18 março 2024

Minha opinião

Ler é um santo remédio
Luciano Siqueira

 

Costumo dizer que gostaria de ter vivido em meados do século 19, quando a gente podia se interessar por muitos assuntos e adquirir conhecimentos em nível razoável.

A informação não tinha um milésimo de velocidade que tem hoje, o que coloca pessoas volúveis como eu em temendo embaraço. 

Explico: sou um inveterado curioso; e desconheço a área do conhecimento humano que não me atraia. Mas é impossível manter o interesse vivo, e saciá-lo, quando se produz a cada segundo mais conhecimento científico, novas aplicações tecnológicas em todas as áreas.

Quem se dedica a atividade acadêmica, por exemplo, e assina sites especializados na divulgação da produção científica - ensaios, artigos, relatórios de pesquisa, etc. - costuma dizer que, da noite para o dia, novos comunicados são postos à disposição do interessado, de modo que se dá o risco da dispersão. O cara quer saber de tudo e termina sabendo muito pouco de algumas coisas. 

Essa pisada já vem de algum tempo e ganhou fenomenal impulso com a internet. Tudo o que existe, ou o que se inventa, cai na rede e vira informação disponível. Uma miríade.

Como fica um sujeito feito eu diante disso?

Ora, fica em maus lençóis se não encontrar o bom método para a busca da informação e o seu processamento. Há que ter foco, capacidade de apreensão do conteúdo essencial e fazer as inter-relações devidas.

O danado é que sou desafiado pela leitura de jornais diários, livros e sites.

Dos jornais não posso abrir mão - pelo menos os três de Pernambuco, por dever de ofício. De sites e blogs noticiosos ou analíticos, idem. E dos livros - paixão irrefreável desde a adolescência - jamais poderei me separar.

É aí que entra a tal "leitura dinâmica" - nos termos que desenvolvi por conta própria, e que vem me ajudado bastante.

Ler o essencial, assim definido em função do foco, ou seja, do que interessa saber no momento da leitura.

Se não há foco a leitura se faz dispersiva, quase imprestável. Isso é como você abrir a porta de um quarto onde se guardam os mais variados objetos; se não sabe o que procura, tudo vê e nada encontra. 

O tema reforma política é um bom exemplo. Há verdadeiros tratados a respeito, além de notícias fragmentadas. Basta buscar no Google para se deparar uma infinidade de referências.

Mas se você tiver direcionado sua pesquisa para dois elementos centrais na reforma política de sentido democrático, o financiamento público de campanha e a adoção de listras pré-ordenadas pelos partidos para a disputa de cargos no parlamento, não há risco de dispersão. 

Ainda acrescento outro artifício - ficha de leitura.  

No passado, usava aqueles cartões pautados e fazia minhas anotações à mão ou datilografava. Com o advento do computador, digito e salvo em arquivo temático.

Hoje como antes, a ficha de leitura me ajuda muito, sobretudo porque tenho boa memória visual e fixo o que anotei - o que me é de grande valia na construção de roteiros para palestras e mesmo para artigos. 

Mas é bom sublinhar que não há fórmula nem manual que ensine isso. Nem a solução que construí para minha própria orientação serve para você que me lê agora. Cada um bola seu próprio esquema - sua versão de "leitura dinâmica" e o jeito de anotar, se for o caso. 

Agora confesso que experimento certo remorso em relação aos livros. É que os visito para ler o que momentaneamente me atrai, e isso me leva frequentemente a ler partes da obra, e não obra toda.

Que me perdoem os autores! 

Salvam-se os textos estritamente literários, assim mesmo quando se trata de coletâneas de contos ou crônicas ou poesia, leio partes e deixo o restante para uma próxima oportunidade.

Em geral retorno, leio o que tinha ficado para depois e releio o que tinha lido antes. Puro deleite.

Seja qual for a fórmula que cada um crie, vale reconhecer - hoje como nunca - que ler faz um bem danado à saúde.

[Publicado aqui no blog em 16.11.2015]

Decifrando labirintos  https://bit.ly/3Ye45TD

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Tenham paciência. Lula reúne hoje com todos os ministros — como é normal acontecer — e na mídia teremos nova temporada de especulações sem eira nem beira.

