Brasil e China, chave para a colaboração Sul-Sul
Volta de Lula traz a chance de pensar
muito além da pauta comercial – em que Brasil atua como exportador primário.
Tecnologia, nova arquitetura financeira, infraestrutura e integração
latino-americana são áreas que podem se expandir de imediato
Diego Pautasso, Outras palavras
O governo Bolsonaro vai deixar uma herança extremamente complicada para o presidente eleito, Lula, a partir de 2023: crescimento da insegurança alimentar, desemprego, endividamento, desindustrialização e, no plano externo, um desmonte de nossa política externa. Caberá à diplomacia sob Lula retomar uma estratégia de inserção internacional convergente com os objetivos de retomada de um projeto nacional de desenvolvimento. Nesse sentido, a China, como maior parceiro comercial do Brasil, tem um lugar especial.
Já durante a Era Lulista (2003-16), as relações entre China e Brasil foram alçadas a outro patamar. Em 2004 foi criada a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN) e em 2009 os chineses se tornaram os principais parceiros comerciais brasileiros.
Quando Xi Jinping visitou Dilma Rousseff em 2014, foram firmados 56 acordos. Acordos, cooperação e investimentos vêm sendo rapidamente incrementados bilateralmente. Ademais, os Planos de Ação Conjunta (PAC 2010-2014 e 2015-2021), a elevação da Parceria Estratégica, ensejada em 1993, para Parceria Estratégica Global, em 2012, e a instituição do Plano Decenal de Cooperação (2012-2021) aprofundaram as relações.
Além disso, o incremento das relações sino-brasileiras tem ocorrido em âmbito multilateral. O estabelecimento do BASIC e a criação do BRICS são ilustrativos – com a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e do Arranjo Contingente de Reservas (ACR). O fluxo comercial passou de US$ 4,4 bilhões em 2002 para quase US$ 68 bilhões quando da derrubada de Dilma. Apesar da diplomacia errática de Bolsonaro, em 2021 o comércio totalizou US$ 135 bilhões – responsável por US$ 40 bilhões de superávit ou quase dois terços do total de US$ 61 bilhões. Aliás, em superávit apenas dos últimos cincos anos, o mercado chinês nos rendeu nada menos que US$ 150 bilhões.
Cabe um parênteses:
durante o governo Bolsonaro não se rompeu apenas com a diplomacia lulista, mas
sim com padrões e princípios históricos do Itamaraty, produzindo as mais
grotescas páginas de nossa política externa. Aliás, no caso das relações com a
China é emblemático, quando o próprio chanceler Ernesto Araújo classificou a
pandemia como “comunavírus” – enquanto a família Bolsonaro e sua claque
estimulavam rusgas com o nosso parceiro asiático. A situação só não piorou em
função da atuação de grupos de pressão (agronegócio, industriais, intelectuais,
etc.). E porque a China conduz sua diplomacia com pragmatismo – inclusive
intensificando a parceria através das unidades subnacionais da federação.
O avanço do
comércio sino-brasileiro e os nossos superávits não devem ocultar o processo
estrutural tortuoso de desindustrialização pelo qual o Brasil vem passando.
Atualmente, cerca de quatro quintos de nossas exportações para a China são
constituídas por produtos primários, sobretudo soja, petróleo e minério de
ferro. Embora o setor primário brasileiro tenha considerável efeito encadeador
na indústria e na inovação, é evidente que o país precisa avançar em
complexidade econômica. Vejamos a problemática: desde os anos 1980 vem
declinando a participação da indústria no PIB brasileiro e, entre 1995 e 2020,
saímos da 25ª posição no ranking da complexidade econômica para a 60ª –
enquanto a China passou da 46ª para 17ª. Ou seja, não somos dependentes da
China, mas das commodities. E a China é uma variável geoeconômica
inexorável.
Nesse sentido, é
imperativo que o Brasil trace uma estratégia para lidar com a China que seja
capaz de impulsionar nosso projeto nacional. Tudo indica que voltaremos a ter
uma diplomacia ativa e altiva, ao invés de ficar com retóricas toscas à
la “ameaça chinesa” ou “imperialismo”. Precisamos, portanto, definir o
lugar da China numa abrangente política de ICT (indústria, comércio e
tecnologia) – inclusive extraindo o melhor da competição entre EUA e China.
Para tanto, não é preciso inventar a roda, basta reeditar ações que a própria
China praticou com seus parceiros.
Ou seja,
compromissos dos investimentos estrangeiros (chineses) no Brasil, cobrando
desde joint ventures a transferências tecnológicas. Vamos a
alguns exemplos:
- Precisamos urgentemente de um grande programa
de obras públicas. A China tem capacidade de investimento e expertise em
engenharia. O Brasil precisa gerar empregos, revitalizar a infraestrutura,
recuperar as empreiteiras destruídas pela Lava Jato e impulsionar outros
setores industriais.
- Um bom exemplo é o setor de ferrovias
convencionais, de alta velocidade e metrôs. A China pode produzir trilhos
e vagões aqui, em parceria com empresas brasileiras.
- A China também pode fazer um grande programa
de investimento em energias renováveis, sobretudo solar e eólica. Um bom
exemplo é um programa de implantação de painéis solares em casas e
apartamentos, com financiamento público e abatimento tributário
condicionado a empresas com índice de nacionalização. Isso pode ser feito
via joint ventures com capitais chineses.
- O edital de 5G, por exemplo, poderia estar
associado com compromissos de transferência tecnológica e produção de
componentes no país.
- A BRI deveria ser pensada como alavanca para a
integração física sul-americana. Empreiteiras chinesas podem se associar
às brasileiras para enfim integrar os países da região.
- Outra fronteira de cooperação é o de
governança digital e políticas públicas. A China avança rapidamente em Big
Data e temos órgão públicos com expertise em dados e planejamento (IBGE,
IPEA).
- Como já cooperamos em satélites (CBERS),
podemos até avançar para o setor de veículos lançadores em
Alcântara.
- O BNDES e os bancos públicos nacionais podem
cooperar com os Bancos e Fundos chineses, construindo alianças bilaterais,
para financiar o desenvolvimento nacional e sul-americano.
Enfim, trata-se de
uma quadra histórica disruptiva de transição sistêmica. A China é um país chave
para a consecução de uma ordem multipolar oposta à neoliberal e unilateral
promovida por Washington. Cabe ao Brasil realizar uma leitura acurada das
oportunidades e desafios para impulsionar o desenvolvimento e ocupar um lugar
no sistema internacional compatível com sua estatura.
Leia também: É inegável o peso da economia chinesa no mundo e a sua correlação com o crescimento global https://bit.ly/3N2uIFV
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