TRITURANDO DIPLOMAS
Sem
perspectiva de emprego em suas áreas, pesquisadores doutores aceitam funções
abaixo de sua qualificação
Evanildo da Silveira, revista piauí
O engenheiro
químico Filipe Gaudie Ley Lindau, doutor em geoquímica desde o ano passado,
quando concluiu o curso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
está com data marcada para ficar desempregado. Sua bolsa de pós-doutorado, na
mesma universidade, acaba no dia 28 de fevereiro. A partir de então, ele não
tem ideia do que fará. Tem apenas uma vaga esperança de que algum dos projetos
de pesquisa que está escrevendo para concorrer em editais na França seja
aprovado. Até lá, Lindau desenvolve sua pesquisa no pós-doutorado, num projeto
do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera, ligado ao
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Realizado no Centro Polar
e Climático da UFRGS, o trabalho é financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que repassa o dinheiro à
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), que por
sua vez paga os pesquisadores e seus pós-doutorandos por meio de bolsas – são
oito, como a da Lindau, no valor de 4 mil reais cada, além de dez estudantes de
doutorado que recebem 2.200 reais.
Por causa da pandemia,
todos estão trabalhando remotamente. Lindau faz o trabalho em casa, sozinho
numa mesa, diante de um computador. “Eu estudo e avalio os resultados das
análises que fiz no laboratório, entre 2018 e 2019, das amostras de gelo que
coletei em 2017, no pico Nevado Illimani, a segunda montanha mais alta da
Bolívia”, conta. Lindau é um entre muitos doutores recém-formados no Brasil que
veem o desemprego rondar. É cada vez maior o número de jovens profissionais com
doutorado que não conseguem atuar de acordo com sua qualificação. Há uma taxa
de crescimento natural do número de doutores formados a cada ano. Então, também
é normal que o de doutores empregados e daqueles que não conseguem trabalho em
suas áreas também cresça. O que ocorre, porém, é que o segundo grupo está
aumentando bem mais.
De acordo com dados do Centro de Gestão e Estudos
Estratégicos (CGEE), órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovações (MCTI), entre 2014 e 2017, últimos dados oficiais disponíveis, o
total de doutores no país passou de 168.677 para 229.732, o que representa um
crescimento de 36,1%, enquanto o número de empregados formais foi 127.271 para
166.129, ou seja, um aumento menor, de 30,5%. O problema maior é o número de
doutores sem emprego formal na sua área de especialização, que passou de 41.406
para 63.603 no mesmo período, um salto de 53,6%.
Muitos
dos doutores recém-formados não estão tecnicamente desempregados, mas trabalham
em ocupações muito aquém daquelas para as quais se prepararam ao longo de anos.
Para ter como pagar as contas, aceitam funções e salários abaixo de sua
qualificação – e vivem a frustração de não ver os resultados de todo o tempo de
investimento em sua formação, que leva anos, além da sensação de desperdício de
tempo e de dinheiro, deles e do país.
A bióloga Amanda de
Oliveira Ribeiro, que se doutorou em 2018 em ciências (biologia genética), na
Universidade de São Paulo (USP), também fala com tristeza da situação. Depois
de 13 anos de estudo e sem perspectiva como pesquisadora ou professora, começou
a trabalhar como técnica de laboratório em uma empresa privada, e depois passou
para outra. Paralelamente, ela atua como pesquisadora voluntária – sem renda,
portanto – junto a grupos de pesquisa dos quais é colaboradora. “Do ponto de
vista pessoal, nossa formação jamais será desperdiçada. A maior perda, a meu
ver, é a de quem pagou por toda essa formação, que agora deixa de ser revertida
em favor de todos. E quem paga por ela é a sociedade.”
Apesar disso, ela não
desistiu de fazer uma carreira científica e pretende insistir na área da
pesquisa por mais alguns anos. “Mas minha realidade, assim como a de muitos
outros recém-doutores, não me permite viver indefinidamente sem perspectiva de
ser formalmente inserida numa universidade como profissional.” Para Ribeiro, a
frustração é menos pelo sonho pessoal e mais pela forma como a educação, a
ciência e a cultura estão sendo tratadas no Brasil. “É óbvio que houve um
investimento meu – tanto de recursos, quanto de tempo – na minha formação, e eu
ficaria muito satisfeita se pudesse revertê-la para o benefício da sociedade.
