Como Gal Costa se tornou símbolo de rebeldia feminina
Cantora, morta nesta quarta,
se tornou marco na música brasileira e desafiou conservadorismos no auge da
ditadura
Marina
Lourenço, Folha de S. Paulo
Uma das poucas mulheres a integrar a tropicália, Gal
Costa, que morreu nesta
quarta, foi um marco não só na música brasileira, como também nas
camadas sociais brasileiras, sendo responsável por chacoalhar a cultura dos
anos de 1960 e 1970, ao virar um símbolo de liberdade feminina.
Os vocalizes agudos da
baiana vieram, muitas vezes, embalados por performances
dominadas por rebeldia, que inspiraram uma legião de mulheres a se verem fora
da caixinha fru-fru da Barbie Girl.
Fosse pelas roupas espalhafatosas, os decotes ousados, as danças
sensuais, o típico cabelo hippie, o
espírito libertário de curtir a vida, os solos vocais que encantaram ouvidos de
norte a sul do Brasil, ou pela presença marcante num dos principais movimentos
culturais do país, Gal foi na contramão de estereótipos machistas.
Até mesmo o jeito que a cantora segurava o violão revela seu
jeito inovador de lotar casas de shows. Nada de pernas cruzadinhas. Em muitas
das apresentações, Gal apoiou o instrumento em joelhos afastados entre si. Pode
até parecer um gesto pequeno, mas é só pensar: quantas mulheres cantam, até
mesmo nos dias atuais, com as pernas escancaradas?
O guarda-roupa
da cantora também endossava a rebeldia, sobretudo na sua fase tropicalista, que
contou com looks espalhafatosos e ousados.
Nos anos de 1980, a cantora chegou a posar nua para uma revista
e adquiriu, na época, fama de vulgar. Ela já havia aparecido seminua e na capa
de "Índia", um de seus maiores discos. Nenhuma nudez, claro, faz de
alguém feminista —ou antifeminista—, mas o que chama a atenção é como Gal
desafiou, sem pudores, normas conservadoras de um Brasil regido pela ditadura
militar.
Em "Índia", Gal aparece de calcinha vermelha, cocares
e mamilos à mostra. O álbum traz um sentimento de revolta social, com letras
contestadoras e, acima de tudo, subversivas, como em "Presente
Cotidiano" —composta por Luiz Melodia—, na
qual a artista debocha da ideia propagada pelos militares de milagre econômico.
Talvez o álbum que melhor
sintetiza a tropicália, "Fa-Tal – Gal a todo vapor" é
outra obra transgressora da baiana. A começar pelo fato de que é o primeiro
disco do Brasil gravado ao vivo —não à toa, dá para ouvir ruídos, improvisos e
vários detalhes. Depois, pela brasilidade arranhada nas guitarras agressivas.
E, claro, pela performance de Gal.
No show que gerou o disco, a cantora traduz bem o desbunde da
contracultura brasileira, com brilhos pelo corpo, roupas hippie, sensualidade,
psicodelia, rebeldia e enaltecimento de vários Brasis. Tudo isso acompanhado de
seu vocal agudo, que ora surgia violento, ora doce.
Até mesmo a boca que estampa a capa de "Fa-Tal – Gal a todo
vapor" reflete a faceta contraventora da artista. Tingidos por um forte
batom vermelho, os lábios da baiana emulam uma imagem diferente da de mulher
recatada e do lar.
Foi também na época de "Fa-Tal" que a cantora se
tornou símbolo dos encontros da elite carioca hippie, mais especificamente do
píer de Ipanema, no Rio de Janeiro. Conhecidas como as dunas de Gal, o local
virou um point psicodélico da contracultura, onde jovens se reuniam para
conversar, usar drogas e compor músicas.
Na época, Gal era vista como "a musa do tropicalismo",
apelido que até hoje é usado para se referir a cantora. Há de se considerar o
teor sexualizado do termo —afinal, nenhum dos músicos do movimento teve fama
desse tipo—, mas a popularidade de diva
nunca incomodou Gal, como ela mesma disse à Folha, em 2015.
Ainda que não erguesse a bandeira feminista, o legado que Gal
deixa para as mulheres é do espírito que encarnou dentro e fora dos palcos, o
de alguém que quis se ser livre.
Leia também: A morte de
Gal, uma musa da música brasileira https://bit.ly/3A32hSR
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