A consolidação da direita cristã
Encerradas as eleições, uma reflexão
desafiadora se impõe sobre o lugar da religião nesse processo. Das tantas
possibilidades de análise, acompanhando o que já vinha sendo indicado por
colegas pesquisadores das diferentes áreas das ciências humanas e sociais,
proponho neste artigo nos determos em um elemento de destaque que provoca interrogações
sobre o futuro próximo do cenário político do país: a consolidação de uma
direita cristã brasileira
Magali Cunha,
Le Monde Diplomatique
Com
os mesmos pilares que geraram nos anos 1970, nos Estados Unidos, o movimento
político Moral Majority (Maioria Moral), o Brasil experimenta, com o governo
Bolsonaro e a campanha por sua reeleição, a consolidação de uma direita cristã.
Foi
nos anos 1970 que teve início, nos Estados Unidos, um processo de recuperação
do “evangelicalismo” como fator de unidade e transição. O fundamentalismo, movimento
conservador nascido entre evangélicos daquele país, no início do século XX,
para a defesa dos fundamentos da fé cristã em reação à modernidade, ganhou nova
significação. Figuras de destaque, como os pastores Jerry Falwell, Tim LaHaye e
Pat Robertson, de posse de amplos recursos financeiros e de acesso ao rádio e à
TV, se organizaram para retomar a “América para Jesus”. Foi a era dos
televangelistas.
É
um tempo de maior ativismo político, com aproximação do Partido Republicano,
formação de grupos de pressão, lobbies e articulações, como a Maioria Moral.
Nessa etapa, os ultraconservadores evangélicos presbiterianos, batistas e
metodistas desprenderam-se de uma vez por todas de uma identidade
denominacional e uniram-se com grupos até então adversários, como pentecostais,
judeus e católicos, em torno das pautas pró-vida e pró-família – isto é, contra
o aborto (legalizado nos Estados Unidos em 1973) –, pela regulação das mídias,
com indicações classificativas por faixa etária, e contra as conquistas dos direitos
civis de mulheres e LGBTQIA+.
Rapidamente
a direita cristã, da qual a Maioria Moral seria a principal organização, se
tornou uma grande força política. Suas principais bandeiras eram a defesa dos
“valores da família” (o que incluía a oposição ao aborto em qualquer caso, o
combate à expansão dos direitos dos homossexuais e a restrição da pornografia);
a volta da prática das orações e o ensino do criacionismo nas escolas públicas;
o combate à disseminação do comunismo juntamente com uma defesa de cunho patriótico
ferrenha do capitalismo e do “modo de vida” norte-americano; uma posição
extremamente crítica às políticas de bem-estar social; e a defesa de uma
postura pró-Israel por parte do governo norte-americano.
A
Teologia do Domínio, gestada nos ambientes fundamentalistas de base calvinista,
alimentou esse processo. A lógica era a busca da reconstrução da teocracia na
sociedade contemporânea, no cumprimento da predestinação dos cristãos ocuparem
postos de comando no mundo (presidências, ministérios, parlamentos, lideranças
de estados, províncias, municípios, supremas cortes) – o domínio religioso
cristão – para incidirem na vida pública.
A
Maioria Moral entrou fortalecida nos anos 1980, mas foi nos 1990 que ganhou
mais espaço, após a presidência do republicano Ronald Reagan. Essa ocupação do
Partido Republicano conferiu poder a fundamentalistas cada vez que o partido
assumia o posto maior do Estado. A força fundamentalista foi retomada nos anos
Bush (pai e filho) e ganhou mais força com o governo de extrema direita de
Donald Trump.
Cinquenta
anos depois, o Brasil experimenta um movimento muito semelhante. Desde a década
de 1990, a Teologia do Domínio vinha sendo ressignificada por ativistas
políticos do universo pentecostal em busca de espaços de poder, recorrendo a
uma “superioridade moral evangélica” e à necessidade de subordinação do sistema
jurídico dos Estados a leis bíblicas, fundamentalmente do Antigo Testamento. E
é nessas bases que, na segunda década dos anos 2000, o desenho dessa nova
direita cristã brasileira se articula, amplificado não mais por
televangelistas, mas por influenciadores digitais, entre os quais pastores,
padres, cantores gospel e outros personagens religiosos nascidos da cultura das
mídias sociais.
A consolidação
O antropólogo Ronaldo de Almeida, em artigo
na Folha
de S.Paulo (27 out. 2022), desafia: “Em vez de religião
na política, devemos falar em religião como política. Mais do que a
forma religiosa da política, que separa forma e conteúdo, ou mais do que
religião entrando na política, como se nunca tivesse estado nela, fazer
religião tem sido fazer política”.
