A idolatria a autores de ataques a
escolas que circula livremente em redes sociais
Letícia Mori e Vinícius Lemos/BBC
Inúmeros textos,
fotos e vídeos com elogios e celebração a autores de ataques a escolas e à
violência cometida por eles circulam livremente nas redes sociais.
E não é preciso entrar na deepweb ou procurar extensivamente. Não se
trata de um submundo oculto, mas de um conteúdo acessível, inclusive para adolescentes,
em grandes plataformas de compartilhamento de conteúdo da internet, como
Twitter e Tiktok.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, esses conteúdos abertos na
internet também são formas de cooptar jovens que tenham algum mínimo interesse
no tema. E, a partir disso, esses pré-adolescentes ou adolescentes são
convidados para fóruns específicos – muitos deles fechados para evitar que
sejam rastreados.
A reportagem entrou em contato com o Twitter, mas a rede social, que
relaxou seu controle após ser comprada por Elon Musk, não responde mais a
questionamentos da imprensa. O TikTok afirma que tem mecanismos para receber
denúncias sobre possíveis casos de incitação a ataques e que trabalha
continuamente para remover esse tipo de conteúdo.
O ataque a uma creche de Blumenau (SC) na quarta-feira (5/4), segundo
apurações iniciais da polícia, é um caso isolado e sem relação com a onda de
massacres em unidades de ensino no país na última década e não tem vínculo com
as redes sociais.
Porém, o
caso do adolescente 13 anos que invadiu uma
escola em 27 de março na Zona Oeste de São Paulo, matou uma professora e
feriu cinco pessoas, fazia referências a um dos autores do massacre em Suzano
(SP) em 2019.
Em seu perfil no Twitter, o adolescente de 13 anos
adotava o mesmo sobrenome do autor do ataque em Suzano.
As postagens nas redes
Basta uma busca no
Twitter ou no TikTok para encontrar publicações que exaltam atiradores que
invadiram unidades de ensino.
Boa parte desse conteúdo é encontrada com uma
hashtag específica que costuma ser usada por adoradores desses indivíduos. Em
muitos desses casos, segundo especialistas, esses “fãs” são crianças ou
adolescentes, que acabam compartilhando conteúdos favoráveis a essas pessoas.
Por exemplo, um perfil no Twittter compartilhou
recentemente uma mensagem que definia alguém que comete um massacre como uma
pessoa “com coragem”. E esse mesmo perfil deu a entender que um dia fará algo
semelhante e vai “mandar aquela gente do inferno de volta”. Na foto desse
perfil, há uma pessoa com uma máscara de caveira.
Essa máscara, muitas vezes impressa em uma bandana,
é a mesma usada por muitos perfis que cultuam esses assassinos na internet. O
autor do massacre em Suzano, que se matou após o ataque, usava essa máscara –
que também foi usada pelo jovem de 13 anos que atacou uma escola no início da
semana passada. Segundo pesquisadores, é um símbolo da supremacia americana.
Muitas das contas que exaltam responsáveis por
massacres cultuam solidão e sofrimento, declarando “ódio ao mundo”. São, como
definem especialistas, “lobos solitários”. Em muitos desses perfis, há
conteúdos de misoginia ou racismo.
Em um desses perfis, há um vídeo com montagem de
fotos de cenas de horror nas escolas – incluindo os casos de Suzano e o ataque
da semana passada. Esse material é acompanhado de uma música animada, típica de
cenas de ação.
Em outro perfil, um jovem com a foto de um atirador
retratado em uma série da Netflix compartilha uma foto de sua carteira na
escola e escreve que está “de volta ao inferno”.
Após o ataque a faca em São Paulo em 27 de março,
os próprios usuários do Twitter perceberam que buscar pelo nome do autor do
crime de Suzano e por algumas hashtags específicas levava a um conteúdo
perturbador. Em razão disso, começaram a denunciar em massa esses perfis. No
entanto, a maioria deles segue ativa na rede social.
A política de combate ao discurso de ódio da
plataforma, que já era muito questionada, mudou totalmente depois da aquisição
da empresa por Elon Musk, que fez demissões em massa e defende publicamente
manter perfis problemáticos em nome da liberdade de expressão.
A BBC News Brasil procurou oficialmente o Twitter
para questionar sobre o incentivo ao homicídio de crianças e adolescentes em
escolas na plataforma e a resposta foi um e-mail com um emoji de fezes –
prática que se tornou habitual a qualquer questionamento da imprensa.
No TikTok, também chama a atenção o conteúdo
voltado a esses perfis que cultuam responsáveis por massacres em escolas.