Roda viva https://bit.ly/3Ye45TD

Golpe de 1964: palavra do PCdoB

Estado “deve pedir desculpas à nação” por golpe de 64, diz PCdoB

“Hoje, como se deu no golpe de 1964, a ameaça à democracia no Brasil integra um fenômeno mundial”, aponta o PCdoB
André Cintra/Vermelho



O PCdoB defende um posicionamento mais crítico e ativo do governo federal frente ao Golpe de 1964, marco inaugural de uma criminosa ditadura militar (1964-1985). Segundo os comunistas, “o Estado brasileiro deve pedir desculpas à nação” pelas atrocidades cometidas pelo regime.

É o que aponta a nota da Comissão Política do Partido aprovada no sábado (16). Conforme lembra o documento, o golpe “depôs o governo democrático e patriótico do presidente João Goulart e instaurou a ditadura militar, em 31 de março de 1964”. Passados 60 anos, as punições aos criminosos da ditadura foram pontuais.

“Hoje, como se deu no golpe de 1964, a ameaça à democracia no Brasil integra um fenômeno mundial”, aponta o PCdoB. “Nessa hora, portanto, mais uma vez a democracia precisa ser defendida como tarefa prioritária.”

Confira abaixo a íntegra da nota:


Nos 60 anos do golpe, defender e ampliar a democracia é prioridade

Na passagem dos 60 anos do golpe que depôs o governo democrático e patriótico do presidente João Goulart e instaurou a ditadura militar, em 31 de março de 1964, o Brasil se depara com o desafio da sua reconstrução nacional, de uma vida mais digna aos brasileiros e brasileiras, depois de mais uma vez passar por abalos em sua institucionalidade democrática.

A luta pela democracia, nessas circunstâncias, segue com o sentido de prioridade, associada à afirmação dos direitos dos/as trabalhadores/as e do povo e dos interesses nacionais contra a dependência neocolonial.

A história da República é pontilhada de ações golpistas para desestabilizar, ou pôr abaixo, governos que buscaram realizar reformas e projetos de desenvolvimento autônomo e de garantia de direitos ao povo. Os setores mais reacionários das classes dominantes, pactuados com o imperialismo, foram sempre a ponta de lança dessas investidas antidemocráticas.

Foi o que se deu, no período mais recente, contra o ciclo de governos progressistas dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, quando a Constituição foi afrontada bem como os demais marcos da institucionalidade democrática. O intento golpista foi consumado com o impeachment inconstitucional da presidenta Dilma, em 2016, que levou à prática o projeto de restauração da ordem neoliberal pelo governo ilegítimo de Michel Temer e o empoderamento da extrema-direita via eleição de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018.

O Partido Comunista do Brasil (PCdoB), marca de sua trajetória centenária, atuou como um dos protagonistas na resistência democrática em momentos decisivos da história da República.

O Partido, assim como no ciclo progressista iniciado em 2003, ocupa, no atual governo Lula, postos de destaques, desenvolvendo ações para o fortalecimento da democracia, a promoção da inclusão social e a defesa da soberania nacional, pilares do novo projeto de desenvolvimento nacional, que, na concepção programática do PCdoB, é o caminho brasileiro para o socialismo.

A luta pela democracia é constante. Nos governos da ditadura militar, os democratas e patriotas enfrentaram atrocidades, como torturas, mortes, exílio e desaparecimentos, por defenderem liberdades políticas e de expressão, soberania nacional e direitos sociais. Mais de cem lideranças comunistas integram a galeria de heróis e heroínas do povo brasileiro que tombaram na jornada pelo fim da ditadura.

Foram 21 anos também de concentração de renda e aumento da pobreza, sobretudo de meados da década de 1970 em diante, quando explodiu uma grave crise econômica com consequências de longo prazo; além do cerceamento da ciência, do jornalismo, da cultura e das artes.

O PCdoB, que sofreu duros golpes, assim como as demais forças progressistas e democráticas, reitera que o Estado brasileiro deve pedir desculpas à nação, sobretudo cumprindo decisões judiciais acerca dos crimes cometidos no período ditatorial e aplicando preceitos da legislação do país, em especial, a Constituição, nos seus artigos que tratam deste tema. Ainda estão por resolver questões da máxima importância, como direito dos familiares na incessante busca de informação a respeito das circunstâncias da morte e do desaparecimento de seus entes queridos, além da localiz ação de seus corpos. Os comunistas seguem empenhados nesta pauta geral, incluindo os direitos das vítimas da ditadura e para que a Justiça se realize contra os agentes do regime que cometeram crimes.

Com grandes sacrifícios os brasileiros e as brasileiras se levantaram numa imensa corrente pela democracia, na luta contra o arbítrio, um dos mais combativos períodos da história nacional que eletrizou a nação em campanhas como a defesa da anistia, de eleições diretas para presidente da República e da candidatura de Tancredo Neves que derrotaria a ditadura.

Hoje, como se deu no golpe de 1964, a ameaça à democracia no Brasil integra um fenômeno mundial. Com a crise do neoliberalismo e da democracia representativa, assiste-se à ascensão de forças de extrema-direita em vários países. E, como a história demonstra, quando isto acontece a primeira vítima é o regime democrático. Esta ascensão de forças extremistas de direita no plano local e internacional se dá com uso intensivo e criminoso da comunicação digital, impondo um novo front de combate no qual as forças progressistas estão desafiadas a enfrentar e vencer a luta ideoló ;gica e a denominada guerra cultural neofascista.    

Nessa hora, portanto, mais uma vez a democracia precisa ser defendida como tarefa prioritária. As ameaças ao Estado Democrático de Direito foram explicitadas abertamente pelo governo Bolsonaro. Estarrecida, a nação se confrontou com a jornada golpista de 8 janeiro de 2023, marcada na história como Dia da Infâmia, hoje evidenciada como longamente preparada no âmbito das instituições de Estado por diversos inquéritos.

O amplo espectro de forças democráticas foi mais forte e, uma vez mais, venceu o desafio, tal como na longa jornada contra a ditadura militar. O governo Lula, a cúpula do Poder Judiciário e a maioria do Congresso agiram de forma convergente contra a tentativa de golpe que violou as sedes dessas instituições, com a omissão de forças policiais e de setores do próprio estamento militar. Mas o perigo não terminou. A cantilena segue, pelos que odeiam a democracia, porque sabem que ela representa a liberdade indispensável para lutar e conquistar direitos sociais e civis, para tornar o Brasil uma nação soberana, respeitad a e avançada.

A tática de frente ampla, pioneiramente levantada pelos comunistas e decisiva na derrota da extrema-direita, em 2022, segue imperativamente necessária para o êxito do governo Lula. É um fator-chave para a preservação e ampliação da democracia. Cabe às forças da sociedade civil e às combativas forças populares – seus sindicatos, entidades e movimentos –, a partir das bases, assim como às instituições do país, unirem-se para, no contexto da guerra digital, proporcionar o acesso da população à verdade, elevar a cultura política do povo e sustentar a decisiva luta pelas liberdades e por direitos.

É preciso apuração e condenação exemplares dos mandantes e participantes da tentativa de golpe, civis e militares, no governo ou fora dele. E igualmente o apoio ao Supremo Tribunal Federal (STF) e demais instituições responsáveis pelos processos indispensáveis à consolidação da normalidade política e institucional do país. É uma afronta quando se fala, portanto, em anistia aos condenados, pois são crimes inafiançáveis contra o Estado Democrático de Direito.

O regime democrático vigente precisa assegurar que as Forças Armadas cumpram o integral respeito à Constituição, sob o comando supremo, civil, do presidente da República.

A realidade mundial conturbada, com guerras em curso e prenhe de ameaças, demanda ao país Forças Armadas aparelhadas e pautadas pelo profissionalismo militar. Papel a ser desempenhado em consonância com os interesses da soberania nacional, da soberania popular e dos desafios da inserção soberana do Brasil no mundo. Conceitos e diretrizes que devem estar consolidados na política de defesa nacional, cuja elaboração e atualização cabem aos poderes da República, notadamente o Executivo e o Legislativo, assim como as Forças Armadas, enquanto instituições basilares desse tema, além centros de estudos e pesquisa.

Ditaduras e golpes nunca mais!

Brasília, 16 de março de 2024
Comissão Política Nacional do Partido Comunista do Brasil-PCdoB

As voltas que o mundo dá https://bit.ly/3Ye45TD

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Difícil distinguir na ex-cúpula das Forças Armadas no governo Bolsonaro que oficiais de alta patente foram cooptados pelo presidente e quais resistiram. O estrago parece ter sido muito grande.

Sem tambores e sem clarins ttps://bit.ly/3Ye45TD

Uma crônica de Urariano Mota

Miró da Muribeca no aniversário do Recife

Neste 12 de março, temos os aniversários das duas cidades irmãs, o Recife e  Olinda. No mesmo 12, um reconhecimento público do poeta negro, rebelde e genial Miró da Muribeca
Urariano Mota/Vermelho


 

Neste 12 de março, temos os aniversários das duas cidades irmãs, o Recife e  Olinda. E que acontecimento feliz, para o dia do nascimento do Recife teremos um reconhecimento público do poeta negro, rebelde e genial Miró da Muribeca: uma estátua levantada para o poeta no Recife Antigo. Ali, todos veremos sempre o poeta Miró, um pedido da vereadora e poeta Cida Pedrosa.

A hora e o dia são, portanto, também de Miró da Muribeca, falecido em 2022. Para Miró, publiquei no Dicionário Amoroso do Recife em 2014:

“Sobre ele é quase inútil procurar informações no Google, porque entre os 35.700.000 resultados no máximo 4 se referem ao particular Miró que lhes apresentamos agora. De nome de batismo João Flávio Cordeiro da Silva, o poeta Miró nasceu no Recife há 46 anos. Mas nada nesse nome artístico vem do outro mais conhecido, outro grande, certo criador Joan, da convivência de João Cabral de Melo Neto. Não. Esse Miró, esse nome nobre… — e já sinto no ventre a cutilada do poeta — “todo nome é nobre” — essa denominação vem de outras plagas nobres. Vem dos subúrbios do Recife. João Flávio foi transformado em Miró pelos amigos, porque lembrava ao jogar o bom Mirobaldo, um craque da pelota do Santa Cruz Futebol Clube. No tempo em que o maior talento de João era o futebol, os seus amigos o apelidaram de Miró, forma reduzida de Mirobaldo, que se pronuncia com a vogal “o” aberta da fala nordestina.  Depois, na fase em que assumiu o jogo mais raro e difícil da poesia, achou por bem continuar assim, Miró, para melhor sorrir no íntimo com os dentes claros, diante de quem o confunde com o pintor catalão.

Em um mundo globalizado conforme a ótica WASP, Miró é um acúmulo de surpresas. Pois imaginem as senhoras ladies e os senhores gentlemen que ele é um poeta que jamais entrou na universidade. Pelo menos, para assistir a lições como estudante universitário, nunca. E, continuem a imaginar, isso não lhe faz nenhuma falta, devíamos mesmo dizer, para a sua poesia é um bem, porque lê e se educa em obediência a uma ordem que não está no currículo de um currículo estéril. A quem não o conhece, a sua pessoa física reserva uma grata e grada graça: Miró tem a pele escura, e, ladies and gentlemen, não finjam, por favor, naturalidade. Mesmo em um povo mestiço, Miró é uma exceção: as pessoas sensíveis, até mesmo no Brasil, têm uma estranha gradação na cor da pele da sensibilidade. Quanto mais claros, mais poetas. Quanto mais escuros, mais trabalhadores braçais, ou, se forem artistas, mais jogadores de futebol. Daí que faz sentido o poeta Miró vir de Mirobaldo, o craque do Santa Cruz Futebol Clube. Mas a melhor surpresa de Miró vem da sua poesia. Acompanhem-nos, por favor, assim como o acompanhamos esta semana em um auditório.

Todos nós aprendemos, ou fomos como bons estúpidos para isso educados, que o poema realiza a poesia nas suas linhas. Ou, se quiserem, o poema não precisa da pessoa do poeta — a certeza única e exclusiva do seu valor está no que escreve. Certo? Senhoras e senhores: — Errado. Quem não viu Miró declamar os seus poemas não sabe o quanto esse conceito erra. Aquela justa observação feita por Manuel Bandeira à poesia de Ascenso Ferreira, no trecho:

‘Não me lembro se antes de me avistar pela primeira vez com Ascenso Ferreira eu já tinha conhecimento dos seus versos. Como quer que fosse, eles foram para mim, na voz do poeta, uma revelação. Pois quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas, não pode fazer idéia das virtualidades verbais neles contidas, do movimento lírico que lhes imprime o autor’.

Aplica-se também à poesia de Miró. Com algumas mudanças. Mirem. Onde Ascenso Ferreira realizava no recitar um uso extraordinário da voz, da modulação ao acento, do corte da sílaba à ênfase, como dizê-lo? Uma utilização da voz como um ator de rádio, Miró usa a imagem, física, melhor dizendo, ele usa o próprio corpo, ele faz evoluções pelo auditório, como um cantor de rap, quase diríamos. Mas sem microfone. E não só. Ele acrescenta caretas, esbugalha os olhos, fecha-os, e aponta os seus versos com um dedo contra a assistência. Como um Tio Sam invertido, que em vez de conclamar um alistamento, nos enfiasse a realidade cara a dentro.

A plateia, divertida, sorri, gargalha, diante de versos que não chegam a ser bem cômicos. Como aqui:

‘Tinha lido num livro de autoajuda, de um

desses psicólogos

De araque, que aparecem nesses

                            programas matinais que dão

                             Receitas pra tudo, inclusive de bolo,

                             Que na hora que a vida vira uma merda

                             O melhor é sair da fossa’.

Ou nestes versos:

‘Acho que foi a primeira vez que conheci a dor

Um domingo de 1971

Naquele tempo o domingo era o dia mais feliz,

Minha mãe fazia um macarrão com carne de

lata e Q-suco

Ficávamos brincando de mostrar a língua vermelha

Pra provar que éramos felizes…

Norma era tão linda com seus cabelos negros,

Que me deu um branco aos 11 anos

Quando me pediu um biscoito maizena e um

gole de fratele vita …

Domingo era o dia mais feliz

Antes de Norma beijar um outro na boca.’

A plateia, o distinto público, vai ao delírio. De rir, de gargalhar. Miró fala de um mundo abaixo do nível do auditório. O primeiro elemento cômico é que a miséria é cômica. A maior comicidade é a desgraça que não sentimos na própria pele. A dor que não é a nossa, a dor pela qual não temos empatia, ah, ladies and gentlemen, como é cômica. Não iremos consultar nada agora, mas em algum lugar deve estar observado que o riso é manifestação pela desgraça alheia. O riso atesta a nossa superioridade ante o ridículo que não nos alcança. Quem jamais bebeu “sucos” em pacotinhos de pó, de “morango”, de “uva”, com bastante açúcar e gelo, como bebem os que não podem comprar frutas em um país tropical, acha isso irresistivelment e cômico. Quem jamais saboreou carne enlatada no país de maior rebanho bovino do mundo, quem jamais pôde sentir o sabor, o gosto e a maravilha da carne Swift, da carne da Wilson, com macarrão rubro de colorau aos domingos, que piada genial é esse macarrão se transformar no dia da felicidade. E aquela prova de amor, da cumplicidade que tem o amor, quando a musa pede refrigerante, guaraná da frattelli vita, com o biscoito miserável de maisena. Que cara! E Norma beija um outro, mirem o detalhe, na boca! na boca! Menos, por favor, você é demais, cara!

O poeta gira em torno da assistência. A sua arma, a sua graça e cômico é a verdade. Aquelas coisas mínimas, constrangedoras, que nem às paredes confessamos, ele, como um novo louco, arrebenta de si. Mais do que escrever por vezes transcreve. Com uma sensibilidade que observa o inobservável.

‘Já perceberam como tem pontas de

cigarro em pontos de ônibus?

                            Tem uma tese de um amigo que diz:

                            Que as empresas de ônibus são

responsáveis por 5% dos cânceres de pulmão.

                            Curioso perguntei, como assim?

É que os ônibus demoram’.

A recepção da plateia a essas coisas é vê-las apenas como o lado sujo, trash, de uma estética suja e trash, de um maluco que escreve e não tem nenhuma vergonha de escrever sobre essa miséria como um bárbaro sem educação. (Nós, os cultos. Nós, os que, se algum dia fomos dessa desgraça, bem que a superamos. Nós, os de outro mundo. Nós, os limpos, clean, e educados.)  O poeta gira, e deixa a aparência, como um bom gira, de fazer também uma rotação. Então ele declama, recita, pula, contorce-se, cospe e pragueja uns versos que a expectativa do distinto e cultíssimo público não percebe. O clima em torno da sua performance não permite a degustação, a permanência que tem a beleza, a que sempre por necessidade voltamos. Então ele fala, enquanto o p&uacut e;blico espera dar mais uma risada, então ele faz uma prece, um poema que somente hoje pela manhã pudemos sentir, ao ler e mastigar, e ruminar como as cabras mastigam e ruminam uma erva muito amarga. Este poema não precisa do poeta, da sua pessoa. Basta uma sensibilidade.

‘Deus, Tu que agora carregas um homem,

Puxando pelas rédeas o seu cavalo e uns

                            sacos de cimento

De cada lado um sol insuportável …

                            Deus,

                            Choves agora no meu coração

                            Para que eu não pense em comprar um

                            guarda-chuvas de balas

                            E fazer justiça com as próprias mãos.’

Miró, poeta marginal? Pobre e miserável quem o toma assim”.

E para encerrar por enquanto, recupero um vídeo em que falei sobre o grande poeta Miró da Muribeca, quando ele foi homenageado na Bienal do Livro de Pernambuco em 2015.

As emoções dão cor à vida ttps://bit.ly/3Ye45TD

Mundo do trabalho muda

As contradições reveladas pelas transformações no trabalho industrial

Poucas categorias revelam com tanta nitidez e simbolismo as transformações do mundo do trabalho, como a metalúrgica. Flora Lassance discute estas mudanças e como lidar com elas.
Osvaldo Bertolino/Cezar Xavier/Portal da Fundação Maurício Grabois

 

Na manhã do sábado, 16 de dezembro, Flora Lassance, operária metalúrgica do setor naval, trouxe à reunião ampliada do GT Mundo do Trabalho uma análise profunda sobre as transformações que afetam os operários metalúrgicos. Ela destaca a importância desse grupo para abordar questões cruciais, especialmente no que diz respeito ao processo de formação.

Flora compartilha a metodologia de pesquisa adotada, que não se limitou à região Nordeste, mas ampliou-se para incluir metalúrgicos de Betim, Caxias do Sul, Amazonas e outras regiões da Bahia. Ela destaca a relevância de trazer as impressões, angústias e expectativas de toda a categoria metalúrgica no Brasil para enriquecer o debate.

A pesquisa elaborou três perguntas fundamentais para sondar a identidade e avaliação dos trabalhadores frente às mudanças do mundo do trabalho. Flora enfatiza a importância do processo de formação e cita Paulo Freire, afirmando que é necessário estudar mais sobre a própria categoria para compreender as nuances das transformações em curso.

Entre os pontos destacados por Flora, quatro merecem atenção especial:

  1. Compreensão Diversificada das Mudanças do Mundo do Trabalho: As transformações são percebidas de maneiras variadas, desde alívio até desconfiança. Flora ressalta a confusão na identidade dos trabalhadores metalúrgicos, que enfrentam uma inversão de valores e uma diluição do sentimento de classe.
  2. Valorização das Mudanças e Camuflagem de Contradições: Muitos operários valorizam as mudanças introduzidas, mas Flora destaca a camuflagem de contradições estruturais. A reorganização do ambiente da fábrica, acompanhada de um discurso sedutor, pode mascarar a verdadeira insatisfação operária.
  3. Participação Ilusória em um Sistema Participativo: A participação dos trabalhadores parece controlada internamente e simbolicamente, iludindo sobre uma coincidência de interesses entre operários e empresários. Essa ilusão contribui para a diluição do sentimento de classe e mina a resistência.
  4. Impactos das Novas Tecnologias no Setor Metalúrgico: Flora destaca o impacto das novas tecnologias, automação e inteligência artificial no setor metalúrgico. Ela apresenta exemplos concretos de fábricas onde a produção aumentou significativamente, mas os empregos foram drasticamente reduzidos.

