Crônica de domingo
E se o transplantado
entrar em órbita?
Luciano Siqueira
Leio na Folha que um médico astronauta
norte-americano se dedica a imprimir em 3D tecidos humanos, em pleno espaço
sideral.
O experimento científico tem a ver com a escassez
de órgãos para transplante em indivíduos parcialmente mutilados.
Sou de uma geração que, na adolescência, lia ficção
científica com certeza absoluta de que muito do que se imaginava jamais se
tornaria realidade.
Voos espaciais, por exemplo.
Hoje, formado em medicina e de mente aberta a tudo
o que a humanidade possa imaginar e fazer, não me livro entretanto do velho
sentimento de estranheza quando me informo de atitudes tão usadas quanto essa,
a reprodução de tecidos humanos numa máquina que me faz lembrar uma
xerox qualquer da vida...
Haveria limite para reprodução de tecido humano
assim desse jeito?
Qual jeito?
Numa máquina 3D, enquanto a nave espacial se mantém
em órbita.
Que limite?
O tipo de células, por exemplo. Pois uma
coisa é reproduzir tecidos do fígado, dos rins ou das unhas...
Porém reproduzir tecidos do cérebro já são outros
quinhentos.
Meu receio é que o cidadão beneficiado com
transplante de células do sistema nervoso central, replicadas numa maquininha,
enquanto dá voltas pelo universo afora, possa ele mesmo "entrar em órbita"
e não sair mais...
Então, o sujeito andaria em círculos, por exemplo.
Ou faria discursos quilométricos, que nem o finado
amigo senador padre Mansueto de Lavor, do PMDB pernambucano, que toda vez que
era instado a concluir suas demoradas falas em comícios, se via tomado de uma
certa ansiedade e voltava ao ponto de partida, prolongando mais ainda sua
peroração.
— Melhor não pressioná-lo – a turma dizia -, senão
ele "entra em órbita" novamente e não consegue sair...
No mundo de hoje, de comunicação digital em tempo
real, frases curtas e respostas rápidas, gente transplantada com material
"orbital" pode se dar muito mal.
Perdoem-me astronautas cientistas, mas desconfio
que seria desastrosa uma declaração de amor (que hoje em dia dispensa versos
parnasianos e pede pouco mais do que um olhar insinuante) pronunciada por
um benefiário de enxerto cerebral produzido durante rodeios intermináveis em
torno da lua, quem sabe.
Pois o amor pede poesia e dispensa ciência. Ou não?
.
As imagens da vida na arte, em fotografia e em vídeo https://bit.ly/3E95Juz
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