A ultradireita e o bolsonarismo: passado e futuro
Dos resultados nas eleições
à capacidade de pautar o debate público, não faltam sinais de consolidação da
ultradireita. O diagnóstico ainda deixa, todavia, perguntas no ar. Qual é o
papel de Bolsonaro? Há uma coincidência entre bolsonarismo e ultradireita? Para
onde vai a parte da coalizão bolsonarista afinada com os discursos e
performances da direita tradicional?
Jorge Chaloub, Le Monde Diplomatique
A eleição de 2022 ofereceu sinais distintos para os próximos
anos. Destaca-se, por um lado, a impressionante vitória de Lula e a
demonstração de força do Partido dos Trabalhadores (PT). Vencer pela primeira
vez um candidato à reeleição depois de ter sido preso e alvo de uma sistemática
campanha de ataques públicos, durante ao menos uma década, é uma notável
demonstração de vigor político. Fazê-lo em meio a um uso ostensivo da máquina
estatal com fins eleitorais, qualitativamente distinto de qualquer eleição da
República d e 1988, é um feito político para poucos e sem dúvida dá ao novo
governo, e por meio dele, um horizonte que há muito se via perdido na cena
política brasileira.
A vitória da esquerda transcorreu, contudo, ao lado da
consolidação da ultradireita na política institucional brasileira. Depois da
vitória no pleito presidencial e do significativo crescimento em 2018, as
últimas eleições deixaram claro que não estamos diante de um acidente ou ponto
fora da curva, mas de um novo momento da política brasileira, no qual a
ultradireita é um dos protagonistas. Dos resultados nas eleições para Câmara,
Senado e governos dos estados à capacidade de pautar o debate público e
influenciar tanto aliados como adversários, não faltam sinais de que 2022
contribuiu para a consolidação desse campo político.
O diagnóstico ainda deixa, todavia, muitas perguntas no ar.
Qual é o papel de Bolsonaro? Há uma coincidência entre bolsonarismo, esse
conceito ainda em formulação, e ultradireita no Brasil? Para onde vai a parte
da coalizão bolsonarista mais afinada com os discursos e performances da
direita tradicional do pós-1988? Essas são apenas algumas das questões
fundamentais para melhor compreendermos os caminhos dos próximos quatro anos.
Distinguir de certos conceitos, tão utilizados quanto
nebulosos em muitas das boas análises sobre o tema, pode ser um bom modo de
avançar na resposta, mesmo que inicial, a parte dessas dúvidas. O esforço não é
um simples exercício acadêmico, mas um momento necessário para ver as
particularidades e trajetórias diversas do que é muitas vezes tomado como uma
coisa indistinta, o que impede uma melhor compreensão não apenas do passado,
como também dos caminhos do futuro.
Leia também: Suplantar a cultura do ódio é uma luta de longo
curso https://bit.ly/3Us8tfj
Comecemos pelo bolsonarismo. Destaca-se, à primeira vista,
sua similaridade com outros conceitos que buscam relacionar distintas práticas
políticas às várias formas de institucionalização de lideranças carismáticas na
história brasileira ou latino-americana. Falamos aqui de termos como varguismo,
peronismo, lacerdismo, lulismo, entre tantos outros. A centralidade do líder é
algo comum a todos esses conceitos, mesmo que suas representações públicas
transcendam muito os limites da ação de qualquer uma dessas figuras históricas
e que eles também expre ssem certa separação entre a pessoa física, que exerce
a liderança, e os movimentos mobilizados por seu nome ou os símbolos a ele
relacionados. O bolsonarismo, nesse sentido, tanto é profundamente vinculado a
Bolsonaro quanto ganha certa autonomia relativa quando consolida uma rede de
atores políticos, que se organizam em torno do nome do presidente, mas não são
completamente controlados por ele.
Para esse movimento de institucionalização, a internet ocupa
lugar central. Distintamente dos outros casos citados, o bolsonarismo não se
estrutura por meio de partidos, movimentos sociais tradicionais, jornais,
rádios ou televisões, mas com base em uma institucionalidade virtual, no qual
as distintas redes sociais são principal mecanismo de construção de novas
formas de rotinização do carisma.1 O bolsonarismo, por um lado,
cultiva as regularidades típicas de um processo de institucionalização, que
vincula a liderança política a padrões e a submete &agr ave;s imposições de
aliados, mas, por outro, aguça uma dimensão caótica graças à dimensão dispersa
e descentralizada da internet, que por vezes desconcerta adversários, mas
também traz custos na disputa política, como ficou muito claro nas eleições de
2022. A impossibilidade de um controle eficaz das bases constrói uma dinâmica
com muito mais proximidade com o fascismo, com sua constante mobilização das
bases que frequentemente sai do controle das lideranças e da burocracia, do que
as formas de autoritarismo burocrático, como o identificado à ditadura militar
brasileira.