Na plataforma de vídeos, há muitas imagens e textos
que demonstram admiração aos agressores, inclusive ao adolescente de 13 anos
que matou a professora em março. Um vídeo com uma foto dele é acompanhado da
frase “espero que você esteja bem”. É apenas um exemplo em meio a tantas outras
homenagens compartilhadas na plataforma.
E no TikTok há também inúmeros vídeos que
homenageiam o autor do massacre de Suzano. Em um deles, por exemplo, a foto
dele é acompanhada da frase “ele parece um sonho, o garoto mais bonito que eu
já vi”.
Essas publicações costumam ter centenas de curtidas
e comentários elogiosos. Na imensa maioria, os perfis que interagem com esses
vídeos dizem ser pré-adolescentes ou adolescentes – faixa etária de grande
parte dos usuários da plataforma.
Em nota à BBC News Brasil, o TikTok afirma que esse
tipo de conteúdo é proibido na plataforma e diz que tem diversos mecanismos
para que os usuários denunciem.
“Não há espaço para extremismo violento no TikTok e
trabalhamos continuamente para remover qualquer conteúdo e indivíduos que
prejudiquem a experiência criativa e alegre que as pessoas esperam em nossa
plataforma”, diz a empresa.
O TikTok também afirma que está analisando as
postagens encontradas pela BBC News Brasil e que tomará providências em relação
a elas.
A plataforma diz, ainda, que a publicação do vídeo
não significa que ele será sugerido pelo algoritmo para outros usuários.
Os riscos da idolatria a massacres
Essa espécie de idolatria aos
responsáveis por massacres, segundo especialistas, é justamente o que muitos
desses grupos buscam. Esses indivíduos podem enxergar as notícias e divulgação
de seus nomes como algo que faz com que se tornem relevantes. E, assim, são
reconhecidos nesse meio extremista.
Para Letícia
Oliveira, que há 11 anos monitora a extrema direita brasileira na internet, o
fato de o atirador de Suzano ter morrido após o ataque e a intensa divulgação
do nome e do rosto dele estão entre os principais motivos para que ele tenha se
tornado um ídolo nesse meio.
“É a pessoa que conseguiu passar por tudo aquilo
que eles gostariam de passar. É a intenção de matar e aquele que entra em
confronto com a polícia e morre ou se suicida vira ‘sancto’ pra eles, ou seja,
é cultuado como um santo”, explica.
Em dezembro de 2021, a idolatria ao atirador de
Suzano foi apontada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) durante
uma operação que investigou grupos neonazistas no país.
Na época, o promotor Bruno Gaspar, do MP-RJ, passou
meses apurando o funcionamento de grupos neonazistas no país. Em entrevista à
BBC News Brasil no período, Gaspar lamentou a constatação de que o responsável
pelo crime era reverenciado.
"A gente tá falando de uma pessoa que matou
alunos, estudantes e funcionários de uma escola e se tornou ídolo para essas
pessoas", disse Gaspar em dezembro de 2021.
O massacre de Suzano ocorreu em 13 de março de
2019, na Escola Estadual Raul Brasil. Ao todo, 10 pessoas morreram. Além do
adolescente reverenciado nas redes, um colega dele, de 25 anos, também
participou do ato.
Segundo a investigação, eles teriam se inspirado no
massacre da escola de Columbine, no Estado americano do Colorado, em 1999,
quando dois alunos assassinaram 13 pessoas e feriram 24.
Essa idolatria a responsáveis por ataques, apontam
especialistas, pode ser um importante alerta sobre os riscos de um possível
massacre.
No caso do ataque em São Paulo na semana passada,
por exemplo, o adolescente de 13 anos disse à polícia que se inspirou nos
massacres de Suzano e de Columbine.
A pesquisadora Michele Prado, do Monitor do Debate
Político no Meio Digital da USP (Universidade de São Paulo), afirma que uma
pessoa que compartilha esse tipo de conteúdo ou idolatra responsáveis por
massacres “não é um criminoso em potencial, mas é alguém que acredita que a
violência é uma solução legítima para as suas demandas”.
“Quando alguém começa a reproduzir esses conteúdos,
é um sinal vermelho de que a pessoa acredita que a violência é a única solução
para a sua demanda, para a sua queixa”, comenta.
Um dos riscos, apontam pesquisadores sobre o tema,
é que esse indivíduo passe a frequentar grupos que apontam para ele que a
violência é a principal solução para queixas que pode possuir, como bullying,
violência ou qualquer tipo de inadequação social.
“Nesse caso pode ocorrer uma radicalização tamanha
que faz a pessoa acreditar que matar outras pessoas é a solução para as suas
queixas. E disseminar esses conteúdos (favoráveis a responsáveis por massacres)
pode significar que ele tem a sua visão fortalecida e há potencial para chegar
ao extremo da ação violenta”, pontua.
