Lembrança de Tenerá
Rubem Braga
O recorte de um jornal de Campos me
traz a notícia da morte de um tipo de rua, conhecido na grande cidade
fluminense como Rin-Tin-Tin. Teria mais de cem anos e alegava ter tomado parte
na Guerra de Canudos.
Seu nome verdadeiro ninguém sabe; mas
o jornal diz que ele é o mesmo homem conhecido em Cachoeiro de Itapemirim como
Tenerá. É possível que tivesse outros nomes em outras cidades, pois um pouco
por toda parte ele aparecia sem dizer de onde vinha; e depois sumia sem avisar
para onde ia.
Tenerá era alto, de uma gordura
desajeitada de distrofia glandular, e tinha uma cara enorme de índio tapuia,
uma cara vincada e terrosa, de jenipapo maduro. Vestia-se com extravagância de
apalache, andava sério e lento, apregoando o Correio do Sul ou algum avulso de
propaganda de casa comercial. Fora disto pegava alguns cobres amestrando cães:
ensinava um pobre vira-lata a sentar, deitar, carregar coisas, seguir as ordens
do dono e até a dançar sobre as patas traseiras.
Durante algum tempo Tenerá morou com
seus cachorros nos baixos do prédio da Farmácia Central, que era de parentes
meus. Os fundos davam para o rio, e havia, entre os pilares que sustentavam o
prédio, muito espaço para o homem e seus cães.
Durante algum tempo trabalhei na
farmácia, para ter algum dinheirinho meu. Lavava vidros com grãos de chumbo,
entregava uma ou outra encomenda mais urgente, ajudava no balcão — e se não
cheguei a ser uma glória da farmacologia brasileira pelo menos aprendi a fazer
Limonada Purgativa e Água Vienense.
Outras receitas mais complicadas o
farmacêutico aviava; eu o via com respeito misturar líquidos, e pesar pós ou
colar rótulos e fazer sobre a rolha do frasco aquele pequeno capuz de papel
plissado amarrado ao gargalo com um barbante. Nunca fui hábil nisso, e minha
mão era estabanada mesmo para rolar pílulas e misturar pomadas com a espátula;
só uma vez, com emoção, trabalhei com o almofariz.
Gostoso era ajudar a abrir os grandes
caixotes de remédios vindos do Rio; sempre traziam algum material de propaganda
colorido, cartazes, folhetos, almanaques, brindes. Mesmo a nova embalagem de
uma droga antiga era algo que me dava prazer.
Minhas relações com Tenerá ficaram
então mais estreitas; deslumbrei-o certa vez com a mágica fácil de derramar
algumas gotas de glicerina sobre lima-lhas de permanganato: aquela combinação
de duas coisas frias resultando em fogo e estalidos me deu a seus olhos um
prestígio de jovem cientista. Nas horas de folga, eu e o primo Costinha nos
divertíamos, às vezes, de uma janela que dava para o rio, a atirar de Flaubert
nos camaleões que apareciam lá embaixo, nas pedras do rio. Isto inquietava o
Tenerá, por si mesmo e pelos seus cães.
Viveu muitos anos em Cachoeiro e se
atribuía de certo modo todos os melhoramentos que a cidade teve depois de sua
chegada: “Quando eu cheguei aqui não havia isso nem aquilo…”
É verdade que muitos políticos fazem
coisa idêntica em relação aos progressos deste pobre Brasil, que vai para a
frente, mesmo porque é este o seu jeito e rumo.
Só vi Tenerá fazer pouco de Cachoeiro
uma vez. Foi quando por algum motivo o prenderam e o puseram a capinar o pátio
em frente à cadeia velha. Trabalhando ao sol, ele dizia bem alto, para que o
delegado e todos ouvissem: — Eu já estive preso em cadeia muito melhor do que
esta. Muito melhor do que esta porcaria!
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