O envolvimento de lideranças religiosas com
os movimentos que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e à
eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, representou a configuração dessa religião
política. Marcam o período episódios como a fundação da Associação de Juristas
Evangélicos (Anajure) e da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp),
em 2012, que estabeleceram as bases de um ativismo jurídico cristão; a ocupação
da presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal
pelo deputado pastor da Assembleia de Deus Marco Feliciano (então PSC-SP), em
2013; a dimensão messiânica da Operação Lava Jato, sob a liderança do
procurador da Igreja Batista Deltan Dallagnol; a consagração da aliança com o
deputado federal Jair Bolsonaro, por meio de um rebatismo nas águas do Rio
Jordão, em Israel, em 2016, pelo presidente do PSC, pastor Everaldo, da
Assembleia de Deus, ao recebê-lo no partido.
Personagem-chave dessa articulação
político-religiosa, o militar da reserva Jair Bolsonaro, catapultado à
Presidência em 2018, se projetou com uma surpreendente identidade pancristã.
Isto é, o capitão ora se autoidentifica como católico, ora performa uma imagem
de evangélico. Desde 2016, o político transitou entre os dois grupos cristãos e
acionou fortemente símbolos relacionados às duas tradições confessionais. A
aproximação com judeus, refletindo a Maioria Moral norte-americana, também faz
parte desse processo.
No contexto dos evangélicos, o amplo apoio
a Jair Bolsonaro representou mais do que dar suporte a uma pessoa, mas a
concretização de um ideal alimentado desde a chegada dos missionários dos
Estados Unidos, no século XIX, que inauguraram a presença do segmento no país.
O atual presidente do Brasil, desde a campanha de 2018, passou a representar a
encarnação do que seria “uma nação cujo Deus é Senhor” ou “o Brasil do Senhor
Jesus”.
Esse imaginário tem como principais
componentes a busca da conversão de todos os brasileiros à fé evangélica,
sobrepondo-se às outras religiões, e uma reforma do catolicismo; a aplicação de
valores morais às leis do país; a negação de direitos sexuais e reprodutivos; a
cura gay; a realização plena do Brasil como potência econômica mundial. O
discurso religioso que alimentou a campanha eleitoral de Bolsonaro e os apoios
de evangélicos durante o mandato na Presidência foi devidamente ancorado nesse
imaginário.
Outro componente imaginário evangélico foi
amplamente trabalhado no populismo bolsonarista: o combate a inimigos.
Evangélicos sempre desenvolveram no Brasil a ideia da perseguição como um motor
de autoafirmação e autopreservação como minoria religiosa. Além disso, há a
mística da leitura da perseverança cristã diante da perseguição, como no tempo
da Igreja Primitiva, que representa uma virtude religiosa. A proposta de
enfrentamento dos inimigos das famílias e da pátria, identificados com as
esquerdas e os movimentos feministas, negros e LGBTQIA+, tem vinculação
estreita com essa composição.
Esses elementos ganharam novos contornos
com o discurso de defesa da “liberdade religiosa” assumido pelo governo
Bolsonaro, como plataforma para as ações antidireitos dos religiosos. Foi
disseminado o termo “cristofobia” para caracterizar como perseguição toda
legislação e/ou decisão judicial que, cumprindo os protocolos do Estado laico,
não permite que um único preceito religioso se transforme em determinação sobre
a vida da população em geral. Liberdade religiosa, nesse sentido, não é a
garantia da existência e da prática das diferentes religiões, com seus cultos e
costumes respeitados, mas denota que cristãos devem ter a liberdade de agir
sobre e contra outras religiões e culturas e, especialmente, controlar a
sexualidade da população.
O catolicismo ultraconservador, frustrado
com a perda de fiéis para as igrejas evangélicas a partir dos anos 1990, que
atribui à politização da Igreja Católica dos anos 1980, com as Comunidades
Eclesiais de Base, “padres e bispos vermelhos” da Teologia da Libertação, é
parte desse cenário. Ele se vê também representado no discurso da moralidade
sexual, da liberdade religiosa e da realização do Brasil como potência
econômica mundial. Da parte desses católicos, a aliança com Bolsonaro
representa uma reaproximação do poder, uma vez que esse grupo religioso esteve
sempre próximo dele, desde a colonização portuguesa, mas perdeu influência nas
últimas décadas.
