, os treinadores Felipão, Dunga e Parreira e seus respectivos comandados se depararam com o mesmo imperativo nos Mundiais de 2014, 2010 e 2006. Os anteriores também. Todos enfrentaram a mesma ambígua missão – jogar bonito, de acordo com o suposto estilo genuinamente nacional.

Torcedor quer festa. Mais gols, mais vitórias, mais dribles. E é justo que assim seja. O mercado publicitário, entretanto, constantemente evoca, em campanhas centradas nas estrelas brasileiras em Mundiais, essa necessidade. A cobertura esportiva se apega a isso, não apenas durante o período de disputa da competição, a cada quatro anos. Haveria, nessa perspectiva, uma forma específica de atuar, com a bola nos pés, para aqueles nascidos nos 8.516.000 km² do território do país.

De tão insondável, a hipótese de um futebol com assinatura brasileira nem pode ser testada. Nada ampara essa ideia que, mencionada com tanta frequência, poucas vezes é colocada em questão. Mais importante do que a pertinência ou não da defesa de um modo peculiar de jogar a modalidade são as suas consequências: a imprensa esportiva ganhou identidade, por exemplo, com essa proposta. Ex-jogadores, acadêmicos de Direito e jornalistas encontraram assim certa coesão nas redações a partir do século XX.

A defesa desse patrimônio nacional fundamentou a retórica nos veículos de radiodifusão. Seus desdobramentos políticos são mais interessantes. Entram em jogo personagens ainda mais exóticos: de filósofo alemão de fim de século a sociólogo brasileiro, acompanhados por dramaturgo controverso e empresário da comunicação. Sai desse estranho conjunto a sustentação – que dificilmente poderia ser chamada de teórica – dessa abstração de um estilo genuinamente brasileiro no futebol.

O artigo “Foot-ball Mulato” foi publicado por Gilberto Freyre no Diário de Pernambuco em 1938. O texto é entendido por muitos como o marco inicial da ideia de um futebol brasileiro, que se distinguiria dos demais por sua capacidade de sintetizar dança e jogo. A publicação veio a público durante a edição da Copa do Mundo do mesmo ano, sob a euforia de uma vitória sobre a seleção da Tchecoslováquia. O resultado permitiria ainda sonhar com a primeira conquista no torneio. O título não veio.

O texto se esforça para diferenciar o desempenho da equipe, à época liderada por jogadores como Leônidas da Silva e Domingos da Guia, de um estilo obtuso presente nos países do hemisfério norte. Em paralelo à valorização nacional – e ao proselitismo pela categoria de mulato –, Freyre atacou o socialismo. É significativo que no artigo em que são estipulados os parâmetros para o ideal do futebol verdadeiramente brasileiro haja críticas tão explícitas às esquerdas. E não seria um fato solitário.

Para fundamentar a interpretação salvacionista da miscigenação e de suas implicações para o futebol, o texto faz referência às leituras a respeito da mitologia grega do então jovem filólogo Friedrich Nietzsche. Seus primeiros trabalhos eram profundamente inspirados pelo mais radical germanismo: as defesas anteriores de um nacionalismo alemão intolerante e antissemita são inclusive criticadas pelo próprio filósofo, às vésperas de seu colapso, em publicações posteriores.

São famosas as releituras desse legado pelo nazismo. Apenas para ficar entre os mais citados filósofos alemães dos últimos séculos: Martin Heidegger, em sua posse como reitor da universidade de Freiburg, durante o período em que Hitler liderava o país, citou trechos da filosofia nietzscheana. Tudo isso ao som dos aplausos de apoiadores do Terceiro Reich. Àquela altura, o escritor que havia influenciado a interpretação estética de Freyre sobre o futebol brasileiro já estava morto.

O sociólogo brasileiro foi um grande entusiasta do escritor Mario Filho – um dos maiores jornalistas esportivos brasileiros da história. O empresário, que comandou o Jornal dos Sports, sempre se manteve muito próximo à mestiçagem exaltada por Freyre. Com a vasta abrangência que seus textos alcançaram, também se tornou muito influente. É inegável a admiração que seu irmão, o dramaturgo, cronista e comentarista esportivo Nelson Rodrigues, nutria pelo executivo de comunicação.

A importância é tamanha que Filho dá, atualmente, nome ao estádio Maracanã. Essas aproximações ajudam a explicar como a defesa de um genuíno modo de praticar o esporte se consolidou. Ao mesmo tempo, colaboram para que os constantes e reativos usos políticos do futebol no Brasil sejam entendidos – especialmente, nos últimos anos, pela extrema direita. Eis que surge um drible de corpo: muitos desses elementos são reivindicados em contrapartida com propósitos coletivos, iconoclastas e revolucionários.

Autores diametralmente contrários a esse nacionalismo mais hidrófobo retomam pontos do pensamento de Gilberto Freyre para propor outro país. Darcy Ribeiro se destaca nesse sentido. Até textos de Nietzsche ressurgem, a partir dos anos 1960, em pautas sociais. Há expressões disso pelo mundo e também no Brasil. A camisa da seleção, os times que a vestem e a constelação que compõe o futebol brasileiro estão em jogo. Embora pareça recente, a disputa é secular.

Quando surge a pressão para jogar bonito, com dribles e placares elásticos, é difícil que tantos embates históricos venham à mente de Tite. É menos provável que algo dessa herança esteja entre as ponderações para definir quem vai à Copa no Catar. Na comunidade esportiva, na televisão ou no rádio, o debate normalmente se resume a esquemas táticos. É comum ainda que as discussões se concentrem no comportamento dos jogadores, suas capacidades físicas ou disposições ofensivas. Mas existem tradições sociais, culturais e políticas em colisão quando o futebol brasileiro entra em pauta.

A lista de autores decisivos para essa concepção de futebol e as suas noções, por vezes datadas, parecem muito distantes do som da bola na rede ou do canto das torcidas. Não obstante, ao longo da campanha brasileira no Catar, esses temas vão ecoar em Copa: futebol e política. A seção é atualizada semanalmente na versão online de Le Monde Diplomatique Brasil e vários desses aspectos continuarão a reverberar até o fim do Mundial, em um instante em que a próprio conceito de Brasil está em xeque.

Helcio Herbert Neto, jornalista e filósofo, é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. Pesquisador do campo da cultura popular, é o autor do livro “Conte comigo: Flamengo e democracia”, lançado também em 2022.

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