Na disputa entre oligopólios, a comunicação independente é a primeira vítima
Concentração da mídia, monopolização da internet pelas big techs e ausência de políticas públicas compõem um cenário crítico para os veículos alternativos
Olívia Bandeira, Paulo Victor Melo e Gyssele Mendes, com colaboração de Alécio Neves da Silva/Le Monde Diplomatique
“O que o leitor talvez não saiba é que, no Brasil, esta ligação benfazeja entre publicidade e democracia, via financiamento da liberdade de expressão, funciona tão bem, há tantos anos, graças ao modelo brasileiro de negócios de publicidade.” Esse posicionamento do jornal O Globo, em editorial publicado no dia 26 de março de 2019, defende o modelo de publicidade como o ideal para o financiamento do jornalismo e ainda critica os modelos baseados em financiamento público: “Sem a receita originada na publicidade, restaria aos veículos de comunicação dois caminhos: majorar significativamente os seus preços de venda aos consumidores […] ou financiar suas operações por meio de recursos públicos, algo que ocorre em países de governos autoritários. Em regimes assim, certamente não por coincidência, não há liberdade de expressão”.
O texto desse editorial nos convida a uma série de reflexões. Em um país com elevados índices de concentração da propriedade de comunicações, como mostra o Monitoramento da Propriedade da Mídia,1 quais grupos têm tido sua liberdade de expressão financiada? Na ausência de financiamento público para a mídia, quem se beneficia da publicidade estatal? E quem tem ficado de fora desse jogo? Quais são as consequências – para o ecossistema midiático e para a democracia – desse modelo que, para O Globo, é bem-sucedido?
Iniciemos pelo financiamento estatal. Segundo levantamento do Poder360, apenas em 2023 o governo Lula destinou R$ 257 milhões para anúncios em emissoras de televisão. Desse montante, canais do Grupo Globo receberam R$ 142 milhões. Na sequência, a Record recebeu R$ 43 milhões; o SBT ficou com R$ 35 milhões; a Band, com R$ 13 milhões, seguidas de Rede TV (R$ 3 milhões) e CNN Brasil (R$ 2 milhões). A destinação de recursos públicos via publicidade para os veículos dos maiores conglomerados de mídia não é exclusividade do governo atual, mas uma constante no país, mudando às vezes somente qual dos maiores veículos recebe o maior montante, como foi no governo Bolsonaro, que apenas em seu último ano (2022) destinou mais recursos para a Globo do que para as emissoras aliadas Record e SBT. Não parece difícil compreender, portanto, as razões para o posicionamento do jornal O Globo.
Para além dos números – que também importam –, o fundamental nos parece a argumentação sobre o financiamento. Questionada pelo Poder360 sobre o aumento de verba direcionada à Globo, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) disse que “o investimento em TV segue estudos e critérios técnicos elaborados pelas agências contratadas, como audiência, afinidade com público-alvo, segmentação demográfica, alcance geográfico, entre outras características”.
Aí está o ponto fulcral. Garantia de diversidade e pluralismo não parecem contar como critérios quando o assunto é financiamento da mídia. Não podemos esquecer – e há uma vasta literatura a respeito – que a história das comunicações no Brasil sempre foi marcada pelo favorecimento de poucos grupos privados. Isso significa que audiência e alcance geográfico, embora importantes quando falamos de informação governamental de interesse público, não são qualificações naturais, mas expressam uma articulação histórica entre Estado e capital. Dito de outro modo, o fato de mais pessoas terem acesso a determinada emissora de televisão é, em grande medida, resultado justamente de investimentos – públicos e privados – que possibilitaram mais estrutura e maior desenvolvimento tecnológico a essa emissora.