Com isso, observa-se neste período uma
convergência de propósitos entre católicos e evangélicos no apoio a Bolsonaro,
na conformação dessa direita religiosa ancorada na plataforma ideológica do
político.
Bolsonaro correspondeu a essas expectativas
ao nomear, ao longo de seu mandato, nove evangélicos e católicos para
ministérios significativos, entre eles a chamada ala ideológica de seu
gabinete: Casa Civil, Educação, Direitos Humanos, Justiça, Turismo, Cidadania,
Advocacia-Geral da União e Secretaria de Governo. Na segunda metade do governo,
o presidente chegou a ressuscitar ministérios que extinguiu para acomodar alguns
desses personagens: Comunicações e Trabalho e Previdência. Isso sem
contabilizarmos o segundo escalão desses e de outros ministérios.
Leia
também: Líderes
evangélicos que desafiam as doutrinas conservadoras fundam suas próprias
igrejas https://bit.ly/3UpQCWN
Aqui se pode falar de conquista de capital
social, simbólico, político e financeiro de lideranças e grupos evangélicos e
católicos apoiadores. São muitos os grupos beneficiados – desde empresas de
mídia religiosa a projetos de assistência social e missionários gerenciados por
vários grupos cristãos. Pode-se falar também de aguçamento da autoestima
evangélica, em especial com a divulgação de eventos públicos de caráter
religioso promovidos por ministros e pela primeira-dama, que é evangélica,
motivo de orgulho, algo com proporções nunca praticadas com promoção do Estado.
Pela
reeleição de Bolsonaro
O trabalho pela reeleição de Bolsonaro para
ampliação da força dessa religião política foi intenso e lançou mão de
discursos e posturas radicalizados, relacionados ao ultraconservadorismo da
extrema direita, sistematizados a seguir.
1. Aplicação da Teologia do Domínio para
justificar os sinais de Deus em um líder escolhido, o presidente da República,
Jair Bolsonaro, que, ainda que tenha discurso e comportamento moral
questionáveis, pode ser ungido e usado por Deus, como foi o rei Ciro, da Pérsia
(que, segundo a narrativa da Bíblia, livrou os judeus do exílio na dominação
persa e lhes devolveu a terra santa).
2. Inversão dos valores do Evangelho, como
igualdade, solidariedade, misericórdia e despojamento, classificando-os como
sinônimo de comunismo, para, dessa forma, afinar a religião política à cultura
do individualismo e à lógica neoliberal da inovação e do empreendedorismo.
3. Ênfase no discurso nós versus eles,
do enfrentamento de inimigos e do senso de pertença a um grupo eleito, povo
escolhido que tem autoridade divina para combater e eliminar os inimigos da fé.
A expressão-chave desse fazer religioso-político é “anti”, colocar-se contra,
com negação de qualquer tipo de reflexão e diálogo que justifiquem “o outro
lado”.
4. Defesa radical das pautas pró-vida e
pró-família, como oposição aos direitos sexuais e reprodutivos conquistados no
ambiente do Estado democrático. Para isso, há imposição de pânico moral e uso
de desinformação sobre a ameaça da suposta “ideologia de gênero”, em especial
sobre crianças e adolescentes, via educação sexual nas escolas.
5. Assimilação do discurso armamentista e
da linguagem da autodefesa e da vingança com interpretação ideológica da Bíblia
para ajustar o discurso religioso da pacificação à retórica bélica.
6. Guerra cultural contra o perigo comunista/socialista/marxista,
identificado como inimigo da pátria, da família, de Deus e das igrejas,
interpretado como entrincheirado em partidos políticos de esquerda, em
movimentos sociais e de direitos humanos, em sindicatos, entre professores e
professoras em todos os níveis educacionais e na ciência em suas diferentes
dimensões.
7. Intensa ocupação das mídias sociais, com
a produção ostensiva de conteúdo comprovadamente falso e enganoso com base em
terrorismo verbal (imposição de medo), referente às ameaças daqueles que são
compreendidos como inimigos da pátria, da família e de Deus, com forte ênfase
no perigo do fechamento de igrejas e do silenciamento dos cristãos sob uma
possível vitória das esquerdas nas urnas.
8. Ocupação das mídias religiosas institucionais
e independentes para propagação desse conteúdo religioso-político e repercussão
da desinformação publicada por perfis de influenciadores cristãos em mídias
sociais.
