CERCADOS PELA INTOLERÂNCIA
Após
vitória de Lula, pessoas de origem nordestina sofrem seguidas ameaças em Santa
Catarina
Felippe Anibal,
revista Piauí
Assim que viu que a jovem de vestido vermelho, o senhor de cabelos
grisalhos saiu irritado da fila da padaria dentro de um supermercado em
Florianópolis, Santa Catarina, na manhã de segunda-feira (31) – dia seguinte ao
segundo turno da eleição, que terminou com a vitória de Lula (PT). Com o dedo
em riste, o idoso avançou em direção a ela gritando uma série de desaforos.
Atônita, a universitária M.E. ouviu o desconhecido dizer que ela “deveria
morrer” ou “voltar para o Nordeste”. Escutou os insultos, quieta, sem reação,
até que o desconhecido saísse. Na fila do pão, nem clientes nem funcionários do
mercado tentaram defendê-la. Tampouco lhe dirigiram uma palavra de consolo que
fosse.
Para M., o episódio
da padaria foi uma escalada na onda de intolerância contra migrantes
nordestinos ou seus descendentes deflagrada após o primeiro turno da eleição,
quando os nove estados do Nordeste registraram votação majoritária em Lula –
cenário que se repetiria no segundo turno. Aluna da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) – onde ingressou pelo sistema de cotas raciais –, M. já
tinha sido alvo de abordagens criminosas ao longo do período eleitoral,
inclusive dentro do campus. Na última semana de outubro, ao cruzar o portão da
universidade, um homem que tinha um bottom com insígnia da SS – organização
paramilitar ligada ao Partido Nazista alemão – se aproximou dela e gritou: “Sua
suja!” e “Volta para o Nordeste!”. A universitária fugiu apressadamente para o
prédio em que estuda. M. se vê como uma mulher negra, mas diz que muitos a
consideram parda, já que ela tem ascendência indígena.
“É bizarro. Só pelo
fato de eu não ser branca, as pessoas já inferem que eu vim do Nordeste e que
votei no Lula, como se fosse algo pejorativo ou como se eu merecesse morrer por
causa disso. É assustador”, contou a universitária de 22 anos, que nasceu no
Recife, Pernambuco, mas que mora em Santa Catarina desde os dois anos de idade.
“Eu não sei o nome, nunca tinha visto essas pessoas. Tenho receio de denunciar,
porque também só sofremos preconceito por parte da própria polícia”,
acrescentou.
Na semana anterior
ao segundo turno, M. estava na UFSC quando começou a circular no campus uma
carta com ameaças a diversos grupos: “Nós iremos destruir todos vocês. Gays,
negros, mulheres feministas, gordas, amarelos. Iremos limpar a universidade e
fazer um mundo melhor para nossos filhos e netos.” Assinado por “SS” – uma
provável referência à organização nazista –, o texto fazia referência direta às
eleições: “Bolsonaro vai ganhar novamente e vai ser o fim de vocês nas [universidades] federais.”
Antes disso, nas semanas que sucederam o primeiro turno, a UFSC já tinha sido
alvo de pichações com alusões ao nazismo – inclusive, pedindo a morte de judeus.
A UFSC acionou a
polícia. Em nota, a universidade afirmou que, além disso, está “fortalecendo
mecanismos internos de ação, com a criação de uma Política de Enfrentamento ao
Racismo Institucional”. O reitor Irineu Manoel de Souza publicou um vídeo em que
afirma que não haverá tolerância à discriminação e que a universidade dará “a
resposta precisa e os encaminhamentos necessários para que a universidade siga
num ambiente de paz, prosperidade, em um ambiente acadêmico humano”.
Por meio de nota, a
Delegacia de Repressão ao Racismo e a Delitos de Intolerância da Diretoria
Estadual de Investigações Criminais (DEIC/PCSC), da Polícia Civil de Santa
Catarina, afirmou que está verificando a procedência das informações. As
autoridades já vêm investigando células neonazistas em Santa Catarina,
inclusive com atuação dentro da UFSC. Em outubro, quatro alunos foram presos em
uma operação policial.
