Política e patologia do golpismo
Há narcisismo, histeria coletiva e
paranoia nas hordas bolsonaristas que rejeitam as urnas. Mas também há tática:
sob estética tosca, de um fanatismo caricatural, querem negar os conflitos
democráticos e submeter lei a interesses particulares
Eduardo Guimarães,
Outras palavras
Foram suficientes poucas horas
depois do resultado das eleições presidenciais para que pudéssemos testemunhar
a multiplicação de manifestações golpistas e antidemocráticas pelo país.
Um déjà vu? Em 1930, Getúlio Vargas já havia alegado uma suposta
fraude nas eleições para justificar seu golpe, impedindo que Júlio Prestes, o
candidato que havia sido vitorioso no pleito, pudesse assumir o cargo de
presidente da República. Em 2014, mais recentemente, o PSDB, motivado pela
suspeita e desconfiança nas urnas eletrônicas, contestou a vitória de Dilma nas
eleições presidenciais. A contestação dos resultados eleitorais, portanto, não
é uma novidade, e sim uma repetição na história do Brasil. Provavelmente, a
novidade residiria na forma de expressão das atuais manifestações golpistas,
configuradas por uma acentuada teatralidade e por atingir as raias do absurdo.
O conteúdo dessas manifestações
varia. Em Porto Alegre, ao receberem a falsa notícia da prisão do ministro
Alexandre de Moraes, manifestantes golpistas gritavam, se abraçavam e
agradeciam a Deus pela dádiva recebida. Em outro vídeo, bolsonaristas parecem se
encontrar em um estado de êxtase místico com a circulação da notícia, mais uma
vez falsa, de que a fraude nas urnas havia sido confirmada. É inegável a alusão
ao pentecostalismo: o Espírito Santo, finalmente, se fez presente e recolocou
as coisas em seu devido lugar. Em Niterói, os muros dos quartéis foram elevados
à condição de muro das lamentações. Assim como os judeus diante do único
vestígio do Templo de Herodes, os fiéis da extrema direita, teatralizando uma
farsa em relação ao seu modelo original, se dirigem aos muros dos quartéis para
orar e suplicar, mas suas demandas exigem, de uma vez por todas, a efetivação
do golpe na Terra. Se a atmosfera religiosa não lhe agrada tanto, em Itajaí
tivemos fileiras de crianças e adolescentes marchando ou caminhando em ritmo
marcial, uma clara alusão ao militarismo protofascista e uma infração
vergonhosa ao ECA. Em Caruaru, por fim, notamos que Mad Max não
ficou de fora nessa história, quando um golpista se agarrou e permaneceu,
durante quilômetros, na frente de um caminhão em movimento em uma rodovia.
Todas essas manifestações parecem
despertar o juízo crítico mais acentuado em muitos daqueles que reconhecem a
vitória de Lula. De modo jocoso – mas nem sempre –, é sugerido que essas
manifestações são casos dignos da psiquiatria. A Loucura, liberta das amarras
da razão, teria inoculado em suas vítimas uma alta dose de seu veneno.
Evidentemente, os discursos críticos às manifestações golpistas não abordam o
tratamento ou o cuidado do louco, mas são movidos pelo imperativo de controlar,
por meio da patologização, aquilo que ameaça a ordem republicana.
Podemos reconhecer nessas
manifestações um processo regressivo em direção às trincheiras do narcisismo. O
mundo é feito à minha imagem e semelhança, e qualquer regra ou norma que a
contrarie deve ser recusada. Também podemos notar uma crise histérica
vivenciada coletivamente. A experiência traumática recalcada e esquecida,
quando ameaça ser despertada, deve receber como resposta uma reação à altura.
Por fim, ainda podemos notar a circulação social de um discurso paranoico.
As manifestações golpistas,
entretanto, não são somente manifestações patológicas coletivas, mas são
manifestações politicamente reativas contra o avanço daquilo que combatem. Para
que fique claro de uma vez por todas: estamos diante de uma luta de classes. A
vitória de Lula afeta diretamente o discurso hegemônico de manutenção da
desigualdade social, de justificação da pobreza como efeito do fracasso
individual e de valorização do capital acima do ser humano. A luta de classes
nem sempre é reconhecida pela declaração direta de seus envolvidos, mas pode
ser percebida pelos efeitos que pretende alcançar.
Diferentemente do discurso de
patologização da política, a psicanálise não é indiferente ao social. As queixas
e o sofrimento que chegam na clínica não estão isolados do discurso que circula
socialmente. É verdade que o indivíduo não é o mero espelho da sociedade, mas
as experiências patológicas não estão dissociadas de uma configuração social
localizada no tempo e no espaço e definida por questões de classe, gênero e
raça. As experiências patológicas coletivas que vamos presenciando estão
intimamente associadas com o momento político em que nos encontramos e com a
retomada de uma longa história de luta social na história do Brasil.
Se seguirmos esse raciocínio,
vamos precisar colocar em seu devido lugar algumas das falas que vêm circulando
sobre as manifestações golpistas. Frequentemente, essas falas são
interpretações irônicas – e, muitas vezes, bem-humoradas – do momento atual,
mas não alcançam o verdadeiro conflito subjacente. As manifestações golpistas
que estamos presenciando, configuradas em uma estética tosca e caricatural, não
são apenas expressões de patologias sociais, mas também são táticas que visam
suprimir o conflito político com o não reconhecimento do jogo eleitoral. Melhor
ainda: a patologia social não pode ser compreendida se desconsiderarmos sua
relação com os conflitos sociais e políticos.
A desconfiança e o questionamento
das urnas são uma repetição na história do Brasil em momentos políticos
decisivos. Algumas das novidades que presenciamos atualmente é sua íntima
associação com a religiosidade pentecostal e sua configuração estética
caricatural. Mas não podemos deixar de reconhecer que se trata de um discurso e
de sua relação com a Lei. Nesse discurso que tem circulado velozmente, a Lei
deve ser submetida aos interesses particulares. Quando isso não ocorre, a Lei
deve ser desobedecida.
Leia também: Suplantar a cultura do
ódio é uma luta de longo curso https://bit.ly/3Us8tfj
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