A beleza deixou de ser fundamental
Quanto maior a expectativa pelos clássicos, mais a decepção goleia nossa imaginação
Juca Kfouri/Folha de S. Paulo
No Morumbi, na 12ª vez em que Abel Ferreira dirigiu o Palmeiras contra o São Paulo lá, o chato 0 a 0 significou o quinto empate e manteve a vantagem tricolor de quatro vitórias contra três alviverdes.
Desde que o treinador português chegou ao Brasil, foram 23 Choques-Rei, com sete vitórias para cada lado e nada menos que nove empates.
Sob qualquer olhar, os empates impressionam na história do confronto: 116 vitórias para um e para outro e 115 empates.
Até em conquistas da Libertadores ambos empatam, com três para cada lado. Só em Mundiais a diferença é grande: 3 a 0.
Querem apostar a rara leitora e o raro leitor que no próximo clássico acontecerá o 116º empate?
Tamanho equilíbrio não justifica a monotonia do embate da última segunda-feira (29).
Quase 56 mil torcedores foram fraudados no estádio e muito mais gente que isso dormiu frustrado diante da TV ou foi irritado para a cama. Beira mesmo o desrespeito ao torcedor.
Impossível que Luis Zubeldia e Abel Ferreira desconheçam o lado artístico do futebol, assim como Tite, porque Palmeiras x Flamengo já havia sido um porre ou, pior, parecido com anestésico na veia.
Calleri também sabe, assim como sabem Endrick e Dom Arrascaeta, que o exercício da profissão deles ultrapassa o resultado.
Apesar disso, todos toparam protagonizar dois 0 a 0 de doer nos olhos como se o empate significasse a salvação geral e danem-se os que pagaram ingressos, ou assinaturas, para verem os jogos.
Aí o torcedor busca a salvação em Real Madrid e Bayern de Munique. Busca e encontra.
Vinicius Junior sabe de onde vêm os milhões de euros que recebe. Harry Kane também. Carlo Ancelotti nasceu sabendo, e Thomas Tuchel segue o exemplo.
Então, Vini faz dois gols em Munique, Kane também faz o dele, o jogo termina 2 a 2 e a Europa gira em torno do clássico das 20 Champions, 14 dos madridistas.
Joãosinho Trinta já dizia que "pobre gosta de luxo, quem gosta de lixo é intelectual", máxima que vale para o futebol. Torcedor gosta de gols, de emoções, de dribles, canetas, chapéus, lençóis e trivelas.
Quem exagera no gosto de táticas, esquemas, regulamentos embaixo do braço olha para o futebol como tecnocrata, como estudioso, mas, no mais das vezes, é refratário aos sentimentos e aos detalhes que mudam jogos e são a essência deles.
O poderio econômico tem a ver com a supremacia e a graça europeias, é inegável, capaz de reunir as maiores estrelas sob suas bênçãos.
Mais que dinheiro, porém, falamos de filosofia, de uma certa visão de mundo e do futebol, voltado para quem o vê, para quem paga para curti-lo. Até nas derrotas.
No Brasil, antigamente e por meio século entre a década de 1950 e o começo deste século, o país do jogo bonito, perder passou a ser tão intolerável que o empate, desde que entre times parecidos, vira meta salvacionista.
E nos acostumamos à mediocridade.
Até Borussia Dortmund e PSG, em prateleira abaixo de Madrid e Munique, acaba por atrair atenção maior que nossos clássicos.
Registre-se que esteve longe de ser belo jogo no primeiro tempo, até porque o PSG só queria empatar na Alemanha.
Como saiu atrás, permitiu bom segundo tempo em busca do empate, acertou a trave duas vezes e terá de virar o 1 a 0 infligido pelos germânicos.
Ao contrário do que dizia Vinicius de Moraes, no Brasil, beleza não é mais fundamental.
[Ilustração: Nato Gomes]
Leia: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/05/minha-opiniao.html
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