Como
identificar se seus dispositivos eletrônicos estão te espionando
Google já removeu vários
anúncios de aplicativos que incentivam usuários a espionar parceiros
Ivana Davidovic, Folha de S. Paulo
Maria diz que
cresceu em uma família católica e "amorosa" na costa leste dos Estados Unidos,
que fazia grandes jantares de domingo. Os pais dela tinham um bom casamento e
ela queria esse tipo de respeito e proximidade em seu próprio relacionamento.
Quando ela
conheceu o marido com vinte e poucos anos, foi amor à primeira vista.
Mas o romance
azedou rapidamente, transformando-se em uma história de 25 anos de abuso e
controle.
Primeiro, foi
o xingamento. Então, o controle total de suas finanças, seus movimentos e,
eventualmente, sobre seus três filhos.
O marido se
opôs à ideia de ela ter um emprego onde pudesse interagir com outras pessoas e
a proibiu de usar o computador.
"Ele me
chamava de gorda todos os dias e me expulsava de casa quando estava com
raiva", lembra ela.
Eventualmente,
o abuso financeiro aumentou. Primeiro, ele tomava o salário que ela recebia pelo trabalho como faxineira, depois, solicitou cartões de
crédito em nome de Maria usando os documentos pessoais dela.
Seis anos
atrás, Maria finalmente desabou quando o ouviu dizer que a queria morta. Com a
ajuda da igreja que ela frequentava e da família, ela formulou lentamente um
plano de fuga.
Depois de ter
a sua casa hipotecada, ela finalmente foi morar com a irmã. Ela ganhou um
laptop pela primeira vez e finalmente teve a liberdade de abrir uma conta no Facebook. E começou a namorar.
Mas logo o
ex-marido passou a responder as mensagens para o homem com quem ela estava
saindo. E também começou a aparecer onde quer que ela estivesse.
De repente,
ela o localizaria dirigindo atrás dela em uma rodovia. Certa vez, ela estava
com tanto medo de que ele a estivesse perseguindo e pudesse puxar uma arma, que
chamou a polícia.
Embora ela não
tenha prestado queixa, a perseguição acabou diminuindo e ela se afastou ainda
mais. Mas ela descobriu que tinha sido vítima do chamado stalkerware.
Stalkerware é um software
disponível comercialmente que é usado para espionar outra pessoa por
meio de seu dispositivo —geralmente um telefone— sem seu consentimento.
Ele pode
permitir que o usuário veja as mensagens de outra pessoa, localização, fotos, arquivos
e até mesmo vasculhar conversas nas proximidades do telefone.
Para ajudar a
resolver o problema, Eva Galperin formou a Coalition Against Stalkerware em
2019.
Ela decidiu
formar o grupo depois de olhar os relatos de várias supostas vítimas de estupro,
que estavam com medo de que suas vidas continuassem sendo arruinadas pelos
agressores por meio da tecnologia.
Quando alguém
tem acesso ao seu telefone, o potencial de exploração é enorme, explica ela.
Por exemplo, uma vítima pode ser chantageada com ameaças de compartilhar fotos
íntimas.
Galperin diz
que nos casos de violência doméstica que ela encontra, "algum nível de
abuso habilitado por tecnologia está quase universalmente presente", e que
isso geralmente inclui stalkerware.
"Geralmente
está relacionado aos casos mais violentos —porque é uma ferramenta poderosa de
controle coercitivo", acrescenta ela.
Uma pesquisa
indica que a proliferação de stalkerware é um problema crescente: um estudo do
Norton Labs descobriu que o número de dispositivos indicando que eles tinham
stalkerware instalado aumentou 63% entre setembro de 2020 e maio de 2021.
O relatório sugeriu
que o aumento significativo pode ter sido causado pelo isolamento social,
quando as pessoas passaram a ficar mais tempo em casa.
"Os
pertences pessoais estão mais acessíveis, provavelmente criando mais
oportunidades para os abusadores instalarem aplicativos de stalker nos
dispositivos de seus parceiros", constatou o relatório.
Nos últimos
dois anos, Galperin conseguiu convencer um punhado de empresas de antivírus a
identificar esse tipo de software como malicioso. Isso ocorreu após uma
relutância inicial em marcar o stalkerware como um programa indesejado —ou malware— por
causa de sua possível legitimidade de uso.
Em outubro, o Google removeu vários anúncios de aplicativos
que incentivam os usuários em potencial a espionar o telefone de seus
parceiros. Esses aplicativos costumam ser comercializados para pais que desejam
monitorar os movimentos e as mensagens de seus filhos —mas, em vez disso, foram
reaproveitados por abusadores para espionar seus cônjuges.
Um desses
aplicativos, o SpyFone, foi banido pela Comissão Federal de Comércio dos
Estados Unidos em setembro de 2021 por coletar e compartilhar dados sobre os
movimentos e atividades das pessoas por meio de um hack oculto no dispositivo.
Apesar desses
movimentos positivos, alguns aplicativos de stalkerware e conselhos sobre como
usá-los ainda são facilmente acessíveis na internet.
De acordo com
Galperin, o próximo problema que a FTC está investigando são as empresas que
vendem e compram dados de localização de telefones de usuários sem o
conhecimento deles. Ela chama essa tecnologia de "uma ferramenta
extremamente poderosa" para investigadores particulares, que a usam para
rastrear a localização das vítimas.
