09 novembro 2022

Conservadorismo religioso

A consolidação da direita cristã

Encerradas as eleições, uma reflexão desafiadora se impõe sobre o lugar da religião nesse processo. Das tantas possibilidades de análise, acompanhando o que já vinha sendo indicado por colegas pesquisadores das diferentes áreas das ciências humanas e sociais, proponho neste artigo nos determos em um elemento de destaque que provoca interrogações sobre o futuro próximo do cenário político do país: a consolidação de uma direita cristã brasileira
Magali Cunha, Le Monde Diplomatique

 

Com os mesmos pilares que geraram nos anos 1970, nos Estados Unidos, o movimento político Moral Majority (Maioria Moral), o Brasil experimenta, com o governo Bolsonaro e a campanha por sua reeleição, a consolidação de uma direita cristã.

Foi nos anos 1970 que teve início, nos Estados Unidos, um processo de recuperação do “evangelicalismo” como fator de unidade e transição. O fundamentalismo, movimento conservador nascido entre evangélicos daquele país, no início do século XX, para a defesa dos fundamentos da fé cristã em reação à modernidade, ganhou nova significação. Figuras de destaque, como os pastores Jerry Falwell, Tim LaHaye e Pat Robertson, de posse de amplos recursos financeiros e de acesso ao rádio e à TV, se organizaram para retomar a “América para Jesus”. Foi a era dos televangelistas.

É um tempo de maior ativismo político, com aproximação do Partido Republicano, formação de grupos de pressão, lobbies e articulações, como a Maioria Moral. Nessa etapa, os ultraconservadores evangélicos presbiterianos, batistas e metodistas desprenderam-se de uma vez por todas de uma identidade denominacional e uniram-se com grupos até então adversários, como pentecostais, judeus e católicos, em torno das pautas pró-vida e pró-família – isto é, contra o aborto (legalizado nos Estados Unidos em 1973) –, pela regulação das mídias, com indicações classificativas por faixa etária, e contra as conquistas dos direitos civis de mulheres e LGBTQIA+.

Rapidamente a direita cristã, da qual a Maioria Moral seria a principal organização, se tornou uma grande força política. Suas principais bandeiras eram a defesa dos “valores da família” (o que incluía a oposição ao aborto em qualquer caso, o combate à expansão dos direitos dos homossexuais e a restrição da pornografia); a volta da prática das orações e o ensino do criacionismo nas escolas públicas; o combate à disseminação do comunismo juntamente com uma defesa de cunho patriótico ferrenha do capitalismo e do “modo de vida” norte-americano; uma posição extremamente crítica às políticas de bem-estar social; e a defesa de uma postura pró-Israel por parte do governo norte-americano.

A Teologia do Domínio, gestada nos ambientes fundamentalistas de base calvinista, alimentou esse processo. A lógica era a busca da reconstrução da teocracia na sociedade contemporânea, no cumprimento da predestinação dos cristãos ocuparem postos de comando no mundo (presidências, ministérios, parlamentos, lideranças de estados, províncias, municípios, supremas cortes) – o domínio religioso cristão – para incidirem na vida pública.

A Maioria Moral entrou fortalecida nos anos 1980, mas foi nos 1990 que ganhou mais espaço, após a presidência do republicano Ronald Reagan. Essa ocupação do Partido Republicano conferiu poder a fundamentalistas cada vez que o partido assumia o posto maior do Estado. A força fundamentalista foi retomada nos anos Bush (pai e filho) e ganhou mais força com o governo de extrema direita de Donald Trump.

Cinquenta anos depois, o Brasil experimenta um movimento muito semelhante. Desde a década de 1990, a Teologia do Domínio vinha sendo ressignificada por ativistas políticos do universo pentecostal em busca de espaços de poder, recorrendo a uma “superioridade moral evangélica” e à necessidade de subordinação do sistema jurídico dos Estados a leis bíblicas, fundamentalmente do Antigo Testamento. E é nessas bases que, na segunda década dos anos 2000, o desenho dessa nova direita cristã brasileira se articula, amplificado não mais por televangelistas, mas por influenciadores digitais, entre os quais pastores, padres, cantores gospel e outros personagens religiosos nascidos da cultura das mídias sociais.

