Existe um futebol “genuinamente” brasileiro?
Em 2022, seleção vai conviver com a mesma exigência que recaiu sobre
as campanhas anteriores em Mundiais.
Helcio
Herbert Neto, Le Monde Diplomatique
Na
segunda-feira, dia 7, a convocação final da seleção brasileira para a Copa do
Mundo do Catar será anunciada e os jogadores serão colocados diante da
obrigação primordial. Mesmo com a goleada por 5 a 1 contra a Tunísia, no
último amistoso da preparação para o torneio mais importante do calendário,
ressurgiu a imposição. Antes de Tite, os treinadores Felipão, Dunga e Parreira
e seus respectivos comandados se depararam com o mesmo imperativo nos Mundiais
de 2014, 2010 e 2006. Os anteriores também. Todos enfrentaram a mesma ambígua
missão – jogar bonito, de acordo com o suposto estilo genuinamente nacional.
Torcedor
quer festa. Mais gols, mais vitórias, mais dribles. E é justo que assim seja. O
mercado publicitário, entretanto, constantemente evoca, em campanhas centradas
nas estrelas brasileiras em Mundiais, essa necessidade. A cobertura esportiva
se apega a isso, não apenas durante o período de disputa da competição, a cada
quatro anos. Haveria, nessa perspectiva, uma forma específica de atuar, com a
bola nos pés, para aqueles nascidos nos 8.516.000 km² do território do país.
De
tão insondável, a hipótese de um futebol com assinatura brasileira nem pode ser
testada. Nada ampara essa ideia que, mencionada com tanta frequência, poucas
vezes é colocada em questão. Mais importante do que a pertinência ou não da
defesa de um modo peculiar de jogar a modalidade são as suas consequências: a
imprensa esportiva ganhou identidade, por exemplo, com essa proposta.
Ex-jogadores, acadêmicos de Direito e jornalistas encontraram assim certa
coesão nas redações a partir do século XX.
A defesa desse patrimônio nacional fundamentou a retórica
nos veículos de radiodifusão. Seus desdobramentos políticos são mais
interessantes. Entram em jogo personagens ainda mais exóticos: de filósofo
alemão de fim de século a sociólogo brasileiro, acompanhados por dramaturgo
controverso e empresário da comunicação. Sai desse estranho conjunto a
sustentação – que dificilmente poderia ser chamada de teórica – dessa abstração
de um estilo genuinamente brasileiro no futebol.
O
artigo “Foot-ball Mulato” foi publicado por
Gilberto Freyre no Diário de Pernambuco em 1938. O texto é
entendido por muitos como o marco inicial da ideia de um futebol brasileiro,
que se distinguiria dos demais por sua capacidade de sintetizar dança e jogo. A
publicação veio a público durante a edição da Copa do Mundo do mesmo ano, sob a
euforia de uma vitória sobre a seleção da Tchecoslováquia. O resultado
permitiria ainda sonhar com a primeira conquista no torneio. O título não veio.
O
texto se esforça para diferenciar o desempenho da equipe, à época liderada por
jogadores como Leônidas da Silva e Domingos da Guia, de um estilo obtuso
presente nos países do hemisfério norte. Em paralelo à valorização nacional – e
ao proselitismo pela categoria de mulato –, Freyre atacou o socialismo. É
significativo que no artigo em que são estipulados os parâmetros para o ideal
do futebol verdadeiramente brasileiro haja críticas tão explícitas às
esquerdas. E não seria um fato solitário.
Para
fundamentar a interpretação salvacionista da miscigenação e de suas implicações
para o futebol, o texto faz referência às leituras a respeito da mitologia grega do
então jovem filólogo Friedrich Nietzsche. Seus primeiros trabalhos eram
profundamente inspirados pelo mais radical germanismo: as defesas anteriores de
um nacionalismo alemão intolerante e antissemita são inclusive criticadas pelo
próprio filósofo, às vésperas de seu colapso, em publicações posteriores.
São
famosas as releituras desse legado pelo nazismo. Apenas para ficar entre os
mais citados filósofos alemães dos últimos séculos: Martin Heidegger, em sua
posse como reitor da universidade de Freiburg, durante o período em que Hitler
liderava o país, citou trechos da filosofia nietzscheana. Tudo isso ao som
dos aplausos de apoiadores do Terceiro Reich.
Àquela altura, o escritor que havia influenciado a interpretação estética de
Freyre sobre o futebol brasileiro já estava morto.
O
sociólogo brasileiro foi um grande entusiasta do escritor Mario Filho – um dos
maiores jornalistas esportivos brasileiros da história. O empresário, que
comandou o Jornal dos Sports, sempre se manteve muito próximo à
mestiçagem exaltada por Freyre. Com a vasta abrangência que seus textos
alcançaram, também se tornou muito influente. É inegável a admiração que seu
irmão, o dramaturgo, cronista e comentarista esportivo Nelson Rodrigues, nutria
pelo executivo de comunicação.
A
importância é tamanha que Filho dá, atualmente, nome ao estádio Maracanã. Essas aproximações ajudam a explicar como a
defesa de um genuíno modo de praticar o esporte se consolidou. Ao mesmo tempo,
colaboram para que os constantes e reativos usos políticos do futebol no Brasil
sejam entendidos – especialmente, nos últimos anos, pela extrema direita. Eis que surge um drible de
corpo: muitos desses elementos são reivindicados em contrapartida com
propósitos coletivos, iconoclastas e revolucionários.
Autores
diametralmente contrários a esse nacionalismo mais hidrófobo retomam pontos do
pensamento de Gilberto Freyre para propor outro país. Darcy Ribeiro se destaca
nesse sentido. Até textos de Nietzsche ressurgem, a partir dos anos 1960, em
pautas sociais. Há expressões disso pelo mundo e também no Brasil. A camisa da
seleção, os times que a vestem e a constelação que compõe o futebol brasileiro
estão em jogo. Embora pareça recente, a disputa é secular.
Quando
surge a pressão para jogar bonito, com dribles e placares elásticos, é difícil
que tantos embates históricos venham à mente de Tite. É menos provável que algo
dessa herança esteja entre as ponderações para definir quem vai à Copa no
Catar. Na comunidade esportiva, na televisão ou no rádio, o debate normalmente
se resume a esquemas táticos. É comum ainda que as discussões se concentrem no
comportamento dos jogadores, suas capacidades físicas ou disposições ofensivas.
Mas existem tradições sociais, culturais e políticas em colisão
quando o futebol brasileiro entra em pauta.
A
lista de autores decisivos para essa concepção de futebol e as suas noções, por
vezes datadas, parecem muito distantes do som da bola na rede ou do canto das
torcidas. Não obstante, ao longo da campanha brasileira no Catar, esses temas
vão ecoar em Copa: futebol e política. A seção é atualizada
semanalmente na versão online de Le Monde Diplomatique Brasil e
vários desses aspectos continuarão a reverberar até o fim do Mundial, em um
instante em que a próprio conceito de Brasil está em xeque.
Helcio
Herbert Neto, jornalista e filósofo, é doutor pelo Programa de
Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da UFF. Pesquisador do campo da cultura popular, é
o autor do livro “Conte comigo: Flamengo e democracia”, lançado também em 2022.
Leia também: Seleção brasileira será convocada amanhã. Quem irá à Copa? https://bit.ly/3WBtbuU
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