11 outubro 2025

Uma crônica de Ruy Castro

Besteiróis da IA
Para ela, não escrevi a biografia de Nelson Rodrigues, mas de Nelson Cavaquinho. E se o herói de meu livro "Bilac Vê Estrelas" deixar de ser Olavo Bilac e se tornar Olavo de Carvalho?
Ruy Castro/Folha de S. Paulo  


Em passagem distraída pela internet, esbarrei num verbete a meu próprio respeito produzido pela inteligência artificial. O texto me classificou como autor de biografias. Até aí, tudo bem. Só que das biografias de Carmen MirandaGarrincha e Nelson Cavaquinho. Ao me ver atribuída a biografia do maravilhoso sambista, autor de "A Flor e o Espinho", enrubesci. Não tenho essa honra, e não por falta de admiração por Nelson. Não apenas o conheci como, na flor dos 19 anos, bebi com ele algumas vezes num botequim da Lapa –ele, cachaça; eu, Crush. Mas a vida tem seus desígnios e acabei mesmo como biógrafo de Nelson Rodrigues, não Cavaquinho.

Tal besteirol não é privilégio da IA. Em 1992, quando saiu meu livro "O Anjo Pornográfico", um repórter de TV, ao me entrevistar, perguntou: "E então, Ruy, fale-me de seu livro sobre o Nelson Gonçalves". Não resisti: "Não é sobre o Nelson Gonçalves. É sobre o Nelson Ned." O repórter não se deu por achado e falei de Nelson Ned como o autor de "Vestido de Noiva". E, se ele não tivesse confundido o Rodrigues com o Gonçalves, poderia ter sido com o Nelson Motta ou o Nelson Sargento.

Hoje, com as barbas de molho, estou à espera de que a IA me defina como biógrafo não de Carmen Miranda, mas de outras grandes Carmens brasileiras –entre elas, Carmen Santos, cineasta pioneira; Carmen Costa, sambista, cantora de "Está Chegando a Hora"; Carmen Veronica, monumental vedete dos anos 1960, nunca superada; Carmen Portinho, brava urbanista, educadora e feminista; e a ministra Cármen Lúcia, do STF, que garantiu nossa liberdade de trabalho como biógrafos com seu imortal "Cala a boca já morreu".

Em biografia ou ficção, tratei de muita gente que admiro. Um deles, o poeta Olavo Bilac, protagonista de meu romance "Bilac Vê Estrelas". E se a IA o confundir com o falecido astrólogo fascista Olavo de Carvalho? Como levar aos tribunais, em defesa da honra, uma "ferramenta" que, por ser artificial, não existe na vida real?

Garrincha, por sorte, só existe um.

Veja: Chico Pinheiro entrevista Cida Pedrosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/chico-pinheiro-entrevista-cida-pedrosa.html

Nenhum comentário: