Procura-se um
personagem
Ronaldo Correia
de Brito*, em seu site
Quem entrava na casa de
minha avó materna, avistava na parede da sala de visitas uma imagem do Coração
de Jesus, litogravura suíça, herança de família. Logo abaixo dessa imagem em
tons verdes e pretos, lembrando um ícone russo, o retrato do meu avô Pedro
Zacarias de Brito, fotografado dentro do caixão em que o enterraram. Esses dois
personagens reinavam absolutos na casa grande e antiga do sítio Boqueirão, no Crato.
Era impossível não avistá-los uma centena de vezes por dia e mais impossível
não se sentir olhado, vigiado e protegido pelos dois senhores.
Dália Nunes de Brito professava
uma religião popular, que parecia inventada por ela mesma. Nesse cristianismo
sertanejo não aconteceram as sangrentas matanças dos cruzados, nem as fogueiras
dos tribunais da Inquisição e nunca se mencionou a usura de Roma, acumulando
tesouros ao longo da história. Minha avó tinha desapego aos bens materiais e
fazia questão de não possuir quase nada, além das terras que meu avô deixara.
Os únicos objetos intocáveis na casa de portas escancaradas eram as imagens dos
santos e a mesinha altar com toalha de renda de bilros, dois castiçais de vidro
e uma jarrinha de porcelana.
Vovó rezava um rosário às três
da manhã, outro ao meio-dia e um terceiro ao anoitecer. Valia-se do Coração de
Jesus e do marido morto, em todas as agonias. Uma vez por ano festejava o
Sagrado Coração, na data em que ele fora entronizado na parede de onde nunca
deveria sair. A renovação, como se chamava a festa, acontecia no mês de julho,
época de fartura.
Os reisados cantavam:
“Quando entro nessa nobre sala
É pelo claro dessa luz
Louvor viemos dar
Ao Coração de Jesus”.
As mulheres entoavam benditos,
os homens soltavam fogos de caibro, servia-se aluá de abacaxi, bolo de puba,
pão de ló de goma, sequilhos e biscoitos. Tudo modesto e exíguo. Porém, não
existia felicidade terrena maior do que aquela.
No Natal, o Sagrado Coração
ficava um pouco esquecido e desprestigiado. Minha avó só cuidava do Jesus
Cristinho, um meninozinho de madeira, rosado e risonho, vestido numa camisa de
seda, esculpido lá longe em Portugal, e recebido de presente da nossa tia-avó
Nizinha. Diferia de todos os Meninos-Deus que conhecíamos, por ser igual a nós.
Debaixo do vestidinho rendado, lá entre as coxas, tinha como todos os meninos
um pinto e dois ovinhos. Minha tia Alzenir achava uma profanação e tentava por
todos os meios esconder a sexualidade do Deus Menino. Pensou em mandar
castrá-lo, livrando-se da nossa curiosidade. Todas as vezes que passávamos
diante da lapinha, levantávamos a saia do Menino e olhávamos o seu sexo,
comparando com o nosso. Era difícil imaginar que aquele camarada deitado na manjedoura
de palha, em tudo semelhante a nós, crescera e se tornara o Senhor pregado logo
acima na parede, vigiando-nos com os seus olhos bondosos, mas severos.
Minha avó confeccionava os
enfeites da lapinha com lã de ciumeira e de barriguda. O tempo livre de que ela
dispunha, entre os trabalhos e as rezas, ocupava no artesanato minucioso, dando
vida a carneiros, bois, burros e camelos. As figuras de José, Maria e dos Reis
Magos, de louça modesta, eram as mesmas dos outros anos. Mais bonita que a
lapinha da nossa avó, só mesmo a das irmãs do alfaiate Zé de Rita, famosas no
Crato.
O ano tornava-se curto para
elas construírem a cidade cenário que ocupava quase uma sala. Havia de tudo naquele universo
miraculoso: uma Jerusalém reproduzida, montanhas, lagos com cisnes e peixes,
exércitos de soldados romanos, vilas, currais, bichos domésticos e selvagens,
florestas, campos, pastores e pastoras em profusão, anjos e santos, tudo
distribuído nos três níveis: o superior divino; o intermediário e o terreal.
Era impossível imaginar-se alguma coisa que não estivesse representada ali. Uma
vez, juro, cheguei a avistar uma Marilyn Monroe de papel, seminua, pendurada no
galho de uma árvore.
O cinema trouxe ao Crato o
glamour hollywoodiano e a fantasia dos natais com neve e pinheiros. As lapinhas
perderam prestígio, como o catolicismo. O cineasta italiano Federico Fellini
anunciou o fim da mitologia cristã, mas teimei em saudar o Jesus pagão da minha
infância, em teatro e música, numa festa batizada com o nome de Baile
do Menino Deus. Um dia, convidaram-me para conversar com uma turma de colégio de
classe média, no Recife. A escola decidira fazer um espetáculo de Natal e os
meninos, em torno de vinte, escreveriam o texto.
Queriam minha ajuda, um
empurrãozinho. Aceitei e fui ao encontro. Eram crianças inteligentes, com certa
automação dos jogos de computador e vídeo games. Propus um começo. Anotaríamos
a lista dos personagens do Natal, os mais importantes. Gritaram todos ao mesmo
tempo. Pedi ordem. Surgiram os nomes, as figuras famosas das decorações
natalinas dos shoppings: Papai Noel, o trenó, as renas, a árvore de natal, a
neve. Estranhei as respostas. Insisti. Lembraram os gnomos, os duendes, a
oficina de brinquedos do Gepeto e os anõezinhos de Branca de Neve. Assustei-me.
Não acreditava no que ouvia. Não é possível! Quem são os verdadeiros
personagens da festa de Natal, aqueles, sem os quais nada teria acontecido?
Todos concentrados. Espera aí… Espera aí… E nada. Não vinha um nome. Apelei.
Lembrassem pelo menos do personagem mais importante, o que deu origem à noite
de Natal. Por fim, um geniozinho gritou: Já sei! Já sei!
Que alívio!
E com ar vitorioso anunciou:
– O peru da Sadia.
*Médico, dramaturgo, escritor
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