Por Venício A. de Lima, na Carta Maior
“Se
as palavras servem para confundir as coisas é porque a batalha a respeito
das palavras é indissociável da batalha a respeito das coisas”. Jacques
Rancière, O Ódio à Democracia, Boitempo, 2015.
A
geração do pós Segunda Grande Guerra se lembrará de que, na metade do século
passado, crescemos sendo educados sobre a grande ameaça que pairava sobre o
mundo ocidental cristão: o comunismo ateu.
Em
tempos de Guerra Fria, sob a tutela dos interesses da política externa dos
Estados Unidos, o
comunismo vermelho transformou-se na encarnação do mal na
Terra, o inimigo comum a ser combatido. Era isso o que aprendíamos em casa, na
escola, no catecismo da igreja, no rádio, nas revistas infantis, nos jornais e
nos filmes “de guerra”.
Na
minha mineira e barroca Sabará, circundada por dezenas de igrejas Católicas do
ciclo do ouro colonial, mais tarde cidade operária de movimento sindical forte,
a mera suspeita de que alguém pudesse ser simpatizante comunista bastava para
que se criasse um estigma social como se esse alguém fosse portador de doença
contagiosa, a ser evitada a qualquer custo.
Com a
vitória da Revolução Cubana, o inimigo comum ficou mais próximo e ainda mais
perigoso: o comunismo e, claro, seus seguidores, os comunistas subversivos.
A
oposição política ao Getulismo herdado pelo presidente João Goulart,
democraticamente eleito, materializou o anticomunismo na luta sem tréguas
contra a ameaça que seu governo representava de “vir a ser” controlado por
comunistas.
A
narrativa pública sobre essa ameaça e a necessidade inadiável de defesa da
democracia “antes que fosse tarde demais” foi sendo consolidada. Um vocabulário
específico foi costurando a nova linguagem que aprisionou o pensamento de
vastas camadas da população com o protagonismo ativo da “Rede para a
Democracia” que reunia diariamente em todo o país emissoras de rádio e jornais
dos principais grupos de mídia da época: Os Diários Associados, O Globo e o
Jornal do Brasil.
Não se
constituiu exatamente em surpresa, portanto, quando na reta final para o golpe
civil-militar de 1964, setores, sobretudo, da classe média urbana, saíram às
ruas para defender os valores e tradições cristãs, o mundo livre e a
democracia, para combater o inimigo comum, o comunismo e os subversivos
comunistas.
A
corrupção, sim, a corrupção aparecia apenas como uma coadjuvante do inimigo
principal na narrativa publica dominante.
Deu no
que deu. Em nome do anticomunismo, da democracia e em defesa dos valores
cristãos, o país padeceu 21 longos anos de ditadura.
Mais de meio século depois, um novo inimigo
comum - A Guerra Fria acabou (?). O
comunismo
deixou de ser o inimigo comum do Mundo Livre, do Ocidente Cristão.
Lyndon B. Johnson não é mais presidente dos EUA e nem Lincoln Gordon seu
embaixador no Brasil. Os militares brasileiros se dedicam às suas missões
constitucionais. As Torres Gêmeas foram atacadas em Nova Iorque. O mundo se
globalizou.
Muita
coisa mudou, mas a exigência de um inimigo comum para garantir a identidade e a
coesão ideológica de uma posição política (ou de um grupo) continua mais atual
e necessária do que nunca.
O
terrorismo e o islamismo – ou o terrorismo islâmico – passaram a ocupar o lugar
de inimigo comum que antes pertencia ao comunismo no cenário internacional, a
partir do início do novo século.
Entre
nós, mais recentemente, o comunismo foi substituído por um velho e conhecido
inimigo, coadjuvante nos idos de 1964: a corrupção da coisa pública e, claro,
os corruptos.
Hoje,
mais do que ontem, os oligopólios privados que controlam o que chega ou não ao
conhecimento público – vale dizer, que controlam o espaço onde se forma a
opinião dita pública – detêm o poder de definir a linguagem dentro da qual se
enclausura a construção do inimigo comum.
Hoje,
mais do que ontem, a definição do significado de cada uma dessas palavras – o
que constitui corrupção e quem são os corruptos – faz parte essencial da
própria disputa pelo poder.
A
novidade entre nós, nos últimos anos, talvez seja a participação militante de
setores do Judiciário que, seletivamente, escolhem qual corrupção devem
investigar, e quais os corruptos devem ser julgados e condenados. Tudo com a
colaboração ativa e decisiva da grande mídia e de seu vocabulário e linguagem
uniformes.
O
resultado de todo esse processo – que já presenciamos – é um país dividido ao
meio, intolerante e
cheio de ódio.
A
corrupção é hoje o que o comunismo foi nos tempos de Guerra Fria. E os
corruptos foram sendo seletivamente definidos como sendo apenas os petistas,
filiados, aliados ou apenas simpatizantes do Partido dos Trabalhadores.
Combater o petismo e tirar os seus líderes do poder – mesmo que tenham sido
democrática e legitimamente eleitos – ou impedi-los de tentar,
democraticamente, voltar ao poder – foi aos poucos se constituindo na
prioridade de vastas parcelas da população.
A
memória coletiva, infelizmente, é curta. Muito curta. A maioria dos brasileiros
talvez não saiba ou não se aperceba que os anos passam, mas as estratégias e os
mecanismos de luta pelo poder se repetem e, muitas vezes, perpetuam os mesmos
grupos e os mesmos interesses: a maior e mais antidemocrática de todas as
corrupções é a corrupção da opinião pública.
Talvez
um dia a História (com H maiúsculo) revele a todos os brasileiros o que de fato
está a acontecer no Brasil de 2016.
Leia mais sobre temas da atualidade: http://migre.me/kMGFD
Nenhum comentário:
Postar um comentário