FILME IMPOSSÍVEL
Transcorrido e filmado durante a
pandemia, Mundo Novo tem características de obra inaugural do
cinema brasileiro produzido na crise sanitária
Eduardo Escorel, revista piauí
Considerado uma
“impossibilidade”, informam os créditos finais de Mundo
Novo (2021), o projeto acabou se tornando um
filme graças a “todos aqueles que somaram”, inclusive o apoio da Lei Aldir
Blanc. Escrito por Álvaro Campos e elenco, dirigido também por Campos e
produzido por Diogo Dahl, o que parecia inexequível será exibido sexta-feira
(17/12) no Festival do Rio, após ter participado da 45ª Mostra Internacional de
Cinema, em São Paulo, no final de outubro.
Em e-mail há uma semana,
Campos escreveu: “o fato é que em 2021 juntei uma equipe do Morro do Vidigal e
atores desconhecidos pra gravar um longa em plena pandemia. Em seis dias. Com
70 mil reais. E por milagre ele aconteceu e ganhou espaço, mesmo que filmado no
estilo da guerrilha que aprendi na EICTV [Escola Internacional de Cinema e
Televisão] de Cuba”. Nas palavras do diretor, é “um filme simples. E rico só de
sinceridade”.
Ser simples é uma das
virtudes de Mundo Novo que, de fato,
transborda sinceridade. Mas vai além. A começar pelo fato de ser um dos
primeiros, se não for o primeiro, filmes de ficção brasileiros gravados durante
a pandemia cujo enredo não só transcorre durante a crise sanitária, mas
incorpora como prática corriqueira os procedimentos pessoais surgidos em
decorrência da propagação da Covid-19 – os personagens além de usarem máscara
seguem os demais protocolos sanitários básicos. Mundo
Novo adquire assim características
de obra inaugural. Não tem origem na era a.P. (antes da pandemia) nem sofre de
envelhecimento precoce, como acontece com parte considerável da produção a que
temos assistido desde 2020.
Ter
sido realizado além do mais com rapidez, e por custo de produção baixíssimo, é
outro feito de alto mérito. Apesar das dificuldades decorrentes da pandemia,
incluindo a paralisia da produção audiovisual e o emperramento burocrático dos
meios de apoio ao setor, Campos e a equipe de Mundo Novo demonstraram que fazer cinema independente pode ser uma atividade vital,
ou seja, necessária para a manutenção da vida. A existência do filme reafirma o
óbvio que tem sido desconsiderado – o exercício profissional, inclusive para
artistas e técnicos, mulheres e homens, é um direito fundamental e condição de
sobrevivência a ser garantida e respeitada.
Quanto
ao filme em si, não lhe faltam qualidades específicas, sem as quais não
passaria de um caso circunstancial instigante. Com apuro visual resultante da alta
qualidade da fotografia em preto & branco de Rita Albano, locações bem
escolhidas e elenco de talento formado com nomes pouco conhecidos, Mundo
Novo oferece, como pano de fundo, visão realista
de uma área circunscrita da Zona Sul do Rio de Janeiro, na qual o Vidigal e o
Leblon, o morro e a planície, ambos diante do mar, se contrapõem também em
termos sociais. É nesse cenário que o pequeno grupo de personagens se
movimenta, convive, conversa, diverge, concorda, discute, briga etc.,
instigados pelo desejo que Cons (Tati Villela), advogada, e Marcelo/Presto
(Nino Batista), artista grafiteiro, têm de comprar um apartamento para morar no
Leblon.
Quase tudo se passa no
alto do Morro do Vidigal, onde fica o atraente casarão onde moram Charles (Kadu
Garcia), que trabalha no mercado financeiro e é irmão mais velho de
Marcelo/Presto, e Carlos (Paulo Giannini), livreiro. Com vários níveis,
escadarias, muitos cômodos e terraços, o imóvel reflete o embate dos diversos
pontos de vista e interesses dos integrantes do grupo, sem maniqueísmos, nem
interpretações caricatas. Some-se a isso o final aberto, sem resolução, e nos
vemos diante de uma estrutura dramática verdadeiramente moderna, pouco usual no
nosso cinema.
