Perseguição na livraria
Luciano Siqueira
Vislumbro uma brecha na atribulada
agenda e desembarco na grande livraria, onde entre livros permito-me duplo
devaneio: o olhar sobre estantes de literatura brasileira e a mente livre para
imaginar fragmentos em torno que sou, do que faço, do que desejo...
Uma janela de leveza que chega a ser um
truque de sobrevivência para quem muito trabalha e sempre se vê às voltas com
problemas e desafios de toda ordem.
Comparável a uma conversa em torno de
um bom cappuccino.
Mas desta vez o prazer intelectual
fortuito é interrompido pelo velho conhecido, que não chega a ser propriamente
amigo.
Cumprimenta-me com o cotovelo e se diz
surpreso por me reconhecer por trás da máscara de proteção contra a Covid, após
tanto tempo sem me ver.
— Eu o reconheci pelo olhar!
Retribuo o cumprimento e apresso-me em
anunciar que ali estou concentrado na escolha de um livro para presentear uma
amiga.
E que tenho pouco tempo para fazê-lo,
pois logo em seguida terei compromisso inadiável.
Por uns segundos imaginei que o
antídoto funcionaria e que poderia tranquilamente retornar aos livros e à livre
imaginação.
Ledo engano, como se dizia antigamente.
O dito cujo me seguia e, compulsivo, desferia
comentários e perguntas como um boxeador que cerca o adversário e tenta
nocauteá-lo.
— Saudade da Prefeitura?
— Não. Fui 16 anos vice-prefeito,
cumpri meu dever e a vida continua...
— Tem visto Geraldo Julio?
— Não, às vezes conversamos por
telefone - respondo com os olhos fixos no volume de Milton Hatoum.
Finjo ter visto, numa gôndola adiante,
algo do meu interesse e me desloco rapidamente.
Porém impertinente e importuno, ele não
me deixa em paz:
— Na literatura estrangeira quais são
os autores de sua preferência?
— Depende do gênero.
— E dos escritores brasileiros quais
você considera os melhores?
— Também depende do gênero.
— E quais os gêneros literários que
mais você lê?
— Leio o que me interessa a cada
momento.
— Então você não tem preferências
fixas, né?
Nada respondo e finjo atender uma
mensagem no WhatsApp.
— Você costuma ler textos no
smartphone? - dispara o impertinente.
"Assim já é demais", pensei
comigo mesmo. "Esse cara não se manca, não tem limites."
Resta-me fugir.
Mais uma vez finjo com o smartphone à
mão e balbucio qualquer coisa sobre a hora do próximo compromisso.
— Eu entendo, vocês líderes sempre são
muito ocupados - diz ele, não sei se sinceramente ou por banal ironia.
Aproveito a ligeira trégua para cair
fora:
— Agora terei que ir, qualquer dia a
gente toma um café e conversa com calma.
— Ótimo! Tome aqui meu cartão e anote
meu telefone. Assim que tiver um tempinho livre, ligue que será um prazer
revê-lo — disse ele, como se eu estivesse verdadeiramente interessado em
sua impertinência.
Já em meu carro, no estacionamento do
shopping, cometi um gesto que minha mãe Oneide classificaria como "falta
de caridade", católica fervorosa que era. Rasguei o cartão de visitas do
perseguidor em talvez vã expectativa de jamais encontrá-lo.
Conversar é sempre um prazer. Mas sob pressão, jamais!
Veja: A mentira o desgasta e o enfraquece;
mas retém parte de sua base ignara https://t.co/Dp8f13AzZ4
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