A consolidação

O antropólogo Ronaldo de Almeida, em artigo na Folha de S.Paulo (27 out. 2022), desafia: “Em vez de religião na política, devemos falar em religião como política. Mais do que a forma religiosa da política, que separa forma e conteúdo, ou mais do que religião entrando na política, como se nunca tivesse estado nela, fazer religião tem sido fazer política”.

O envolvimento de lideranças religiosas com os movimentos que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e à eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, representou a configuração dessa religião política. Marcam o período episódios como a fundação da Associação de Juristas Evangélicos (Anajure) e da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp), em 2012, que estabeleceram as bases de um ativismo jurídico cristão; a ocupação da presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal pelo deputado pastor da Assembleia de Deus Marco Feliciano (então PSC-SP), em 2013; a dimensão messiânica da Operação Lava Jato, sob a liderança do procurador da Igreja Batista Deltan Dallagnol; a consagração da aliança com o deputado federal Jair Bolsonaro, por meio de um rebatismo nas águas do Rio Jordão, em Israel, em 2016, pelo presidente do PSC, pastor Everaldo, da Assembleia de Deus, ao recebê-lo no partido.

Personagem-chave dessa articulação político-religiosa, o militar da reserva Jair Bolsonaro, catapultado à Presidência em 2018, se projetou com uma surpreendente identidade pancristã. Isto é, o capitão ora se autoidentifica como católico, ora performa uma imagem de evangélico. Desde 2016, o político transitou entre os dois grupos cristãos e acionou fortemente símbolos relacionados às duas tradições confessionais. A aproximação com judeus, refletindo a Maioria Moral norte-americana, também faz parte desse processo.

No contexto dos evangélicos, o amplo apoio a Jair Bolsonaro representou mais do que dar suporte a uma pessoa, mas a concretização de um ideal alimentado desde a chegada dos missionários dos Estados Unidos, no século XIX, que inauguraram a presença do segmento no país. O atual presidente do Brasil, desde a campanha de 2018, passou a representar a encarnação do que seria “uma nação cujo Deus é Senhor” ou “o Brasil do Senhor Jesus”.

Esse imaginário tem como principais componentes a busca da conversão de todos os brasileiros à fé evangélica, sobrepondo-se às outras religiões, e uma reforma do catolicismo; a aplicação de valores morais às leis do país; a negação de direitos sexuais e reprodutivos; a cura gay; a realização plena do Brasil como potência econômica mundial. O discurso religioso que alimentou a campanha eleitoral de Bolsonaro e os apoios de evangélicos durante o mandato na Presidência foi devidamente ancorado nesse imaginário.

Outro componente imaginário evangélico foi amplamente trabalhado no populismo bolsonarista: o combate a inimigos. Evangélicos sempre desenvolveram no Brasil a ideia da perseguição como um motor de autoafirmação e autopreservação como minoria religiosa. Além disso, há a mística da leitura da perseverança cristã diante da perseguição, como no tempo da Igreja Primitiva, que representa uma virtude religiosa. A proposta de enfrentamento dos inimigos das famílias e da pátria, identificados com as esquerdas e os movimentos feministas, negros e LGBTQIA+, tem vinculação estreita com essa composição.

Esses elementos ganharam novos contornos com o discurso de defesa da “liberdade religiosa” assumido pelo governo Bolsonaro, como plataforma para as ações antidireitos dos religiosos. Foi disseminado o termo “cristofobia” para caracterizar como perseguição toda legislação e/ou decisão judicial que, cumprindo os protocolos do Estado laico, não permite que um único preceito religioso se transforme em determinação sobre a vida da população em geral. Liberdade religiosa, nesse sentido, não é a garantia da existência e da prática das diferentes religiões, com seus cultos e costumes respeitados, mas denota que cristãos devem ter a liberdade de agir sobre e contra outras religiões e culturas e, especialmente, controlar a sexualidade da população.

O catolicismo ultraconservador, frustrado com a perda de fiéis para as igrejas evangélicas a partir dos anos 1990, que atribui à politização da Igreja Católica dos anos 1980, com as Comunidades Eclesiais de Base, “padres e bispos vermelhos” da Teologia da Libertação, é parte desse cenário. Ele se vê também representado no discurso da moralidade sexual, da liberdade religiosa e da realização do Brasil como potência econômica mundial. Da parte desses católicos, a aliança com Bolsonaro representa uma reaproximação do poder, uma vez que esse grupo religioso esteve sempre próximo dele, desde a colonização portuguesa, mas perdeu influência nas últimas décadas.