Leia também: O golpe da crise permanente do mercado https://bit.ly/3V7IsCy
O bolsonarismo, contudo, não se confunde com o processo de
construção do campo da ultradireita no Brasil, mesmo que tenha tal fenômeno
como condição necessária para a sua trajetória de sucesso. Quando Bolsonaro
surge como um protagonista na cena política brasileira, já havia ganhado corpo
a olhos vistos, há ao menos uma década, um campo que reivindicava de forma
ostensiva uma identidade pública radical à direita da direita hegemônica no
pós-1988. Tal espaço político foi construído pela ação constante de políticos,
intelectuais, e mpresários, entre outros atores, todos muito bem-sucedidos em
ocupar lugares privilegiados na grande mídia, construir instituições e pautar o
debate público brasileiro, seja por meio de novas propostas e ideias do que
seria uma verdadeira direita, segundo eles ausente da história brasileira, seja
por meio dos constantes ataques a inimigos e adversários, que se direcionam com
mais intensidade ao PT e às esquerdas, mas que acabam por atacar a ordem
política construída após a redemocratização. O bolsonarismo ocupou lugar
privilegiado nesse campo e aumentou a intensidade desse crescimento, mas não
deixa de ser apenas uma parte de um cenário mais amplo.
Não é possível compreender esse movimento político sem olhar
para o mundo, que vê ao longo das últimas décadas o fortalecimento de partidos
de ultradireita e o surgimento de líderes que se propõem a romper com a democracia
liberal predominante no pós-1989. Muitos desses personagens, como Donald Trump
e Viktor Orbán, têm inúmeras semelhanças de estilo com Bolsonaro.
O caso brasileiro, contudo, tem algumas especificidades, em
regra consequências da nossa formação social e condição periférica. Aqui, a
destruição da democracia construída no pós-1988 é, ao menos em um primeiro
momento, o grande objetivo desses atores, aquilo que os une em meio às suas
sensíveis diferenças e define os limites do campo da ultradireita. A República
de 1988 surge, nessa narrativa, como uma experiência política marcada pela
subversão dos verdadeiros valores nacionais pela esquerda, desviada da natureza
intrinsecamente conservadora da popula&cce dil;ão brasileira e definida por
uma lógica de corrupção do Estado e da sociedade. Deve-se ressaltar que
corrupção é entendida como um processo mais profundo de plena degeneração da
sociedade e da nação, que tem no desvio de dinheiro público apenas um de seus
elementos. Essa retórica da terra arrasada2 assume feições
diversas que, por vezes, retratam a história brasileira em chave puramente
negativa, enquanto em outros momentos vê as origens do mal em registros mais
recentes. Ela opera como amálgama de uma heterogênea coalizão, composta de
reacionários, libertários, fascistas e parte de uma direita tradicional, todos
críticos de uma vaga ideia de esquerda muito rapidamente identificada com a
República de 1988.
A força política desse grupo e o processo de normalização da
ultradireita em parte decorrem da naturalização de um discurso profundamente
crítico à ordem política brasileira, hegemônico na maior parte da grande mídia
e em muito fortalecido a partir dos governos petistas. A ordem de 1988 passou a
ser regularmente retratada – em grandes jornais, redes de televisão e emissoras
de rádio – pelas lentes da corrupção endêmica, da natureza inepta do Estado e
da má-fé dos políticos, o que criou, ao longo de mais de uma década de
reitera&cce dil;ão contínua dessa narrativa, o desejo público de ruptura
radical com a democracia brasileira realmente existente. É evidente que parte
desse sentimento passa pelos limites da própria experiência política e pelo
fracasso das promessas da redemocratização, mas não só. As representações da
Lava Jato em boa parte da mídia são uma evidência particularmente didática para
demonstrar a força e resiliência do discurso mencionado.
A profunda crise da democracia no pós-2013 não se confunde,
todavia, com a emergência da ultradireita. Por um lado, a crise democrática
decorre em parte de um movimento mais longo de descrédito das instituições e da
ordem de 1988; por outro, o fortalecimento da ultradireita teve alguns de seus
principais capítulos ao longo dos governos Lula, em tempos de forte otimismo
sobre a democracia brasileira. A importante distinção entre os fenômenos não
implica, de modo algum, a ausência de relação entre eles. A ultradireita é
tanto um ator oportunista, que vê no cená rio de crise as possibilidades de
construir um campo influente no debate político brasileiro, quanto um elemento
central no aprofundamento da situação crítica. Se por um lado é possível
afirmar que a crise democrática antecede o protagonismo da ultradireita, por
outro cabe destacar que a conjuntura crítica é não apenas terreno propício ao
crescimento de tais atores, como também tem tais grupos como agentes centrais
de seu aprofundamento e consolidação como novo regime de normalidade. O
bolsonarismo é a parcela da ultradireita, organizada em torno de Bolsonaro e
com forte uso de linguagens políticas fascistas, que melhor soube se aproveitar
desse cenário e assumiu, nas urnas e nas ruas, a liderança do campo, ao menos
até o momento atual.
