Canto de Gal Costa partiu de João Gilberto para inventar um
Brasil
Bossa nova foi o ponto de
partida para a cantora se tornar a voz mais expressiva da tropicália e sinônimo
de música brasileira
Lucas
Brêda, Folha de S. Paulo
Quando Gal Costa, que morreu
nesta quarta-feira, aos 77 anos, encontrou João
Gilberto pela primeira vez, ela ainda não tinha
pisado fora da Bahia. A cantora estava com um jornalista que conhecia
seu ídolo. "Era tão louca por João que pedi para me levar", ela disse,
no ano passado, a este repórter.
João Gilberto reconheceu Gal como uma "menina que canta
bem", da qual tinha ouvido falar, e pediu que ela buscasse o violão.
"Corri em casa, peguei meu violão. Ele cantou e pediu para eu cantar, e
assim foi. Quando parei de cantar —um repertório basicamente dele, que eu
conhecia todo—, ele disse ‘você é a maior cantora do Brasil’. Nossa, foi um
choque. Fiquei louca. Meu maior ídolo."
Àquela altura, o Brasil ainda não sabia da revelação feita pelo
bossanovista, mas era questão de tempo. Ao longo de uma carreira de mais de 50
anos, Gal Costa partiu do canto cochichado do mestre, mas o levou às alturas
com seus agudos, o radicalizou sob a ditadura militar e
transformou sua voz na mais orgânica expressão do tropicalismo —e uma das mais
definidoras da música brasileira.
O começo foi no álbum "Domingo", de 1967, que ela
divide com Caetano Veloso.
Ali, Gal já mostrava que não era uma cantora convencional, preferindo a
estética moderna da bossa nova ao canto empostado, e que tinha a ternura
necessária para passear com delicadeza entre os versos do parceiro em músicas
como "Coração Vagabundo" e "Avarandado".
Mas foi ao
longo dos três álbuns seguintes —os dois álbuns de nome "Gal Costa",
lançados em 1969, e "Legal", de 1970— que ela se soltou de vez. Já em
"Sebastiana", a segunda faixa do primeiro disco, Gal revira a
composição clássica de forró, soltando grunhidos e vocalizes que se desfazem
numa psicodelia tropicalista que nos anos seguintes ficou mais evidente em sua
obra.
Gal tinha voz e técnica para ser uma cantora clássica, mas sua
personalidade e o contexto em que estava inserida a levaram para caminhos
diferentes. Se Caetano e Gil tinham a poesia e o conceito, era em Gal que as
ideias tropicalistas encontravam sua expressão mais fidedigna.
Isso porque Gal incorporava espontaneamente a premissa do
movimento que inaugurou a MPB e estabeleceu uma ideia renovada de Brasil
através da música. É a voz de Gal que dá sentido a um repertório que abraça
tanto a Jovem Guarda de Roberto e Erasmo Carlos, em "Se Você Pensa"
quanto o forró, em "Sebastiana", e o balanço de Jorge Ben Jor, em
"Que Pena", além da poesia de Caetano e Gil —em "Não
Identificado", "Baby" e "Divino Maravilhoso".
É interessante perceber como a timidez de Gal vai se desfazendo
ao longo dos primeiros discos que
ela assina sozinha. Quando entrou em estúdio no fim dos anos 1960, disse o produtor desses
álbuns, Manoel Barenbein, ela ainda não tinha a confiança necessária
para expandir seu canto.
"Divino Maravilhoso" foi um marco nesse processo, e em
"Cinema Olympia", a primeira faixa de seu segundo álbum, Gal já surge
gritando e levando sua voz ao limite. Também nesse disco, ela estabelece sua
marca com "Meu Nome é Gal", composição de Erasmo Carlos para ela na
qual cita nomes de amigos antes de repetir a frase que dá título à faixa com
uma ousadia que parece englobar todo o sentimento daquela geração, que inventava a própria
liberdade no auge dos anos de chumbo.
Na voz de Gal, tudo se transformava. No disco "Legal",
ela reinventa "Eu Sou Terrível", de Roberto Carlos e Erasmo Carlos,
com um vigor feminino que
faz a versão original parecer inofensiva. Ela era capaz de, nesse álbum, trazer
um afeto raro em "London, London" e apresentar "Falsa
Baiana" com uma delicadeza tão profunda que a sensação é de que ela não
precisaria abrir a boca para interpretar os versos.
Mas é em "Gal a Todo
Vapor", álbum duplo gravado ao vivo de 1971, que ela anarquiza
a tropicália —e, por consequência, a música brasileira. Do romantismo sublime
de "Sua Estupidez" à visceralidade quase animalesca de "Vapor
Barato", o brado de Gal tinha energia para expurgar a caretice de um
Brasil que a essa altura a havia apartado dos amigos Caetano e Gil, presos e
depois exilados.
Ao longo dos anos, Gal conseguiu ser uma intérprete reconhecida
pela técnica vocal sem nunca deixar a inventividade de lado. Cantou Dorival Caymmi e
Tom Jobim nos anos 1980 e 1990 e experimentou com o Auto-Tune em
"Recanto", de 2011. Mais recentemente, em 2018, cantou com Marília
Mendonça a música "Cuidando de Longe", recheando de graves a
composição da sertaneja.
Com a chegada da idade, foi ficando menos explosiva, trocando os
agudos estridentes para concentrar as energias por um canto mais comportado,
mas ainda sedutor. Nos palcos, não se mexia mais de um lado ao outro
incessantemente, mas continuava magnética como sempre.
João Gilberto foi o ponto de partida, e a tropicália seu
principal veículo, mas Gal Costa transcendeu tudo isso para entrar para
história não só como uma das maiores cantoras do país, mas ela própria também
um sinônimo de música brasileira. De certa forma, com seu canto, inventou um
Brasil.
Leia também: Gal Costa
atacou Bolsonaro e lamentou pandemia em entrevista à Folha https://bit.ly/3Tm1XFQ
Nenhum comentário:
Postar um comentário