Com isso, observa-se neste período uma convergência de propósitos entre católicos e evangélicos no apoio a Bolsonaro, na conformação dessa direita religiosa ancorada na plataforma ideológica do político.

Bolsonaro correspondeu a essas expectativas ao nomear, ao longo de seu mandato, nove evangélicos e católicos para ministérios significativos, entre eles a chamada ala ideológica de seu gabinete: Casa Civil, Educação, Direitos Humanos, Justiça, Turismo, Cidadania, Advocacia-Geral da União e Secretaria de Governo. Na segunda metade do governo, o presidente chegou a ressuscitar ministérios que extinguiu para acomodar alguns desses personagens: Comunicações e Trabalho e Previdência. Isso sem contabilizarmos o segundo escalão desses e de outros ministérios.

Leia também: Líderes evangélicos que desafiam as doutrinas conservadoras fundam suas próprias igrejas https://bit.ly/3UpQCWN

Aqui se pode falar de conquista de capital social, simbólico, político e financeiro de lideranças e grupos evangélicos e católicos apoiadores. São muitos os grupos beneficiados – desde empresas de mídia religiosa a projetos de assistência social e missionários gerenciados por vários grupos cristãos. Pode-se falar também de aguçamento da autoestima evangélica, em especial com a divulgação de eventos públicos de caráter religioso promovidos por ministros e pela primeira-dama, que é evangélica, motivo de orgulho, algo com proporções nunca praticadas com promoção do Estado.

 

Pela reeleição de Bolsonaro

O trabalho pela reeleição de Bolsonaro para ampliação da força dessa religião política foi intenso e lançou mão de discursos e posturas radicalizados, relacionados ao ultraconservadorismo da extrema direita, sistematizados a seguir.

1. Aplicação da Teologia do Domínio para justificar os sinais de Deus em um líder escolhido, o presidente da República, Jair Bolsonaro, que, ainda que tenha discurso e comportamento moral questionáveis, pode ser ungido e usado por Deus, como foi o rei Ciro, da Pérsia (que, segundo a narrativa da Bíblia, livrou os judeus do exílio na dominação persa e lhes devolveu a terra santa).

2. Inversão dos valores do Evangelho, como igualdade, solidariedade, misericórdia e despojamento, classificando-os como sinônimo de comunismo, para, dessa forma, afinar a religião política à cultura do individualismo e à lógica neoliberal da inovação e do empreendedorismo.

3. Ênfase no discurso nós versus eles, do enfrentamento de inimigos e do senso de pertença a um grupo eleito, povo escolhido que tem autoridade divina para combater e eliminar os inimigos da fé. A expressão-chave desse fazer religioso-político é “anti”, colocar-se contra, com negação de qualquer tipo de reflexão e diálogo que justifiquem “o outro lado”.

4. Defesa radical das pautas pró-vida e pró-família, como oposição aos direitos sexuais e reprodutivos conquistados no ambiente do Estado democrático. Para isso, há imposição de pânico moral e uso de desinformação sobre a ameaça da suposta “ideologia de gênero”, em especial sobre crianças e adolescentes, via educação sexual nas escolas.

5. Assimilação do discurso armamentista e da linguagem da autodefesa e da vingança com interpretação ideológica da Bíblia para ajustar o discurso religioso da pacificação à retórica bélica.

6. Guerra cultural contra o perigo comunista/socialista/marxista, identificado como inimigo da pátria, da família, de Deus e das igrejas, interpretado como entrincheirado em partidos políticos de esquerda, em movimentos sociais e de direitos humanos, em sindicatos, entre professores e professoras em todos os níveis educacionais e na ciência em suas diferentes dimensões.

7. Intensa ocupação das mídias sociais, com a produção ostensiva de conteúdo comprovadamente falso e enganoso com base em terrorismo verbal (imposição de medo), referente às ameaças daqueles que são compreendidos como inimigos da pátria, da família e de Deus, com forte ênfase no perigo do fechamento de igrejas e do silenciamento dos cristãos sob uma possível vitória das esquerdas nas urnas.

8. Ocupação das mídias religiosas institucionais e independentes para propagação desse conteúdo religioso-político e repercussão da desinformação publicada por perfis de influenciadores cristãos em mídias sociais.