Esse círculo vicioso que sustenta o modelo de financiamento estatal da mídia é um dos aspectos de natureza político-institucional que configuram aquilo que o professor Valério Brittos chamou de barreiras à entrada. Em artigo científico sobre o tema, publicado em 2005, o autor disse que “em torno das barreiras desenvolvem-se não só as estratégias das empresas líderes, para mantê-las, mas de outros agentes, efetivos ou potenciais, que querem derrubá-las e erguer outras em seu lugar. Por elas, as empresas acumulam potencial de mercado capaz de alavancar operações que conduzem a uma ampliação de sua dimensão”.2
A concentração da publicidade do governo federal nos maiores conglomerados de comunicação do país se torna mais problemática diante de um cenário de ausência de políticas públicas para a promoção da pluralidade e da diversidade da mídia. Há, por exemplo, uma demanda histórica das rádios comunitárias para mudanças na legislação que permitam a elas arrecadar recursos com publicidade, além do estabelecimento de fundos públicos de apoio. A Portaria n. 15, de 6 de fevereiro de 2024, foi um passo importante ao abrir o cadastramento de emissoras de radiodifusão comunitária para veiculação de patrocínio na modalidade “apoio cultural” pela Secretaria de Comunicação da Presidência. No entanto, como salienta Geremias dos Santos, presidente da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias (Abraço), em entrevista para a matéria “Nova lei articulada por elites empresariais e evangélicas aprofunda concentração”, publicada no Le Monde Diplomatique Brasil on-line,3 a medida não contempla as demandas históricas das rádios comunitárias, que não podem divulgar “produtos, preços e promoções, situação que […] limita o interesse dos comerciantes locais para publicidade”.
DISTRIBUIÇÃO DESIGUAL TAMBÉM NA INTERNET
Outro ponto importante a ser destacado é que a televisão fica com a maior parcela dos recursos publicitários estatais. No terceiro governo Lula, a maior parte da publicidade da Secom e dos ministérios é destinada para a televisão (56%), seguida da internet (14,2%), do rádio (11,6%), da mídia exterior digital (10,2%) e da mídia exterior (4,8%). Montantes bem menores foram destinados a jornais (1,6%), revistas (0,9%) e cinema (0,7%).
Os recursos destinados à internet diminuíram em relação ao governo Bolsonaro, como parte de novas estratégias que estão sendo anunciadas pela Secretaria de Comunicação. Em abril de 2024, o governo suspendeu a utilização de recursos públicos com publicidade na plataforma X (antigo Twitter), após as declarações de Elon Musk contra o Supremo Tribunal Federal e, de modo particular, contra o ministro Alexandre de Moraes. Ainda em abril, no último dia 24, a Secom anunciou as agências vencedoras da licitação de comunicação digital do governo. O serviço será prestado pelas agências BR + Comunicação (consórcio BR&TAL), Usina Digital, IComunicação Integrada e Clara Serviços, com contratos que durarão um ano e somam R$ 197,7 milhões.
A sobrevivência do jornalismo digital, no entanto, enfrenta outros desafios. Na internet, as grandes plataformas digitais, que não são produtoras de conteúdo, são as que lucram com a informação que circula de forma on-line. Segundo o Digital News Report 2023, realizado pelo Instituto Reuters em parceria com a Universidade Oxford, a maior parte das pessoas que consomem notícia on-line o faz prioritariamente por meio das redes sociais (30%); 25%, por ferramentas de busca; 9%, por alertas que recebem em mensagens de celular; 8%, por agregadores de notícias; e 5%, por e-mail, ou seja, 77% utilizam ferramentas das plataformas digitais para ter acesso à informação. Segundo a Statista, a concentração de publicidade nas grandes plataformas vem de alguns anos: em 2012, nos Estados Unidos, a Google lucrou mais com a veiculação de anúncios do que todos os jornais e revistas impressas do país somados.4
Esse cenário tem levado à discussão sobre a necessidade de regulação das plataformas digitais em todo o mundo. No Brasil, a obrigação das big techs de remunerar o conteúdo jornalístico que circula em suas plataformas começou a ser debatida no âmbito do Projeto de Lei n. 2.630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, e depois esse aspecto da regulação foi transferido para outro projeto de lei, o PL n. 2.370/2019, que altera a legislação brasileira sobre direitos autorais.
