03 abril 2023

Evangélicos fraturados

Juntando os cacos: os evangélicos na ressaca do bolsonarismo

Desde a derrota de Bolsonaro nas urnas, os evangélicos têm procurado mudar de tom
Rafael Rodrigues da Costa/Le Monde Diplomatique



A cem dias de governo Lula, o campo evangélico ainda parece estar em dificuldades para reorganizar suas bases em torno de um projeto político comum. Após a derrota de Bolsonaro nas urnas, seguida pela tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro, os evangélicos – que até então se prefiguravam como um dos maiores bastiões do bolsonarismo – estão agora divididos entre a apatia conservadora e a disputa pelo “novo Messias” da direita.
Para compreender os meandros dessa nova fratura no (já bastante fraturado) campo evangélico, é preciso levar em conta alguns pontos de destaque. Em primeiro lugar, o fator histórico: durante décadas, os evangélicos brasileiros foram muito resisten tes a uma participação política mais engajada. Inspirados por uma leitura religiosa que entende que o cristão deve ter por princípio evitar se envolver em assuntos deste mundo (público), gerações de evangélicos adotaram uma postura quietista em relação à política.
Embora essa tenha sido a postura mais ou menos comum entre os evangélicos ao longo da sua história, o fato é que os ventos políticos dos anos 2010 anunciavam um furacão no campo evangélico no país. Uma das principais razões para essa mudança foi a guinada progressista ocorrida durante os governos Lula e Dilma. Esse movimento afastou gradualmente as lideranças evangélicas da posição tradicional governista, levando-as a adotar uma postura conservadora mais militante. Além disso, o próprio projeto de poder evangélico, que pretendia (e ainda pretende) converter as instituições sociais e políticas do país em difusores do cristianismo fundamentalista, também contribuiu para esse processo. Como resultado, fiéis e lideranças abandonaram o antigo estilo de que “crente não se mete em política” em favor de um novo lema: “O Brasil é do Senhor Jesus”.
Não surpreende, a partir desse ponto de vista, a participação entusiasmada dos evangélicos na campanha de Jair Bolsonaro em 2018. Tendo como slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, Bolsonaro parecia canalizar essa visão de mundo evangélica, tradicionalmente dispersa e fraturada por denominações, em um projeto político unificado, encabeçado por um líder e contra um inimigo comum: a “esquerda”, aqui entendida menos como um lado do espectro político e mais como uma categoria genérica o suficiente para encarnar em pessoas e partidos todo o pânico moral disseminado pela extrema-direita.< /span>
A narrativa pegou. E, assim, os evangélicos ultraconservadores não só passaram a dominar o campo protestante, como também assumem, a partir de 2018, um senso de coesão e unidade inéditos em apoio à pessoa e ao projeto simbolizado por Jair B olsonaro. Prova disso é que mesmo após os quatro anos desastrosos de governo Bolsonaro na saúde, na economia e na política, os evangélicos praticamente não mudaram a sua orientação de voto em 2022, mantendo o seu apoio a Bolsonaro próximo a 70% no segundo turno das eleições do ano passado.
Desde a derrota de Bolsonaro nas urnas, porém, os evangélicos têm procurado mudar de tom. De um lado, porque o envolvimento político das lideranças provocou um significativo desgaste interno nas igrejas, o que fez com que alguns pastores e líderes adotassem um caráter mais pragmático preferindo retornar ao estilo tradicional quietista do que dobrar a aposta bolsonarista. Por outro lado, porque o próprio apoio a Bolsonaro passou a diminuir entre os evangélicos à medida que o ex-presidente não reagiu diante dos eventos políticos recentes, preferindo o auto-exílio nos Estados Unidos, algo que foi lido por parte do eleitorado como uma traição de Bolsonaro aos “patriotas”.
O aparente silêncio das lideranças evangélicas nos púlpitos, porém, não significa um abandono nem da agenda política conservadora nem do projeto político fundamentalista. Pelo contrário, desde o pronunciamento do deputado evang élico e bolsonarista Nikolas Ferreira (PL) contra as mulheres trans no dia 8 de março, é possível observar pelas redes que lideranças ultraconservadoras têm procurado juntar os cacos do apoio político dos evangélicos a partir de temas como pânico moral, sobretudo relacionado aos direitos das populações trans, além de narrativas que buscam associar o atual governo com a violência urbana e o crime organizado.
Se essas narrativas serão suficientes para reaquecer o ânimo evangélico dos últimos anos, ainda é cedo para dizer, mas é inegável a força ideológica que a extrema-direita desperta nas mentes e nos corações dos eva ngélicos brasileiros. Se a esquerda e o campo progressista não colocarem como urgente a tarefa de criar freios para o avanço do fundamentalismo religioso, corremos sério risco de retornarmos num futuro próximo a um Brasil terrivelmente evangélico, conservador e antiesquerdista.
 

Rafael Rodrigues da Costa é sociólogo, mestre em Ciências Sociais pela Unifesp e pesquisador visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor convidado da Pós-Graduação da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP).
Quem não tem cão, caça de qualquer jeito https://bit.ly/3Ye45TD

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