9. A Teologia do Domínio, com o discurso que estimula a postura “anti” e a guerra cultural, passa a ser aplicada dentro das próprias igrejas, com ações de discriminação, exclusão, expurgos e perseguições a fiéis das igrejas e demais grupos religiosos identificados como não alinhados, que revelam simpatia ou ativismo progressista, de esquerda, por direitos humanos. Para isso se constrói uma noção de pecado e interdição ao alinhamento progressista que torna possível a desqualificação da fé desses opositores, bem como permite a intimidação e o assédio que lhes são impostos.

 

A demanda por novas abordagens

Um olhar preliminar para levantar parlamentares com identidade religiosa cristã, eleitos para a Câmara Federal, mostra o predomínio dessa nova direta. Dos cerca de 71% dos eleitos que manifestaram em campanha identidade religiosa cristã, seja por vinculação notória, seja por autoidentificação ou uso de linguagem e de relacionamento com igrejas, 50% são identificados com a direita, 34,5% com a esquerda (com ampla maioria de católicos) e 15,5% com o centro, sendo a maior parte com tendência à direita. As candidaturas cristãs de direita mobilizaram amplamente a pauta moral (pró-vida, pró-família, antidireitos sexuais e reprodutivos) com discursos antiesquerda de terror verbal, com significativo número com apologia às armas e à militarização.

Esse quadro se soma à expressiva quantidade de votos que Jair Bolsonaro alcançou no segundo turno da disputa para a Presidência, boa parte depositada por evangélicos e católicos, segundo as pesquisas eleitorais. Isso indica quanto o discurso da direita cristã sobre política, o Brasil, Deus e a fé tem sido bem-sucedido. Mais do que votos, a direita cristã conquistou “corações e mentes”.

A radicalização do discurso de campanha pró-Bolsonaro nas igrejas no segundo turno, com a desqualificação extrema e a guerra às esquerdas, levou até mesmo a ataques para além dos discursos de mídias sociais. Houve episódios presenciais de ataques a padres, a pastores, interrupções de missas e impedimentos de eventos promovidos por cristãos progressistas. O caso do evento paralelo promovido pelo grupo extremista católico liderado pelo Centro Dom Bosco, durante as celebrações do tradicional Dia de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro, com vaias ao arcebispo que fazia um sermão na Basílica, expressa o clima que se formou.

Os efeitos dessa radicalização se dão nos desdobramentos do desfecho das eleições, pós-vitória de Jair Bolsonaro. No momento em que este artigo é redigido, lideranças cristãs se dividem. Um expressivo grupo se expõe entre chorar a derrota do “escolhido de Deus”, encontrar uma nova teologia que explique o fracasso das profecias, animar o rebanho para os novos tempos sem um protagonista no poder e manifestar indignação com os possíveis 30% irmãos de fé que se colocaram em oposição a ele.

Outro grupo leva a radicalização adiante, a guerra espiritual a ser travada em etapa mais profunda, com a contestação dos resultados, a participação em atos de desestabilização do processo pós-eleitoral, com bloqueio de rodovias e chamado ao enfrentamento pela “deseleição” de Lula com intervenção militar.

O futuro se mostra mais desafiador diante do novo governo. O Brasil, que sempre foi marcado por uma incrível pluralidade religiosa, agora convive com a força de uma direita cristã, que tem ao redor de si uma articulação inter-religiosa ultraconservadora que fala às demandas mais profundas da população e mexe com sentimentos e imaginários.

As pautas de direitos seguirão ameaçadas e essa proposta religiosa continuará atuando de forma política, com apelo a medos, à intolerância, à guerra e à imposição da insegurança com o presente e o futuro.

Ao novo governo emerge o desafio não apenas de conviver com esta nova realidade, mas também de aprender com ela e considerar os múltiplos espaços de audição e diálogo. Acima de tudo, considerar o lugar relevante que a religião tem na vida da população e reforçar quem já diz isso há muito tempo e tem buscado, nos espaços religiosos progressistas e ecumênicos, construir pontes com esse vigor que vem das bases e pode ser acionado na defesa da democracia, dos direitos e do bem viver.

*Magali Cunha, jornalista e doutora em Ciências da Comunicação, é colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e editora-geral do Coletivo Bereia.

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