No entanto, esse assunto é complexo para ser debatido em regulações focadas em outros temas igualmente complexos, correndo o risco de beneficiar apenas as grandes empresas jornalísticas. Como plataformas que se tornaram essenciais na mediação do debate público, a remuneração do jornalismo advinda das gigantes da tecnologia deve fomentar a pluralidade e a diversidade e apoiar o jornalismo independente, comunitário e regional. Seria, inclusive, uma forma de diminuir os “desertos de notícias”, como são chamadas as cidades que não contam com nenhum veículo de comunicação. Nesse sentido, a criação de um fundo público seria uma solução mais adequada do que a remuneração direta das empresas jornalísticas pelas plataformas.
Tentando fugir da regulação, as plataformas têm desenvolvido iniciativas que procuram, por um lado, frear a aprovação de projetos de lei e, por outro, melhorar sua imagem sem afetar seus lucros e o verdadeiro problema que é a ausência de pluralidade e de diversidade.
Em relação à primeira estratégia, após a aprovação da Lei de Preservação do Jornalismo pela Assembleia do Estado da Califórnia, em junho de 2023, obrigando as plataformas a remunerar os veículos de comunicação pela utilização de seu conteúdo, e antes de sua votação no Senado, o Google anunciou a decisão de remover o acesso aos links da mídia noticiosa para um percentual de usuários do estado, além de suspender novos investimentos no setor na região, como o Google News Showcase.5 A empresa já tinha tomado medidas semelhantes no Canadá, quando a Câmara dos Comuns votou a Lei de Notícia On-line, cujo projeto foi apresentado pelo governo em abril de 2022.6 Em 2021, a Alphabet havia ameaçado suspender seu buscador Google na Austrália por causa de regulação semelhante.7
O principal argumento utilizado pelas plataformas para evitar a regulação é exatamente a existência de projetos de investimento no jornalismo, como o Google News Showcase, que, segundo a empresa afirmou em 2021, tinha o compromisso de investir US$ 1 bilhão em três anos para apoiar a indústria de notícias. Entre 2017 e o início de 2022, o Google e o Facebook, por meio da Google News Initiative e do Facebook Journalism Project, financiaram mais de 6,7 mil veículos jornalísticos, associações de jornalismo, instituições educacionais, instituições filantrópicas e ONGs em todo o mundo, oferecendo, por exemplo, financiamento para produção de conteúdo e formação, inclusive para uso de ferramentas das próprias plataformas, segundo levantamento feito por Charis Papaevangelou, da Universidade de Amsterdã, nos Países Baixos.
O pesquisador mostra que a distribuição de recursos é desigual: 2.205 beneficiários estão nos Estados Unidos. O Brasil vem em segundo lugar, com pelo menos 424 beneficiados, investimento que Papaevangelou acredita estar associado ao avançado debate sobre regulação das plataformas no país, por meio do PL n. 2.630/2020. Em sua análise, o pesquisador afirma que esses projetos tornam o jornalismo ainda mais dependente da infraestrutura e das ferramentas das plataformas, que passam a ser cada vez mais ponto de passagem obrigatória para a notícia.8
COMUNICAÇÃO É DIREITO
Enquanto as mídias independentes enfrentam uma série de desafios de sustentabilidade para seguir desenvolvendo seu trabalho, os veículos dos grandes conglomerados se beneficiam não apenas da publicidade estatal, mas também do investimento de setores da economia interessados na produção de informação que beneficie seus negócios. Os setores econômicos associados à exploração da terra, por exemplo, são grandes anunciantes. Segundo o Kantar Ibope, o investimento do agronegócio em mídia foi de R$ 67,948 milhões em 2021 e de R$ 111,829 milhões em 2022. Já as empresas do setor de minas e energia investiram R$ 635,065 milhões em 2021 e R$ 646,779 milhões em 2022.
Segundo a pesquisa “Vozes silenciadas: o que a mídia silencia?”, desenvolvida pelo Intervozes, o investimento de conteúdo publicitário do setor das chamadas energias limpas na mídia impressa muitas vezes reforça um conteúdo, também identificado na cobertura jornalística e nos editoriais dos veículos, que promove um discurso neoliberal e desenvolvimentista. As narrativas enfatizam a urgência da transição energética diante das mudanças climáticas e silenciam sobre os inúmeros impactos socioambientais das energias renováveis que prejudicam biomas e comunidades tradicionais.