Porém, pensando além de mim, minha tristeza é pelo projeto de sucateamento das
nossas universidades que tem sido implantado pelo governo Bolsonaro.”
Para os doutores, uns
jovens e outros nem tanto, a carreira de professor é um caminho – mas a
pretensão esbarra na redução drástica de concursos para docentes efetivos. “A
grande maioria dos que têm sido abertos é para preencher vagas de professores
substitutos, muitas vezes contratados para trabalhar por quatro ou cinco
meses”, revela. “Considero essa forma de suprir a demanda por docentes um
retrocesso, uma vez que não contempla as áreas de pesquisa e extensão, além de
gerar insegurança financeira no profissional ao final de um contrato tão curto.”
O médico e biólogo Edson
Antonio Tanhoffer, doutor em fisiologia e professor da Universidade Federal do
Paraná (UFPR), diz que não é necessário ir longe para perceber a dimensão do
problema. Ele conta que o último concurso de que participou como integrante de
banca na sua universidade, para uma vaga de 20 horas semanais de professor
substituto, com salário próximo a 3 mil reais, teve 33 concorrentes. “Um outro
para dedicação exclusiva, mais cobiçado, no Departamento de Farmacologia, teve
mais de cem candidatos”, diz. “O número de inscritos nesse tipo de seleção é um
bom termômetro da situação.”
Conseguir uma bolsa de
pós-doutorado, como foi o caso de Lindau, é outra opção para muitos desses
jovens doutores. A dificuldade é que, assim como ocorre com outras modalidades
de bolsas, os editais contemplam cada vez menos pedidos. De acordo com a tabela
da Capes, a bolsa de pós-doutorado é 4.100 reais. No mestrado e no doutorado,
os valores são, respectivamente, 1.500 e 2.200 reais, mas não são reajustados
desde 2013. Em contrapartida, a alta dos preços de produtos e serviços diminuiu
o poder de compra das bolsas em mais de 60% no mesmo período.
A situação tende
a se agravar com a decisão do Ministério da Economia, tomada no dia 6 de
outubro, de cortar cerca de 90% dos recursos destinados ao MCTI, principalmente
para bolsas e apoio a pesquisas e projetos já aprovados pelo CNPq. Os recursos
cortados estavam previstos no Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN)
16/2021. Na véspera da sua aprovação pelo Congresso Nacional, no entanto, o
ministro Paulo Guedes enviou ofício à Comissão Mista do Orçamento mandando
redistribir com outros ministérios 690 milhões de reais em créditos
suplementares previstos somente para o MCTI. A
versão do PLN aprovada pelo Congresso agora prevê 89,8 milhões de reais para o
MCTI, dos quais somente 7,2 milhões são para livre investimento da pasta em
pesquisa e desenvolvimento científico.
O orçamento aprovado
para o CNPq em 2021 é o menor do século. A Capes é outro
foco de crise no governo: nesta segunda-feira (29/11), 6 coordenadores e 46
consultores da instituição responsáveis pela avaliação e aprovação de cursos de
pós-graduação renunciaram aos cargos, fazendo críticas à presidência do órgão.
Doutor desde 2015 pelo
Instituto de Biologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), o biomédico
Renato da Silva Júnior também vem fazendo pós-doutorado. A diferença é que ele
não tem bolsa, ou seja, não está ganhando nada. “Recentemente, comecei a atuar também
como professor na Faculdade de Ciências Médicas de Maricá, da Universidade de
Vassouras”, conta. “No geral, as perspectivas não são nada amplas, existe muita
dificuldade de se ingressar no mercado de trabalho, pois as oportunidades são
bem escassas. E com os cortes de verbas para as agências de fomento, tudo fica
mais difícil ainda.”