“Todos que compartilham esses conteúdos vão
executar? Não. Provavelmente é uma minoria que vai chegar ao extremo. Mas não
há dúvidas de que isso é um sinal vermelho”, diz Prado.
Recrutados pelas
redes
Esses espaços nas
redes sociais acabam sendo ambientes onde os agressores se articulam, segundo o
trabalho da pesquisadora Telma Vinha, do grupo de estudos “Ética, diversidade e
democracia na escola pública”, da Unicamp. Os métodos dos ataques são
aprendidos na internet, disse ela em uma palestra logo após o ataque em São
Paulo, onde muitos jovens são aliciados e apresentados a conteúdo de extrema
direita.O grupo de estudo de Vinha mapeou 22 ataques a escolas no Brasil nas
duas últimas décadas.
Nos últimos anos, houve uma explosão de conteúdos
extremistas compartilhados abertamente nas redes sociais, aponta Thiago
Tavares, presidente da SaferNet Brasil, ONG que atua desde 2006 na promoção e
defesa dos direitos humanos na internet e recebe denúncias anônimas sobre
crimes.
“O que a gente tem visto é um recrudescimento da
radicalização entre jovens, que são muitas vezes recrutados pelas redes, como
por meio de fóruns de games, em plataformas específicas ou em redes sociais
como o Twitter. Já a DeepWeb é usada quando já existe um certo nível de
radicalização instaurado”, diz Tavares.
Ele acredita que isso se deve, principalmente, a
situações como a polarização política dos últimos anos e o avanço de muitos
movimentos associados à extrema direita no país. "São grupos que alimentam
ódio contra diferentes, minorias historicamente discriminadas no paíos, como
LGBT, mulheres e negros", afirma.
A pesquisadora Letícia Oliveira, que monitora a extrema direita há mais
de uma década, ressalta que os jovens são cooptados em locais virtuais como
chats de jogos online ou plataformas como o TikTok ou o Twitter. “Também usam
muito o WhatsApp”, diz.
O WhatsApp informa, em nota, que usa criptografia
de ponta a ponta como padrão, o que, segundo o aplicativo, não permite que
tenha acesso ao conteúdo das mensagens trocadas entre usuários e, por isso, não
realiza moderação de conteúdo.
Apesar disso, o WhatsApp afirma que não permite o
uso do seu serviço "para fins ilícitos ou que instigue ou encoraje
condutas que sejam ilícitas ou inadequadas. Nos casos de violação destes
termos, o WhatsApp toma medidas em relação às contas como desativá-las ou
suspendê-las."
"O aplicativo encoraja que as pessoas reportem
condutas inapropriadas diretamente nas conversas, por meio da opção “denunciar”
disponível no menu do aplicativo (menu > mais > denunciar) ou
simplesmente pressionando uma mensagem por mais tempo e acessando menu >
denunciar. Os usuários também podem enviar denúncias para o email
support@whatsapp.com, detalhando o ocorrido com o máximo de informações
possível e até anexando uma captura de tela”, diz o WhatsApp.
“Quando uma pessoa envia uma denúncia, o WhatsApp
recebe as últimas cinco mensagens, ou a mensagem especificamente reportada
daquela conversa. O usuário ou grupo denunciado não recebe nenhuma notificação
sobre essa ação”, acrescenta a nota da plataforma.
A reportagem também procurou a Meta, responsável
pelo Instagram e pelo Facebook, para saber quais medidas são tomadas nessas
redes em relação ao tema.
Em nota, a empresa afirmou que não permite que
organizações ou indivíduos "que anunciem uma missão violenta ou que
estejam envolvidos em violência tenham presença nas plataformas da Meta. Isso
inclui organizações ou indivíduos envolvidos nas seguintes atividades: atividade
terrorista, ódio organizado, assassinato em massa (incluindo tentativas) ou
chacinas, tráfico humano e violência organizada ou atividade criminosa. Também
removemos conteúdo que expresse apoio ou exalte grupos, líderes ou indivíduos
envolvidos nessas atividades.”
“Além disso, disponibilizamos ferramentas para
apoiar pais e responsáveis a supervisionar e guiar a experiência de seus filhos
adolescentes em nossos aplicativos, disponíveis na Central da Família. Os
recursos ajudam os pais no controle parental para que possam conversar com os
jovens sobre o que estão consumindo online”, acrescenta a Meta.
Ainda em nota, a Meta pede que as pessoas denunciem
conteúdos que violem suas regras e afirma que "colabora com as autoridades
locais, respondendo às solicitações governamentais de dados nos termos da
lei".
A vida é e
sempre será arriscosa https://bit.ly/3Ye45TD
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