Diante dessas análises, Flora ressalta a necessidade de a categoria metalúrgica enfrentar os desafios, melhorar as condições e a qualidade de vida dos trabalhadores, e compreender a importância contínua do movimento sindical. O desafio de se adaptar, qualificar e desenvolver novas habilidades é crucial para a permanência no mercado de trabalho em meio a essas transformações.

A pesquisa de Flora revela um panorama complexo e desafiador para os metalúrgicos, destacando a urgência de repensar a identidade e resistência da classe diante das profundas mudanças no mundo do trabalho. O trabalho de base, a formação e o engajamento político são apontados como elementos fundamentais para construir perspectivas mais justas e sustentáveis para a categoria.

Leia a cobertura da reunião ampliada do GT Mundo do Trabalho:

As contradições reveladas pelas transformações no trabalho industrial
Capitalismo de plataformas encontra terreno fértil no excedente de mão de obra do Brasil
Trabalho do agricultor familiar sofre transformações impulsionadas pelo agronegócio
GT Mundo do Trabalho debate transformações na organização da classe trabalhadora

Transformações tecnológicas

Após o debate, ela trouxe reflexões sobre o impacto das transformações tecnológicas no mundo do trabalho industrial. Ela destacou a realidade da indústria automotiva, passando por mudanças significativas desde o perfil dos anos 1980 até os dias atuais, marcados pela robotização.

Flora iniciou a discussão levantando uma pergunta crucial: “Qual é a política de inclusão para os trabalhadores diante desse processo de transformação tecnológica?”. A preocupação central reside na falta de uma política efetiva de inclusão, evidenciando que, na prática, os 65 mil novos empregos gerados não compensam os 85 mil que serão extintos. A questão, portanto, ressoa como um desafio para as lideranças e trabalhadores envolvidos nesse contexto.

A sindicalista reiterou que a preocupação não é ser contrária às transformações tecnológicas, mas sim garantir que essas mudanças sejam acompanhadas por políticas inclusivas e estratégias que não deixem os trabalhadores à margem do processo. Flora destacou a importância das políticas públicas como um possível mecanismo de superação, apontando para a necessidade de iniciativas que promovam a educação, formação profissional e inovação.

Um exemplo concreto foi apresentado a partir da experiência na Bahia, onde a Agenda Bahia do Trabalho Decente tem desempenhado um papel inovador. Essa iniciativa estadual amplia os compromissos assumidos pelo governo federal no âmbito do trabalho decente, abordando questões essenciais em nove eixos prioritários. Entre eles, destacam-se a erradicação do trabalho escravo, combate ao trabalho infantil, segurança e saúde do trabalhador, igualdade de gênero e raça, além de juventude e empregos verdes.

Flora ressaltou que a Agenda Bahia do Trabalho Decente é construída de maneira quadripartite, envolvendo a participação ativa da justiça, trabalhadores, empregadores e outros setores, buscando promover o diálogo social. O modelo exitoso tem despertado interesse em replicar a iniciativa em outras regiões, como no Pará, com a proposta de criar a “Agenda Pará do Trabalho Decente”.

Diante das complexidades apresentadas pelo impacto das transformações tecnológicas, Flora enfatizou a importância de debater e implementar políticas que possam assegurar a inclusão, formação e proteção dos trabalhadores metalúrgicos diante dos desafios do novo cenário industrial.

Leia também: De qual dispersão estamos falando? https://tinyurl.com/56b57ysp

Palavra de poeta: Chico de Assis

NOSTÁLGICA
Chico de Assis
 
Os ventos de então 
sopravam fortes.
Eram os ventos da paixão.
 
Desabrochavam sonhos
embalados em quimeras.
Eram tempos de ação.
 
Agora os cânticos de vitória
emudeceram  na espera.
E se fizeram solidão.

[Ilustração: Thomas Eakins]

*Advogado, poeta
Mais do que olhar pela janela https://bit.ly/3Ye45TD