Com o
stalkerware deliberadamente projetado para ser difícil de detectar, mesmo
aqueles que são mais experientes em tecnologia ainda podem ser vítimas dele.
Uma dessas
pessoas era Charlotte (nome fictício), de uma analista sênior de segurança
cibernética.
Logo depois de
ficar noiva, ela lentamente percebeu que coisas estranhas começaram a acontecer
com seu telefone. A bateria descarregava rapidamente e ele reiniciava
repentinamente - ambos sinais reveladores de um stalkerware potencialmente
instalado no dispositivo dela.
Até que o
parceiro dela deixou claro que ele sempre sabia onde ela estava, e foi quando
ela finalmente conectou os pontos.
Para obter
alguns conselhos sobre o que fazer, ela foi a um encontro de hackers. A reunião
aconteceu em um local onde o noivo dela havia trabalhado e ela conhecia alguns
dos rostos.
Ela ficou
chocada ao descobrir que existe uma cultura de aceitação de que parceiros
possam rastrear um ao outro.
O ambiente de
"irmandade" entre homens da área de tecnologia que ela encontrou a
estimulou a entrar na segurança cibernética, para reforçar a
"representação a partir de diferentes perspectivas".
Uma rápida
pesquisa na Internet revela muitos serviços alegando que podem invadir o
smartphone de alguém com apenas um número de telefone, geralmente por algumas centenas
de dólares a serem pagos em criptomoeda.
No entanto,
embora o software com esses recursos possa ser acessado por órgãos de
investigação, os especialistas em segurança cibernética acreditam que esses
sites são provavelmente golpes. Em vez disso, o uso do stalkerware depende, em
grande parte, de uma "engenharia social", com a qual Charlotte diz
que as pessoas podem aprender a ter cuidado e evitar.
O alvo pode
receber uma mensagem de texto, que parece verídica, convidando-o a clicar em um
link. Ou um aplicativo falso, disfarçado de legítimo, pode ser compartilhado
com ele.
Charlotte diz
"não tenha medo" caso você tente excluir um aplicativo suspeito e ele
exibir uma série de avisos.
"Às
vezes, eles usam táticas assustadoras para fazer com que os usuários não
removam o software. Eles usam muitas técnicas de engenharia social."
Se tudo
falhar, Charlotte recomenda fazer uma redefinição de fábrica do telefone,
alterando todas as senhas de suas contas de redes sociais e usando autenticação
de duas etapas o tempo todo.
Então, qual
seria a melhor forma de enfrentar o problema?
A maioria dos
países já possui algum tipo de estatuto de escuta telefônica e leis
anti-stalking em vigor.
Por exemplo,
em 2020, a França apresentou um novo projeto de lei sobre violência doméstica
que, entre outros pontos, reforçou as sanções à vigilância secreta: o
rastreamento geográfico de alguém sem o seu consentimento agora é punível com
um ano de prisão e multa de € 45 mil (R$ 290 mil). Se isso for feito pelo
parceiro, as multas serão potencialmente ainda maiores.
CAMINHOS A SEGUIR
Mas, para Eva
Galperin, esse não é um problema que possamos esperar que uma nova legislação
resolva inteiramente.
Ela acha que
tanto o Google quanto a Apple poderiam, por exemplo, agir tornando
impossível a compra de qualquer um desses aplicativos em suas lojas.
Crucialmente,
ela acrescenta, o foco deve ser em um melhor treinamento para que a polícia
trate o problema de maneira mais rigorosa.
Um dos maiores
problemas que ela diz ver, é que as vítimas procuram a aplicação da lei na
intenção de que ela seja cumprida. Porém, as autoridades fazem vista grossa e
"dizem que esse não é um problema" prioritário.
A proliferação
do cyber-stalking também trouxe um novo tipo de serviço de apoio às vítimas de
violência doméstica.
A Clinic To
End Tech Abuse —Ceta— é uma dessas instalações, associada à Cornell University
nos Estados Unidos. A Ceta trabalha diretamente com sobreviventes de abusos, ao
mesmo tempo em que coleta pesquisas sobre o crescente uso indevido de tecnologia.
Rosanna
Bellini, do Ceta, diz que normalmente eles não recomendam a remoção imediata do
stalkerware do telefone da vítima —sem fazer um planejamento de segurança
primeiro com um responsável pelo caso.
A experiência
anterior revelou esta abordagem: se o acesso do agressor ao telefone da vítima
for cortado repentinamente, isso pode levar a uma escalada de violência.
Para Maria,
que está livre do casamento abusivo há seis anos, as coisas não estão
perfeitas, mas melhorando.
"Tenho um
bom relacionamento com alguém que realmente se preocupa comigo e me apoia,
ajudando a construir minha história", diz ela.
Ainda há
momentos em que ela fica ansiosa ao lidar com o telefone. Ela foi diagnosticada
com transtorno de estresse pós-traumático (PTSD). Mas ela quer que outras
vítimas saibam que a perseguição cibernética é enorme e que não estão sozinhas.
"Não
tenha medo. Há ajuda lá fora. Fiz grandes avanços e, se posso fazer isso na
minha idade, —aos 56— qualquer um pode fazer."
.
Veja: A mentira o desgasta e
enfraquece; mas o mantém conectado à sua base https://t.co/Dp8f13AzZ4
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