A pesquisa analisou a cobertura jornalística sobre as energias limpas em períodos determinados entre 2021 e 2023 nos jornais O Globo, Estadão e Folha de S.Paulo e na Agência Brasil, além de veículos regionais. No jornal O Globo, por exemplo, dos 64 textos analisados, 85,94% eram conteúdos jornalísticos e 14,06% eram matérias pagas, ou seja, financiadas por marcas. Do total, a maior parte apresentava um discurso favorável às energias limpas (84,8%). Os conteúdos publicitários sobre o tema foram financiados por CNI (Indústria), EDP (Energia), Equinor (Energia), Shell (Energia), Vale (Mineradora) e Sistema S.
Ao todo, o mercado de compra de mídia movimentou mais de R$ 74 bilhões em 2022, entre investimentos públicos e privados, de acordo com o Kantar Ibope. Com uma pequena parte desse recurso, já seria possível assegurar a existência de iniciativas de comunicação alternativas, não comerciais, pautadas pelo compromisso de promover a diversidade e a pluralidade no debate público. Seria viável irrigar com informações de qualidade regiões que sofrem com os desertos de notícias e, por tabela, garantir o acesso a direitos básicos, como saúde e assistência social. Poderíamos ver a comunicação pública, tão sucateada nos últimos anos, fortalecida.
Não se trata apenas de dividir melhor os recursos, mas de compreender a comunicação como um direito. É também por isso que defender e criar meios de sustentabilidade para a mídia independente deveria estar nos planos de todas as lutas por justiça social.
Olívia Bandeira é jornalista, doutora em Antropologia Cultural pelo PPGSA-UFRJ e integrante da Coordenação Executiva do Intervozes; Paulo Victor Melo é professor e pesquisador de Políticas de Comunicação e integrante do Intervozes; Gyssele Mendes é jornalista, mestra em Comunicação pela UFF, doutoranda em Comunicação e Cultura pela UFRJ, integrante do Grecos-UFF e do MediaLab-UFRJ e membro da Coordenação Executiva do Intervozes; e Alécio Neves da Silva é bacharel em Ciência Política, graduando de Gestão de Políticas Públicas pela UnB e colaborador do Intervozes.
1 Ver https://brazil.mom-gmr.org/br/.
2 Valério Cruz Brittos, “As barreiras à entrada dos processos televisivos”, Diálogos Possíveis, v.4, n.1, 2005.
3 Aline Braga e Iano Flávio Maia, “Nova lei articulada por elites empresariais e evangélicas aprofunda concentração”, Le Monde Diplomatique Brasil, 18 abr. 2024.
4 João Brunelli Moreno, “Google ganha mais com publicidade que toda mídia impressa nos EUA”, Tecnoblog, dez. 2012.
5 Observacom, “Google quitó el acceso a noticias de su buscador en California, ante proyecto que la obligaría a pagarle a medios” [O Google removeu o acesso a notícias do seu mecanismo de busca na Califórnia, em resposta a um projeto que o obrigaria a pagar às empresas de mídia], 18 abr. 2024.
6 Carolina Martínez Elebi, “Google vs. Canadá: el buscador bloquea acceso a noticias en respuesta a proyecto que obliga a negociar pago a medios” [Google vs. Canadá: o buscador bloqueia o acesso a notícias em resposta a um projeto que exige negociações de pagamento com os meios de comunicação], Observacom, 22 mar. 2023.
7 Observacom, “Google amenaza con suspender su buscador en Australia y ofrece pagar a los medios bajo sus propios términos” [Google ameaça suspender seu mecanismo de busca na Austrália e oferece pagar os meios de comunicação sob seus próprios termos], 2 fev. 2021.
8 Charis Papaevangelou, “Funding Intermediaries: Google and Facebook’s Strategy to Capture Journalism” [Financiamento de intermediários: estratégia do Google e do Facebook para capturar o jornalismo], Digital Journalism, v.12, n.2, 2024, p.234-255.
A provocação de Elon Musk https://bit.ly/4asZS4f
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