09 novembro 2022

Gal, uma palavra crítica

Gal Costa atacou Bolsonaro e lamentou pandemia em entrevista à Folha

Cantora baiana, uma das maiores vozes da música popular brasileira, morreu nesta quarta-feira aos 77 anos
Lucas Brêda, Folha de S. Paulo

 

Gal Costa, morta nesta quarta-feira aos 77 anos, atacou o presidente Jair Bolsonaro em entrevista à Folha no ano passado.

"Tá muito difícil com Bolsonaro. Fora Bolsonaro. Não sou uma pessoa que entende muito de política, mas acho que o regime democrático é o melhor para se conviver com as diferenças. E acho que o governo tem a obrigação de cuidar das pessoas. Acabar com a desigualdade social. Na pandemia, ficou evidente a miséria e a pobreza. Todo governo tem obrigação de cuidar dos mais pobres, do bem-estar e da saúde do povo. O que é isso, é mais pra esquerda, né?"

Uma das maiores vozes da música popular brasileira, Gal falou com este jornal em fevereiro de 2021 para discutir o disco "Nenhuma Dor", o último que lançou em vida.

No álbum, a cantora recriou o próprio repertório em duetos com homens mais jovens do que ela, que se ligaram à artista pelo canto de João Gilberto.

"Minha grande e fatal influência é João. Ele era um homem que tinha aquele canto com uma estética absolutamente genial. E acho legal que essa galera jovem tenha influência do meu próprio trabalho também, que sou uma mulher. Então, essa é a conexão", disse.

Ou seja, em vez de um tipo tradicional de dueto, em que os agudos de uma mulher contrastam com os graves de um homem, ela quis extrair a Gal —e, por consequência, o João Gilberto— de dentro dos parceiros. "Muitos deles, vou citar o Tim Bernardes, têm uma extensão vocal que poderia ser de uma mulher. Se [o disco] fosse com mulheres, não acho que seria tão interessante assim."

No álbum, além de Bernardes, que canta "Baby", Zé Ibarra distribui falsetes em "Meu Bem, Meu Mal", assim como Zeca Veloso em "Nenhuma Dor". Ela também canta com Seu Jorge ("Juventude Transviada"), Jorge Drexler ("Negro Amor"), António Zambujo ("Pois É") e Criolo ("Paula e Bebeto"), entre outros.

De "Domingo", primeiro disco que leva seu nome, em 1967, ao lado de Caetano Veloso, Gal canta três músicas. São elas "Avarandado", com o ex-Los Hermanos Rodrigo Amarante –"chamava ele de João Gilberto do rock and roll", ela diz–, e "Coração Vagabundo", com Rubel, além de "Nenhuma Dor". A cantora contou que esse álbum específico tem despertado a atenção de gerações mais novas que a dela, algo que a motivou a gravar o novo disco.

"As coisas do ‘Domingo’ são cultuadas por uma galera mais jovem. Comecei a perceber isso na pandemia. Tenho uma conexão energética, pego as coisas no ar. Senti que as pessoas, nesse período louco em que estamos vivendo, estão mais ligadas a uma música de catálogo, coisas que minha geração fez. Também tem uma galera muito jovem que, antes da pandemia, estava indo aos meus shows."

"Coração Vagabundo", "Avarandado" e "Baby", regravadas em "Nenhuma Dor", são algumas das músicas que ela aparece cantando num especial gravado em 1971 na TV Tupi ao lado de Caetano Veloso e João Gilberto. Um registro em áudio dessa apresentação histórica —que, ao contrário do planejado na época, nunca foi lançada em disco— foi publicado online pelo pesquisador Pedro Fontes.

Diversos especialistas no violão de João Gilberto já afirmaram que o instrumento numa performance de "Ao Voltar do Samba", música de Synval Silva, não é tocado pelo pai da bossa nova. Muitos acreditam que pode ser a própria Gal. "Eu realmente tocava aquela música na época. Quando ouvi a gravação, achei que era João. Se fui, eu me dou parabéns", ela disse, rindo. "Realmente não lembro."

Nesse período, um dos mais repressivos da ditadura, Caetano e Gilberto Gil estavam exilados em Londres. No Rio de Janeiro, Gal preparava o lançamento do show "Fa-tal", com uma estética tropicalista mais amadurecida e um canto feroz, e que foi tão bem-sucedido quanto desafiador.

"Não tinha condições financeiras [de sair do país]", afirmou. "Era um show na linha tropicalista, os arranjos e o jeito que eu me vestia. Mas eu sentia muito o peso daquela caretice, daquele moralismo, daquele conservadorismo."

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