Resta especular sobre o
sentido do título Mundo Novo. Terá sido a pandemia
que mudou o mundo e “não tem mais volta, não”, como Marcelo/Presto diz para
Cons sentado na mureta, com o Vidigal e o Leblon a seus pés? Creio talvez não
ser bem essa, ou apenas essa, a intenção por trás do nome. Parece haver algo
relacionado às “camélias do quilombo do Leblon […] as camélias da segunda
abolição/Cadê elas?/Somos assim, capoeiras das ruas do Rio/Será sem fim o
sofrer do povo do Brasil/Nele, em mim, vive o refrão/As camélias da segunda
abolição virão […]” – versos de Gilberto Gil e Caetano Veloso que encerram Mundo
Novo.
Busca rápida no Google
ensina que As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura,
de Eduardo Silva, publicado em 2003, foi escrito após o autor notar a
existência de três pés de camélia no jardim da Casa de Rui Barbosa e, a partir
daí, entender melhor o sentido de um texto do próprio Rui Barbosa em que a flor
é apresentada como símbolo da resistência à escravidão (Fonte: release
Companhia das Letras). O quilombo do Leblon “abrigava escravos fugidos, mas também
reuniões, discussões e ações sobre o fim da escravidão no Brasil” (Leblon,
Augusto Ivan de Freitas Pinheiro e Eliane Canedo, conforme citação de Ivan
Finotti, “Livro resgata memória do Quilombo do Leblon”, Folha
de S.Paulo, 20.nov. 2019). Parece haver em Mundo
Novo, portanto, a tentativa de associar, através da
música de Gil e Veloso, o Vidigal, onde é situado parte do enredo, com o antigo
local de resistência à escravidão no Alto Leblon.
Que Mundo
Novo possa ter passado quase em branco na Mostra
Internacional de Cinema, em São Paulo, depõe mais contra a própria Mostra do
que em desfavor do filme. Dados seus predicados, não ter recebido a atenção que
merece da mídia e do público deve resultar em parte da baixa frequência atual
às salas de cinema e do maior interesse dos cinéfilos festivaleiros paulistanos
por produções estrangeiras, mas também do gigantismo da Mostra que leva muitos
filmes, em especial brasileiros, a participarem do evento quase incógnitos.
O Festival do Rio, com
características semelhantes à Mostra, inclusive o gigantismo, também torna
difícil para muitos filmes se destacarem. Vejamos o que acontecerá nos próximos
dias com Mundo Novo, que terá
duas sessões na Première Brasil, participando da competição Longa Ficção. Uma
na sexta-feira (17/12), às 18 horas, no Cinépolis Lagoon, com ingresso
gratuito; outra no sábado (18/12), com ingresso pago, no Estação NET Botafogo
1, às 13h30.
*
No próximo domingo
(19/12), como sempre às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista
conversam com Gabriel Rocha Gaspar e Vanessa Oliveira sobre De
Bala em Prosa – Vozes da Resistência ao Genocídio Negro (Editora
Elefante, 2020), no programa #DomingoAoVivo
do canal de YouTube 3 Em Cena. Gaspar e Oliveira escreveram Brancos,
Sangrem Conosco, apresentação da coletânea de textos em prosa
escritos por afrodescendentes a partir das mortes do músico Evaldo Rosa dos
Santos e do catador de recicláveis Luciano Macedo, vítimas de 257 tiros dados
por doze militares em 7 de abril de 2019. Esse será o último programa
#DomingoAoVivo de 2021, que voltará a partir de 30 de janeiro. Será um programa
peculiar pois terá como tema central um livro em vez de um filme. O acesso à
conversa do próximo domingo pode ser feito através do link https://youtu.be/Gs2GFe57JuQ .
.
Veja: imagens da vida como ela é – ou como desejamos que
seja https://bit.ly/3E95Juz
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