Enquanto as
manifestações de intolerância avançam, M. mudou sua rotina. Como outros três
episódios de ameaças verbais ocorreram na rua, ela abandonou as longas
caminhadas em parques da cidade, como costumava fazer. Agora, tem ficado quase
exclusivamente em casa – só tem saído em ocasiões indispensáveis e para ir à
universidade, mas sempre acompanhada de “amigos brancos”. A universitária tem
receio de que os episódios avancem para ataques com violência física.
“Eu percebi que esses ataques só acontecem quando estou sozinha ou com amigos pretos. Quando eu estou com meus amigos brancos, isso nunca acontece. Sempre que eu tenho que sair sozinha, tem acontecido alguma coisa: gente me chamando de suja, mandando voltar ao Nordeste. Sempre com raiva, agressividade”, acrescentou a jovem. “Na eleição de 2018, já tinha acontecido parecido. Eu estava com minha amiga na rua, andando de braços dados. Escutamos [alguém gritar] que quando o Bolsonaro ganhasse não aconteceria mais, porque poderiam dar um tiro na gente. Mas agora está ainda mais pesado”, contou.
Acerca de 145 km dali, no município de Penha, Santa Catarina, a diarista S.C., mãe de M., também foi vítima de um episódio de intolerância na manhã seguinte ao segundo turno da eleição, quase no mesmo horário em que a filha foi xingada no mercado de Florianópolis. A mulher de 52 anos de idade se preparava para sair e deixar o lixo para coleta do lado de fora, quando um vizinho bateu à porta. De forma agressiva, disse-lhe que, por causa de nordestinos como ela, o país se tornaria “comunista”, com “famílias desorganizadas” e “homossexuais”.
“Eu não consegui
fazer nada, além de chorar”, disse S. “Algumas vezes, eu já tinha conversado
pacificamente com esse senhor, que se diz cristão. Numa das vezes, falei que
não gostava desse governo [de Jair Bolsonaro (PL)]. Eu evito falar de
política. Fico com medo de isso se espalhar. Estou apavorada”, definiu.
O caso só
amplificou o pavor que S. vinha sentindo desde a derrota de Bolsonaro nas
urnas. Em um grupo de WhatsApp do bairro, voltado a discutir questões
comunitárias, diversos moradores começaram a postar conteúdos de intolerância
voltados a nordestinos ou descendentes. Alguns enviaram áudios com ameaças.
“Esses baiano filho da puta, aí, vota no Lula, daí a merda agarra lá em cima,
eles vêm aqui pra baixo vender capa de volante, cinta e carteira [sic]”,
disse um. “Quando passar um nordestino vendendo rede, eu quero matar esses
demônio [sic]”, ameaçou outro membro do grupo.
S. é filha de
pernambucanos que chegaram a São Paulo a bordo de um caminhão pau-de-arara em
1969 – meses antes de ela nascer na capital paulista. Há vinte anos, a convite
de uma prima que morava na catarinense Penha, mudou-se para a cidade em busca
de um lugar mais tranquilo para viver. Apesar das diferenças culturais,
adaptou-se bem ao município, que tem 34 mil habitantes. Casou-se com um morador
local – com quem vive até hoje – e se estabeleceu profissionalmente,
trabalhando por dez anos como auxiliar de enfermagem em um hospital. Ao longo
dos últimos anos, trabalha como diarista. Assustada, S. nunca tinha visto a
onda de intolerância chegar a esses extremos. Ela atribuiu o recrudescimento da
violência ao bolsonarismo – o candidato derrotado teve 75,12% dos votos no
município.
“Eu estou
horrorizada, porque eu sempre fui muito bem-recebida aqui. As pessoas não eram
desse jeito. Agora, parece que descambou. Mesmo dentro de casa, eu ouço gente
passar de carro e xingar, falar de voltar para o Nordeste. Eu saio para
trabalhar e só. Nem ao mercado eu vou mais – meu marido é que tem ido. Eu
realmente estou muito nervosa”, disse, chorando. “A cidade é muito pequena,
todo mundo conhece todo mundo. Você não tem ideia do terror que é”,
completou.