O vice-coordenador
do Programa de Pós Graduação em Microbiologia e Parasitologia Aplicadas
(PPGMPA/UFF), Brunno de Araújo Penna, acrescenta outra causa da
falta de oportunidades para os doutores recém-titulados. De acordo com ele,
isso ocorre principalmente pela falta de um projeto de governo que estimule o
crescimento da pesquisa ou a participação da iniciativa privada nesse processo.
“Sem investimento e sem abertura de vagas, eles acabam não sendo absorvidos”,
explica. “A opção, muitas vezes, é tentar uma contratação por instituições de
ensino particulares, onde acabam não conseguindo desenvolver suas pesquisas.
Falta visão no país para perceber que essa mão de obra hiperqualificada deveria
ser melhor aproveitada.”
Não são apenas os
recém-doutores que sofrem as consequências dessa situação. O próprio país
também as sente. “A mais aguda é o desperdício de recursos públicos”, diz
Tanhoffer. “A formação de mão de obra com esse grau de sofisticação é
caríssima. Se formos pensar de forma mais ampla, ao não aproveitar um cientista
abrimos mão de produção intelectual e importamos tecnologia e, pior ainda,
sucateamos as instituições que deveriam formar novas gerações de profissionais.”
Ele lembra ainda que ao
formar um doutor o país não tem só um cientista, mas um docente pesquisador.
“Muitos se colocam em universidades particulares, que, em geral, se arrepiam só
de pensar em investir em ciência”, diz. “Nessas instituições, os profissionais
com titulação alta têm como principal função entrar nas estatísticas, que
qualificam o curso frente ao Ministério da Educação (MEC). A ciência não é a
vocação de universidades particulares, salvo honrosos pontos fora da curva.” Em
sua avaliação, o Brasil perde muito com o não aproveitamento dos seus jovens
doutores, pois o conhecimento científico que não é criado aqui tem que ser
adquirido no exterior, com custos em dólar ou euro. As patentes são sempre
muito caras e acabam encarecendo as aplicações tecnológicas de que a sociedade
tem necessidade.
A ciência brasileira
também acaba sendo extremamente prejudicada em todos os sentidos. No caso dos
estágios de pós-doutoramento, o novo doutor não se engaja facilmente nos grupos
pré-existentes, justamente por ser novo e por tempo limitado. “No caso da
contratação no exterior, a perda é total, pois raramente o pesquisador volta ao Brasil depois de
ter se estabelecido no exterior”, acrescenta Annibal Hetem Júnior, professor
do programa de pós-graduação em Energia da Universidade Federal do ABC. “Se
o jovem pesquisador opta por uma nova carreira, fora do âmbito científico,
existe sempre a possibilidade de que uma oportunidade se apresente, para que
ele retorne à ciência, mas esses casos são raros e não resultam em sucesso
imediato”, diz. Para Hetem Júnior, a saída para resolver o problema do não
aproveitamento de jovens doutores passa por ampliar o âmbito e a participação
dos institutos de pesquisa e universidades para atender as demandas da
sociedade, principalmente as indústrias e empresas que utilizam tecnologia de
ponta. “Esses setores são os principais responsáveis pela importação de novos
dispositivos tecnológicos e são os atores responsáveis por ‘cobrar’ a evolução
científica e suas aplicações”, diz.
Penna, por sua vez, vê
outras saídas. Para ele, a curto prazo o melhor caminho seria incentivar a
pesquisa, disponibilizando maior número de bolsas de pós-doutorado. A longo
prazo, ele também defende a maior participação das empresas na absorção dos
jovens doutores. “Precisamos incentivar a iniciativa privada a buscar parcerias
com as universidades em projetos que incorporem esses recém-titulados como
participantes”, defende. “E aumentarmos a disponibilidade de vagas para esses
profissionais, buscando novos moldes de empregos, inclusive dentro das
universidades federais. Poderíamos, por exemplo, ter nas universidades a vaga
de pesquisador, ou seja, alguém que faria apenas pesquisa, sem dar aula.”
Enquanto isso, Lindau vê
o tempo correr e a bolsa se aproximar do final. E já pensa num plano B que
considere um futuro fora da pesquisa científica.
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Veja:
Respostas a
várias perguntas resumidas em 2 pontos https://bit.ly/3ppTPqL
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