Tudo parece mais uma medida de
ocasião do que uma real mudança de entendimento
Damares Medina e Eloísa Machado
de Almeida, na Rede Brasil de Fato
A decisão liminar de Gilmar Mendes que suspendeu os efeitos da posse de
Luiz Inácio Lula da Silva como ministro-chefe da Casa Civil pode ser analisada
por diferentes ângulos, pela admissibilidade da ação, pelo seu mérito e por um
aspecto mais amplo da jurisdição do Supremo Tribunal Federal. Por todos eles, a
medida se mostra incomum, rara, inusual.
As surpresas aparecem logo no começo, ainda na distribuição dos
processos. A distribuição específica das ações do controle concentrado permitiu
uma dupla prevenção sobre o mesmo tema: Teori Zavascki para as arguições de
descumprimento de preceito fundamental e Gilmar Mendes para as demais ações.
No dia 17 de março, Teori Zavascki solicita informações da Presidência
da República e, no dia seguinte, Gilmar Mendes concede a liminar sem sequer
ouvir a autoridade impetrada. O encadeamento temporal decisório contraria até
mesmo a precedência do controle concentrado sobre o incidental que o Supremo
sempre preconizou.
A admissibilidade do mandado de segurança também gera importantes
questionamentos. Afinal, há menos de uma semana o próprio STF julgou que a
arguição de descumprimento de preceito fundamental seria o instrumento para
questionar a nomeação de ministros – como o fez com a nomeação de Wellington
César para o Ministério da Justiça.
Além disso, o mandado de segurança coletivo deve ter um direito líquido
e certo a ser protegido, ou seja, deve ser evidente que aquele partido
político, ou seus integrantes, teriam direito de questionar a nomeação de Lula
para ministro, o que não existe. Nomear ministros é atribuição discricionária e
privativa da Presidente da República.
Para fugir desse ponto, Gilmar Mendes se reinterpreta, contrariando
posições dele próprio e do Supremo: "eu mesmo registrei discordância
quanto à possibilidade do partido político impetrar segurança em favor de
'interesses outros que não os de seus eventuais filiados.
Percebo que a análise que fiz daquela
feita foi excessivamente restritiva. Os partidos políticos têm finalidades
institucionais bem diferentes das associações e sindicatos. Representam
interesses da sociedade, não apenas dos seus membros. Representam até mesmo
aqueles que não lhes destinam voto".
Tudo parece mais uma decisão de ocasião do que uma real mudança de
entendimento. Reconheceu o direito liquido e certo mesmo com duas decisões de
Tribunais Regionais Federais negando-os. Incomum.
Os problemas formais não param por aí. Gilmar Mendes concede medida
liminar sem ouvir o outro lado, contrariando a lei de liminares (Lei
8.437/1992) e a lei do mandado de segurança (Lei 12.016/2009). Qual perigo na
demora autorizaria esse tipo de decisão, em clara discrepância dos padrões
decisórios do STF que sempre intima a autoridade impetrada a oferecer
informações? Raríssimo.
No mérito, a liminar se refere a gravações de interceptações telefônicas
que têm sua legalidade questionada: não se sabe ainda ao certo se foram obtidas
com autorização de ordem judicial. Mesmo assim, são usadas para suspender a
nomeação de um ministro. O argumento principal é de que haveria uma
"clara" intenção de fugir da jurisdição do Moro, já que ao se tornar
ministro, teria foro no Supremo Tribunal Federal.
Como exemplo, usa o caso Natan Donadon, que renunciou ao cargo quando
seu processo já estava em mesa para ser julgado, fugindo literalmente do
julgamento. Para Gilmar Mendes, Lula estaria fazendo a mesma coisa, com o
caminho inverso. Usou o caso Donadon, mas não usou o caso Azeredo, que
renunciou ao cargo após alegações finais no processo, e o tribunal achou que
não estava cometendo fraude. Lula sequer é réu, ou seja, não teria um processo
do qual fugir.
Além de tudo isso, seria difícil imaginar qual a vantagem em ser julgado
diretamente pelo Supremo Tribunal Federal, rígido criminalmente, superexposto e
sem direito a recurso, ainda mais sob a relatoria de Teori Zavascki, o fã da
teoria do domínio do fato.
A liminar de Gilmar pode ser analisada ainda sob a perspectiva mais
ampla da independência dos poderes da República e de seu instável equilíbrio. O
ajuizamento de mais de uma dezena de ações, no interregno de uma semana e com o
mesmo objeto, parece delinear um quadro de instrumentalização judicial, na
tentativa de cercear o direito constitucional da Presidente da República de
escolher seus próprios ministros de Estado.
Há muitas outras questões, como também a provável suspeição de Gilmar
Mendes para julgar este mandado de segurança, diante do discurso que fez contra
a nomeação de Lula.
Mesmo assim, é preciso atentar para uma outra tentativa de fraude: a
litigância de má fé, caracterizada quando a parte tentar escapar da
aleatoriedade do sistema de distribuição processual ou burlar o juízo natural
do processo, escolhendo o seu julgador. Tanto a ADPF (Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental) 391 quanto o MS (Mandado de Segurança)
34.071 foram impetrados pelo PSDB, em peça subscrita pelo mesmo advogado. Ora,
se o partido já havia impugnado o ato de posse na ADPF distribuída a Teori
Zavascki, qual a razão de uma nova impetração, dessa vez distribuída a Gilmar
Mendes?
Vale lembrar que o próprio Gilmar Mendes taxou de “atitude
flagrantemente ilegal” o pedido de desistência formalizado em mandado de
segurança impetrado por deputados petistas (MS 33921), sob o argumento de que
se tratava de tentativa de burla ao princípio do juiz natural (art. 5º, inciso
LIII, da CF) e às regras atinentes à competência.
Nessa ocasião, disse que “ninguém pode escolher seu juiz de acordo com
sua conveniência, razão pela qual tal prática deve ser combatida severamente
por esta Corte, de acordo com os preceitos legais pertinentes”. Ora, seguindo
essa ideia, o PSDB parece ter incorrido no mesmo erro de tentar escolher o seu
juiz, merecendo o mesmo severo combate. Mas isso não ocorreu. Estranho.
Nunca é demais lembrar que decisões judiciais conflitantes, quando
emitidas pelo mesmo tribunal em tão curto espaço de tempo, são um dos maiores
elementos de desestabilização institucional. Em um quadro de crise sistêmica,
pode ser a gota d'água.
Damares Medina é doutora em
Direito e Coodenadora do Instituto Constituição Aberta (Icons) e Eloísa
Machado de Almeida é doutora em Direito e professora da FGV Direito SP
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mais sobre temas da atualidade: http://migre.me/kMGFD
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