Além disso, S. teme
que o rótulo de “nordestina” a faça perder clientes, ainda que ela quase nunca
fale de política no trabalho. A exceção se deu na semana anterior ao segundo
turno, quando os patrões começaram a fazer comentários calcados em discurso de
ódio, como, por exemplo, que “o Sul sustenta o povo do Nordeste” e que a região
teria que se separar do país. “Eu me descontrolei e falei que não era daquele
jeito, não”, contou. Apesar dos dias de medo, ela espera que a onda de
intolerância perca força e que a vida em Penha volte a ser como era antes.
“Quando eu vim para cá, eu vim porque era uma cidade tranquila. As pessoas daqui não são assim. É um reflexo da eleição”, apontou. “Eu nem entro mais nas redes sociais, porque é aquela enxurrada [de postagens] falando de nordestino, como se a gente fosse a pior raça da face da Terra. É muito duro, muito dolorido tudo isso e passar por tudo isso. Se a gente olhar a história, vai ver que o nordestino é um povo incrível, de boas pessoas. Nordestino não é vagabundo. Minha família trabalhava demais. Eu tenho muito orgulho das minhas raízes”, disse.
Em Joinville, Santa Catarina, o discurso de ódio partiu de quem a professora Maria Lúcia dos Santos Neitsch, de 63 anos, menos esperava. Na manhã da última sexta-feira (4), a educadora estava em frente à loja de um grupo de economia solidária, em que ela atua como voluntária, quando um homem em situação de rua lhe pediu dinheiro. Após ela ter negado, o homem gritou: “Sua cearense.” Em seguida, fez um gesto de arma com as mãos – como o atual presidente costuma fazer. Neitsch entrou na loja e fechou a porta de vidro. Quando saiu para ir embora, no entanto, o homem retornou, intensificando as ameaças. Segundo a professora, ele gritou coisas como “sua nordestina”, “vadia”, “miserável” e “volta para a sua terra”.
“Ali naquela rua [localizada
no bairro Bucarein] ficam alguns moradores de rua. Eu já tinha visto esse
homem umas duas ou três vezes. Ele fica meio à parte, não se dá bem com os
outros moradores de rua que ficam por ali”, explicou Neitsch. “Me chamou
atenção que se trata de um excluído, mas que mantém esse discurso de ódio. Ele
está em um mundo em que as pessoas veem o outro como inimigo. E, para eles, o
fato de eu ser nordestina me coloca como inimiga”, disse.
Neitsch relatou
que, após ter sido ameaçada, refugiou-se em um supermercado que fica ao lado da
loja. De lá, ligou para a polícia. “Mas a pessoa que me atendeu disse que não
poderia fazer nada, porque era uma via pública e quando a viatura chegasse o
agressor já não estaria ali”, contou a professora. Assim que chegou em casa,
ela compartilhou um texto em suas redes sociais, narrando o episódio. Ao longo
dos últimos dias, Neitsch recebeu muitas mensagens de apoio e solidariedade.
Uma pessoa de seu círculo social, no entanto, relativizou o ataque.
“Era um amigo que
me mandou um vídeo com um caso semelhante, dizendo que isso é democracia.
Classificou essa violência como algo normal. As pessoas estão numa cegueira e
numa ignorância que chegam a pensar esse tipo de coisa”, disse.
Nascida em
Fortaleza, Nietsch mora em Joinville há mais de trinta anos. Ela conheceu o
marido catarinense em um encontro sindical nacional realizado no Rio de
Janeiro, na década de 1980. Em Santa Catarina, se estabeleceu como professora,
com 33 anos de magistério pela rede estadual de ensino. Mãe de duas filhas
biológicas e três “do coração”, ela optou por não mudar nada nem em sua rotina
nem em sua forma de ver o mundo.
“A vida no Nordeste
era tudo que eu queria, mas vim para cá para ficar com meu marido. Aqui
construí minha vida. Esse episódio me faz refletir, mas não me faz perder a fé
na humanidade. Continuo acreditando que a gente pode construir um mundo melhor,
que a gente vai passar por esse período nebuloso, que o sol vai voltar a
brilhar e que está por vir um novo tempo de esperança”, afirmou.
Leia também: O ódio às mulheres desmascarado https://bit.ly/3NAdNch
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