Flagrante de solidão
Luciano
Siqueira
Restaurante muito simples, mas organizado. Sempre cheio: cardápio
razoavelmente atraente, preço acessível.
Self-service.
Os comensais chegam em grupos, crachás à vista, funcionários que
são de empresas sediadas no bairro.
Dão a impressão de que todos falam ao mesmo tempo, em voz alta,
sorridentes, barulhentos.
Preferimos uma mesa no canto oposto ao caixa, perto da porta de entrada.
Daí é possível olhar a cena de anglo privilegiado — condição satisfatória para
quem, como eu, se compraz em observar pessoas e lugares.
Já havia notado outras vezes o cidadão de meia-idade, calvo,
ligeiramente obeso, talvez 50 anos. Desprovido de crachá. Só.
Hoje pude encará-lo olhos nos olhos, como se diz.
Mas ele parecia não me ver, como nada enxergava ao olhar o entorno
um tanto vagamente. Absorto. Impreciso.
Mal tocava no que pusera no prato. Apenas bebia uma coca-cola como
quem toma uma dose de whisky. Lentamente.
Por um instante nossos olhares se cruzaram e pude perceber a
tristeza estampada em sua fisionomia, em absoluto contraste com algazarra do
ambiente.
Ensaiei o comentário, à guisa de solidariedade:
— Barulho infernal, né?
— Eu gosto. Preciso disso...
Nada mais falamos porque ele virou o rosto e seguiu observando o
entra e sai divertido da clientela.
E eu, que evito líquido ao almoço, pedi um suco de limão na
intenção de ali permanecer por um instante mais e observá-lo.
Meu Instinto solidário sugeriria uma conversa.
Impossível.
Ligeiramente inclinado, ele agora parecia observar as próprias
mãos.
O amigo que me acompanhava, olhos presos ao smartphone, parecia
nada perceber. Sequer se dera conta do monossilábico diálogo que eu
travara com o desconhecido.
— Vamos nessa?
— Vamos!
Saí com a certeza de que havia presenciado uma cena de solidão
explícita, tão comum na cidade que encanta mas também oprime.
[Ilustração:
Edward Hopper]
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Veja: A poesia em seus
lugares e cores https://bit.ly/3BKdwhd
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