9. A Teologia do Domínio, com o discurso
que estimula a postura “anti” e a guerra cultural, passa a ser aplicada dentro
das próprias igrejas, com ações de discriminação, exclusão, expurgos e
perseguições a fiéis das igrejas e demais grupos religiosos identificados como
não alinhados, que revelam simpatia ou ativismo progressista, de esquerda, por
direitos humanos. Para isso se constrói uma noção de pecado e interdição ao
alinhamento progressista que torna possível a desqualificação da fé desses
opositores, bem como permite a intimidação e o assédio que lhes são impostos.
A
demanda por novas abordagens
Um olhar preliminar para levantar
parlamentares com identidade religiosa cristã, eleitos para a Câmara Federal,
mostra o predomínio dessa nova direta. Dos cerca de 71% dos eleitos que
manifestaram em campanha identidade religiosa cristã, seja por vinculação
notória, seja por autoidentificação ou uso de linguagem e de relacionamento com
igrejas, 50% são identificados com a direita, 34,5% com a esquerda (com ampla
maioria de católicos) e 15,5% com o centro, sendo a maior parte com tendência à
direita. As candidaturas cristãs de direita mobilizaram amplamente a pauta
moral (pró-vida, pró-família, antidireitos sexuais e reprodutivos) com
discursos antiesquerda de terror verbal, com significativo número com apologia
às armas e à militarização.
Esse quadro se soma à expressiva quantidade
de votos que Jair Bolsonaro alcançou no segundo turno da disputa para a
Presidência, boa parte depositada por evangélicos e católicos, segundo as
pesquisas eleitorais. Isso indica quanto o discurso da direita cristã sobre
política, o Brasil, Deus e a fé tem sido bem-sucedido. Mais do que votos, a
direita cristã conquistou “corações e mentes”.
A radicalização do discurso de campanha
pró-Bolsonaro nas igrejas no segundo turno, com a desqualificação extrema e a
guerra às esquerdas, levou até mesmo a ataques para além dos discursos de
mídias sociais. Houve episódios presenciais de ataques a padres, a pastores,
interrupções de missas e impedimentos de eventos promovidos por cristãos
progressistas. O caso do evento paralelo promovido pelo grupo extremista
católico liderado pelo Centro Dom Bosco, durante as celebrações do tradicional
Dia de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro, com vaias ao arcebispo que
fazia um sermão na Basílica, expressa o clima que se formou.
Os efeitos dessa radicalização se dão nos
desdobramentos do desfecho das eleições, pós-vitória de Jair Bolsonaro. No
momento em que este artigo é redigido, lideranças cristãs se dividem. Um
expressivo grupo se expõe entre chorar a derrota do “escolhido de Deus”, encontrar
uma nova teologia que explique o fracasso das profecias, animar o rebanho para
os novos tempos sem um protagonista no poder e manifestar indignação com os
possíveis 30% irmãos de fé que se colocaram em oposição a ele.
Outro grupo leva a radicalização adiante, a
guerra espiritual a ser travada em etapa mais profunda, com a contestação dos
resultados, a participação em atos de desestabilização do processo
pós-eleitoral, com bloqueio de rodovias e chamado ao enfrentamento pela
“deseleição” de Lula com
intervenção militar.
O futuro se mostra mais desafiador diante
do novo governo. O Brasil, que sempre foi marcado por uma incrível pluralidade
religiosa, agora convive com a força de uma direita cristã, que tem
ao redor de si uma articulação inter-religiosa ultraconservadora que fala às
demandas mais profundas da população e mexe com sentimentos e imaginários.
As pautas de direitos seguirão ameaçadas e
essa proposta religiosa continuará atuando de forma política, com apelo a
medos, à intolerância, à guerra e à imposição da insegurança com o presente e o
futuro.
Ao novo governo emerge o desafio não apenas
de conviver com esta nova realidade, mas também de aprender com ela e
considerar os múltiplos espaços de audição e diálogo. Acima de tudo, considerar
o lugar relevante que a religião tem na vida da população e reforçar quem já
diz isso há muito tempo e tem buscado, nos espaços religiosos progressistas e
ecumênicos, construir pontes com esse vigor que vem das bases e pode ser
acionado na defesa da democracia, dos direitos e do bem viver.
*Magali Cunha,
jornalista e doutora em Ciências da Comunicação, é colaboradora do Conselho
Mundial de Igrejas, pesquisadora do Instituto
de Estudos da Religião (Iser) e editora-geral do Coletivo
Bereia.
Leia
também: O movimento altivo das lideranças evangélicas que não aceitam
papel de gado é um novo cumprimento de bem-aventurança https://bit.ly/3Sxh3YV
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