As distinções conceituais não são relevantes apenas para
melhor compreender o passado, mas também para imaginar futuros possíveis. As
diferenças entre ultradireita e
bolsonarismo tornam possível
esboçar um cenário no qual o primeiro grupo permanece como um dos principais
polos da política brasileira, por sua representatividade eleitoral e nas ruas,
mas não tem na família Bolsonaro suas principais lideranças. Se o tempo na
Presidência, a boa organização nas redes e os vínculos com as instituições de
segurança são bons trunfos, a ausência de um partido organizado, a distância de
máquinas estatais importantes e a possível responsabilização por crimes
cometidos durante o mandato podem colocar em xeque o lugar do bolsonarismo.
Outros desafios, capazes de
desgastar a autoridade de Bolsonaro, vêm de sua estratégia de atuar
constantemente em duas frentes: o golpe e a disputa eleitoral. Se durante o
governo, sobretudo por uma fraca resposta das instituições, o movimento lhe
proporcionou v antagens, desde as eleições a escolha pode gerar insatisfações
diversas, capazes de indispô-lo tanto com seus aliados no sistema político, que
precisam da manutenção de uma mínima legitimidade do regime, quanto com sua
base explicitamente golpista, parte da qual está hoje militando contra a
democracia em frente aos quartéis.
Não é simples, entretanto, a
construção de uma liderança como Bolsonaro, algo que depende de oportunidades
políticas, como as criadas pelo peculiar cenário entre 2013 e 2018, difíceis de
repetir de maneira semelhante nos próxi mos anos. Durante os últimos anos,
todos os que tentaram disputar o campo da ultradireita com Bolsonaro acabaram
derrotados – caso de Moro, Weintraub, entre outros. Se a inegável perda de
poder após a derrota do dia 30 de outubro aumenta a chance dos desafiantes ao
posto de líderes da ultradireita, a base fiel torna o atual presidente uma
liderança difícil de ser superada, seja nas ruas ou nas urnas. Um embate
acirrado pode, inclusive, enfraquecer o campo como um todo.
Mesmo ante tais riscos, é
muito provável uma disputa aberta no campo. Resta saber se a aposta será em um
candidato que replique elementos da ultradireita global, como o ataque aberto a
minorias e a representação das esquerdas como inimigos a serem exterm inados,
mas que busque reforçar sua aura de normalidade, reduzindo o espaço da
linguagem política do fascismo, ou se estaremos diante de alguém que procurará
se vender como mais radical que Bolsonaro, que pode, ironicamente, ser
retratado por esse eventual adversário como excessivamente covarde ou fraco,
sobretudo no momento em que deveria ter dado o passo decisivo rumo ao golpe.
Danilo Gentili, candidato esboçado pelo MBL, é desde já concorrente ao primeiro
posto; resta saber se e quando haverá algum forte pretendente ao segundo perfil.
A manutenção da democracia
brasileira depende, contudo, do isolamento da ultradireita, que deve outra vez
ser recolocada em seu lugar de outrora: fora do centro da cena política
brasileira. Caso a disputa entre esquerda moderada e direita extremada
permaneça a longo prazo, em lógica próxima ao que ocorreu nas últimas duas
eleições nacionais, dificilmente escaparemos, cedo ou tarde, de uma ruptura
democrática.
Para superar tal cenário, três movimentos são necessários: a reconstrução de
uma direita ou centro-direita democrática, o amplo reconhecimento da esquerda
como ator democrático legítimo, algo que foi profundamente relativizado ao
longo dos últimos anos, e a punição dos atos e discursos contra a ordem
democrática de 1988. Se a crise democrática e o fortalecimento da ultradireita
são processos de temporalidades distintas, os últimos anos reforçaram suas
relações, de modo que não há como superar o abismo no qual nos metemos sem
combater explicitamente os que atuaram e atuam ativamente para aprofundá-lo.
*Jorge Chaloub é
professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
e do Programa de Pós-Graduaç&atil de;o em Ciências Sociais da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF).
1 Deve-se apontar que a
centralidade das redes no bolsonarismo mereceu análises importantes de
pesquisadores como Marcos Nobre, Letícia Cesarino e Rodrigo Nunes, em obras
como: Marcos Nobre, Limites da democracia: de Junho de
2013 ao governo Bolsonaro, São Paulo, Todavia, 2022; Letícia
Cesarino, O mundo do avesso: verdade e política na era digital,
São Paulo, Ubu, 2022; e Rodrigo Nunes, Do transe à vertigem: ensaios sobre
bolsonarismo e um mundo em transição, São Paulo, Ubu, 2022.
2 Jorge Chaloub e Fernando
Perlatto, “A nova direita brasileira: ideias, retórica e prática
política”, Insight Inteligência, 2016.
Leia também: Movimentos sociais almejam: soberania digital
através de internet democrática. É possível? https://bit.ly/3EMUY4F
Nenhum comentário:
Postar um comentário